quinta-feira, 28 de março

Um guia para a formação espiritual

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Artigo adaptado do livro Servos de Deus, de Franklin Ferreira, pela Editora Fiel.

Nas últimas duas décadas, a palavra discipulado foi suplantada pelo termo espiritualidade. O que aparentemente era algo restrito à devoção católica se tornou um dos aspectos centrais do interesse evangélico atual. Uma definição mais básica de espiritualidade cristã é que esta seria o relacionamento profundo com Deus Pai, mediado pela cruz de Jesus Cristo, no poder do Espírito Santo. Indo um pouco além, Alister McGrath sugere que a espiritualidade cristã é:

A busca por uma existência cristã autêntica e satisfatória, envolvendo a união das ideias fundamentais do cristianismo com toda a experiência de vida baseada em e dentro do âmbito da fé cristã. (…) No cristianismo, a espiritualidade significa viver o encontro com Jesus Cristo. A expressão ‘espiritualidade cristã’ refere-se a como a vida cristã é entendida e às práticas devocionais explícitas desenvolvidas com vistas a nutrir e sustentar esse relacionamento com Cristo. A espiritualidade cristã pode, então, ser compreendida como a maneira pela qual indivíduos ou grupos cristãos buscam aprofundar sua experiência com Deus ou ‘praticar a presença de Deus’, para usar uma frase associada particularmente ao Irmão Lourenço.

Sublinhando a união entre as verdades cristãs e uma vida devota, ele escreve mais adiante:

A espiritualidade é a aplicação da verdade cristã à vida de fé. (…) Ela procura colocar Deus no coração e na mente. A espiritualidade ocupa-se do aprofundamento do conhecimento pessoal de Deus, ela se baseia em uma boa teologia, que alicerça a vida cristã. (…) Colocar uma barreira entre teologia e espiritualidade é pedir a duas pessoas apaixonadas que se relacionem friamente.

Assim sendo, de acordo com McGrath, a espiritualidade cristã é “um dos assuntos mais fascinantes que alguém pode estudar”.

Este livro se propõe a ser uma introdução à história da espiritualidade cristã, a partir da vida de trinta e dois importantes personagens da história da igreja. Em ordem cronológica, são eles: Policarpo de Esmirna, Irineu de Lião, Atanásio de Alexandria, Basílio de Cesaréia, Agostinho de Hipona, Leão Magno, Bento de Núrsia, Anselmo de Cantuária, João Wycliffe, João Huss, Tomás de Kempis, Martinho Lutero, Filipe Melanchthon, Ulrico Zuínglio, João Calvino, William Tyndale, Richard Baxter, John Bunyan, Blaise Pascal, Johann Sebastian Bach, Jonathan Edwards, John Wesley, William Carey, William Wilberforce, José Manoel da Conceição, Charles Spurgeon, Abraham Kuyper, Karl Barth, Dietrich Bonhoeffer, C. S. Lewis, Francis Schaeffer e D. M. Lloyd-Jones.

Muito já se escreveu sobre a espiritualidade cristã, sob os prismas devocionais ou pastorais. Em inglês, existem obras que cobrem a história da espiritualidade. Mas, em português, ainda que tenhamos bons livros publicados sobre devoção e espiritualidade, somente recentemente começou-se a publicar algumas obras sobre a história da espiritualidade. Este livro tenta preencher tal lacuna, na medida em que considera a vida de alguns dos principais pensadores cristãos como o terreno onde a devoção e a espiritualidade cristã foram formadas. Assim, busco demonstrar a ligação entre devoção disciplinada, erudição, produção teológica e renovação eclesial e social.

As personagens tratadas nesse livro foram escolhidas obedecendo a três critérios. O primeiro considerou a influência que certos personagens têm em toda a igreja cristã, não apenas uma denominação ou segmento. Aqui podemos destacar Irineu, Atanásio, Basílio, Agostinho, Leão, Anselmo, Lutero, Calvino e Barth, cujos escritos e influência permanecem até hoje conosco. A bibliografia produzida acerca destes personagens e de seus escritos teológicos é imensa, o que dá testemunho de sua influência duradoura. O segundo critério foi a influência salutar que alguns destes personagens podem desempenhar, se forem descobertos por pastores e líderes evangélicos no Brasil. Aqui podem ser nomeados Policarpo, Bento, Tomás de Kempis, Baxter, Bunyan, Edwards, Wilberforce, Conceição, Spurgeon, Kuyper, Lewis, Schaeffer e Lloyd-Jones. A vida e obra de cada um destes personagens merecem um estudo mais aprofundado por parte dos cristãos brasileiros. E o último critério foi o interesse desse autor em pesquisar mais sobre estes personagens. Obviamente, tal interesse se estende a todos os biografados. Mas pode-se citar, mais especificamente, Wycliffe, Huss, Melanchthon, Zuínglio, Tyndale, Pascal, Bach, Wesley, Carey e Bonhoeffer.

