Qual é a conexão entre teologia bíblica e aconselhamento na igreja local? Talvez, à primeira vista, você diga que não há muita ligação!
Por quê? Ao ouvir “teologia bíblica”, você tende a pensar em categorias abrangentes, tais como criação, queda, redenção e consumação. Você pensa em termos de temas bíblicos centrais, como pecado, sofrimento, êxodo, sacrifício, lei, reino e exílio, e como eles se desenvolvem na Escritura ao longo da história redentiva. Ao ouvir “aconselhamento”, o que vem à mente são temas como ministério interpressoal, diálogo, discipulado, conflitos pessoais e crises. Você vê nomes e rostos específicos.
A teologia bíblica, por mais edificante e importante que seja, pode parecer um pouco abstrata em comparação com a concreta, nua e crua realidade da vida cotidiana neste lado da glória. Mas eu defendo que as duas estão intimamente ligadas. A sua interrelação fornece o fundamento para conduzirmos um ministério de aconselhamento honesto, sábio e contextualmente relevante na igreja.
O grande teólogo bíblico Geerhardus Vos disse: “Tudo o que Deus revelou de si mesmo veio em resposta às necessidades religiosas práticas do seu povo, à medida que emergiam no curso da história”.[1] Isso significa que as Escrituras vêm a nós repletas de relevância para os problemas da vida. A Bíblia não apenas nos fornece uma teologia bíblica, mas é, verdadeiramente, uma teologia prática.[2] A Escritura e a vida estão entrelaçadas!
Qual é a melhor maneira de enfatizar essa interconexão em situações de ministério pessoal?
Eu considero o conceito de narrativa ou enredo particularmente útil. Isso é verdade quer estejamos lendo a Escritura ou “lendo” (ouvindo e tentando entender) as pessoas. Nós precisamos ler a Bíblia como uma única história real centrada na vinda de Jesus Cristo e seu governo renovador. Todas as peças e pedaços da Escritura se encaixam nessa narrativa mais ampla.[3] Mas, para aplicar a Escritura à nossa vida contemporânea, também precisamos discernir como as peças e pedaços da história de vida das pessoas concordam, ou não concordam, com o drama bíblico.
Uma maneira de falar da natureza narrativa da vida humana é afirmar que todas as pessoas perguntam e respondem, conscientemente ou não, quatro perguntas fundamentais acerca da natureza da vida:
- Onde nós estamos? Qual é a natureza do mundo em que vivemos?
- Quem somos nós? Qual é a natureza essencial dos seres humanos?
- O que há de errado? Por que o mundo – e a minha vida – estão de cabeça para baixo?
- Qual é o remédio? Como esses problemas podem ser resolvidos?[4]
Essas perguntas – e como nós as respondemos – formam a espinha dorsal narrativa de nossas vidas. Elas moldam como nós interpretamos os eventos da vida, dos mais banais aos mais terríveis. Elas moldam como nos vemos e como vemos os outros. Elas moldam nossa visão do que constitui uma vida significativa, até mesmo um momento significativo. Elas moldam nossas crenças, emoções e decisões a cada dia. Todos têm uma história mais abrangente que é vivida um momento após o outro. Todos nós somos criadores de sentido com categorias que lhes permitem dar sentido à vida. A questão é esta: qual história, qual narrativa nós usaremos para ver nosso mundo e interpretar nossas vidas?
E é aqui que a teologia bíblica mostra a que veio! O desvelar da narrativa bíblica dada a nós de Gênesis a Apocalipse responde às perguntas acima e nos orienta na direção da verdadeira realidade, se tivermos ouvidos para ouvir.
Onde nós estamos? No bom mundo de Deus (Gênesis 1–2).
Quem somos nós? Somos portadores da imagem de Deus, criados para portar a sua semelhança, levando o seu bom e sábio governo até os limites da terra (Gênesis 1.26-27).
O que há de errado? Nós escolhemos viver de modo autônomo, por roteiros de nossa própria criação. Nós trocamos a adoração do Criador pela adoração de coisas criadas (Gênesis 3; Romanos 1.25).
Qual é o remédio? A redenção, iniciada na história de Israel e completada por Jesus Cristo, que “veio para fazer suas bênçãos chegarem / até onde a maldição se possa achar”.
Cada vez que você grita com seus filhos, ou presume o pior acerca de alguém ou “corta” alguém no trânsito em sua corrida ao escritório ou foge para a pornografia na internet, você mostra para o que você está vivendo naquele momento. Você mostra o enredo de auto-absorção que o capturou.
O ministério de aconselhamento ajuda outros a reconhecerem os horrendos roteiros pelos quais eles estão vivendo e busca reconectá-los, pela capacitação do Espírito, à história de entrega de vida de Jesus Cristo. Assim como Jesus ajudou os desencorajados discípulos na estrada de Emaús a compreenderem como os detalhes do Antigo Testamento apontavam para ele, nós ajudamos outros a entenderem para onde os detalhes de suas vidas apontam. Nós celebramos quando eles estão alinhados ao enredo do evangelho. Nós gentilmente os corrigimos e restauramos quando eles estão desalinhados do enredo do evangelho.
A Bíblia não deve ser estudada à parte de sua aplicação para a vida, assim como o aconselhamento não deve ser praticado à parte de seu fundamento na narrativa da Escritura. Desse modo, a teologia bíblica e o aconselhamento estão inexoravelmente unidos.
Notas:
[1] Biblical Theology: Old and New Testaments (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1948; reprint, Edinburgh: The Banner of Truth Trust, 1975), 9 [N.T.: Publicado em português com o título Teologia bíblica: Antigo e Novo Testamentos (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2010)].[2] David Powlison, “Counsel Ephesians,” The Journal of Biblical Counseling 17:2 (1999).
[3] Ver como Jesus resume o foco das Escrituras do Antigo Testamento em Lucas 24.44-47.
[4] Brian Walsh and J. Richard Middleton, The Transforming Vision: Shaping a Christian World View (Downers Grove, IL: IVP, 1984), 35.
[5] N.T.: trecho do hino “Joy to the world” (“Alegria ao mundo”), de Isaac Watts.
Nota do editor [do texto em inglês]: Este artigo foi adaptado de CrossTalk: Where Life and Scripture Meet (New Growth Press, 2009), com a generosa permissão da editora.