Nessa nova edição há dois capítulos inéditos, que tratam de Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer. Preciso, nesse ponto, oferecer uma explicação da inclusão destes dois personagens nessa obra.

Ao fim do século xix, as igrejas reformadas e luteranas na Suíça e na Alemanha haviam sido seduzidas pela teologia liberal. Karl Barth não apenas rompeu com este método teológico, mas também o criticou de forma veemente e definitiva, e ele deve receber o crédito por este feito. Ele escreveu o comentário à Carta aos Romanos, considerado um dos mais importantes tratados teológicos do século xx, no qual criticou impiedosamente o liberalismo teológico e o sentimentalismo religioso.

Curiosamente, na atualidade, alguns tentam buscar respaldo em Barth para justificar posições liberais, opostas às doutrinas centrais da fé cristã. Estes tomam um elemento isolado dos escritos de Barth e a empregam para fazer conexões com, por exemplo, a teologia da esperança – a qual ele não conseguia diferenciar do “princípio esperança” marxista. Este é um tipo de apropriação que ele, sem dúvida, repudiaria.

Barth ainda é um teólogo influente na atualidade, ensinando a muitos a fazer teologia confessional, a escrever em diálogo com os Pais da Igreja e os reformadores do século xvi, a basear as formulações dogmáticas numa exegese do texto bíblico centrada em Cristo Jesus e a ambicionar uma teologia sistemática esteticamente bonita.

Portanto, ainda que discordemos da interpretação de Barth sobre a Criação, de sua compreensão da inspiração da Escritura, e de sua explicação da predestinação, deve-se admitir que ele foi um dos grandes teólogos do século passado. Michael Horton avaliou judiciosamente a importância deste escritor para a igreja cristã:

Quaisquer sejam suas deficiências com respeito a sua própria doutrina das Escrituras, o projeto de Barth ao menos representa uma revolução copérnica na história da teologia moderna no que diz respeito ao menos a este ponto: opondo-se ao antropocentrismo do neo-protestantismo com um teocentrismo absoluto que direcionou novamente a luz sobre a iniciativa divina. Deus não apenas determina a resposta, mas também as perguntas. Temos todas as razões para desafiar a doutrina da Palavra de Deus de Barth, mas no que diz respeito à fonte da teologia, estamos juntos: a Escritura, e não a igreja ou a cultura é a norma normans non normata (a norma que normatiza, mas ela própria não é normatizada).

Baseando-se na herança do pietismo, (…) outros [autores] que defendem um evangelicalismo pós-conservador normalmente exibem uma visão mais schleiermachiana que bartiana das Escrituras e da doutrina. Enquanto Barth falou claramente sobre pecado e graça, a pregação e a teologia evangélica de hoje tendem a falar em termos de disfunção e recuperação, distendendo a missão de Cristo ao ‘encarnar’ seu amor e vida transformadora. Barth estava convencido que seres humanos não poderiam contribuir para sua própria redenção e que nada menos que um ato soberano da misericórdia divina era necessário [para tal]. Por contraste, o evangelicalismo está sendo crescentemente inundado por um pelagianismo prático que justifica a avaliação de Bonhoeffer de que o cristianismo americano é um ‘protestantismo sem reforma’. Atualmente, um número crescente de teólogos evangélicos compartilha o antigo desconforto liberal com a doutrina do sacrifício substitutivo de Cristo, enquanto (…) estudantes e admiradores de Barth o defendem. Alguns evangélicos contemporâneos demonstram uma maior abertura a outras religiões como fontes de revelação redentiva, enxergando o evangelho em termos de seguir o exemplo de Cristo (…). Qualquer que seja nossa posição sobre as tendências ‘otimistas’ de Barth em direção ao universalismo, elas são embasadas em sua visão da graça e eleição divina, com Cristo somente como o fundamento. Em outras palavras, o monergismo do cristianismo reformado tem Barth como seu defensor corajoso, em contraste com o evangelicalismo (…). Na terra do ‘protestantismo sem a reforma’, Barth é, de fato, uma voz revigorante. Eu me junto à galeria dos admiradores, especialmente quando as alternativas são o liberalismo ou o fundamentalismo, movimentos que têm mais em comum um com o outro (a saber, a herança pietista) que com o cristianismo reformado. Cristãos reformados confessionais podem aprender muito de Barth (…). No entanto, estou convicto de que onde estas estradas divergem, ocorre um declínio ao invés de uma renovação do legado reformado. Barth permanece como uma figura importante com que se pode contar, não para ser levianamente desconsiderado, nem para ser abraçado sem crítica. Para o bem ou para o mal, sua voz ainda é ouvida entre nós.

Então, usando as palavras de Barth com uma ênfase um pouco diferente, nos entristecemos em discordar dele, contudo somos compelidos a isto em obediência às Escrituras. Mas isso não anula sua importância para a história da igreja e o estudo da fé cristã.

Sobre Dietrich Bonhoeffer, é necessário lembrar que foi somente após 1950 que seus escritos ocasionais e fragmentários foram redescobertos. E estes foram interpretados muitas vezes por meio de especulação ou mera projeção. Infelizmente, como disse Ernesto Bernhoeft, “muitas expressões [de Bonhoeffer, especialmente em Resistência e submissão,] foram interpretadas erroneamente ou sequer foram entendidas”. Então, de acordo com Eberhard Bethge, intérpretes liberais falharam em manter uma continuidade entre seus escritos mais antigos, cujo teor ele mantinha integralmente, e suas cartas da prisão, extrapolando suas ideias “no interesse do marxismo”, citadas como inspiradoras de metodologias teológicas tão díspares como as teologias da libertação latino-americanas e a teologia da morte de Deus anglo-saxônica.

Muitos evangélicos rejeitam os escritos de Bonhoeffer, tratando-os como mera variante do liberalismo teológico do século xix. Com isso, estes deixam de se beneficiar de livros valiosos para a fé cristã, como Vidaem comunhão e Discipulado, e perdem de vista percepções instigantes e provocadoras, como: a religião como idolatria; o tenso equilíbrio entre o viver no mundo “como se Deus não existisse” e a necessidade da “disciplina do segredo” (disciplina arcani) por parte da igreja; e a fraqueza de Deus em Cristo revelada na cruz.

No entanto, de seus escritos emerge um quadro teológico com nuances e complexidades, e tanto evangélicos como liberais permanecem desconfortáveis diante do quadro maior, no qual a sua oposição política ao nazismo foi resultado direto de sua teologia. Mas a pergunta importante é: o que podemos aprender dos escritos de Bonhoeffer para sermos melhores cristãos? Logo, ainda que discordando de algumas de suas posições, reconheço que ele foi um seguidor de Cristo, que cria no evangelho, e que a nossa fé pode ser encorajada pela leitura de suas obras e do estudo de sua vida.

Ainda que este livro tenha uma perspectiva histórica, os estudos de tais biografias, juntas, nos fornecem pistas para uma teologia da espiritualidade cristã. Mas, antes, é necessário fazer um alerta ao leitor: estas personagens nos lembram da imagem bíblica de que a vida cristã é uma peregrinação (1Pe 2.11), e, como peregrinos, exemplificam a multiforme sabedoria de Deus (Ef 3.10) e combatem a popular ideia de que há um modelo único, normativo, de espiritualidade cristã.

Levando-se em consideração que se tornou tão comum criar categorias rígidas para julgar a devoção – com o surgimento de rótulos banais e superficiais –, essas vidas lembram que nossa peregrinação cristã é individualizada e não pode ser resumida a chavões. Cada um de nós dará contas de si mesmo a Deus. Por isso, não existe um modelo pelo qual nossa espiritualidade deva ser medida. A devoção não pode ser resumida a caricaturas simplistas ou reducionistas. Em outras palavras, não existe um modelo único de espiritualidade cristã. O que devemos aprender de mais importante é que a espiritualidade e a devoção não devem ser exibidas (Mt 6.1-8). As personalidades retratadas neste livro não gastaram seu tempo falando das próprias experiências com Deus, mas empreenderam a vida para promover a glória de Deus no sacrifício de seu Filho bendito, recebido por meio do Espírito e ensinado e afirmado na Escritura.

Podemos, então, resumir dez princípios teológicos que emergem deste estudo histórico.

1. O primeiro princípio é que na vida de todas as personagens aqui estudadas é enfatizada a conversão do pecado, como fruto da graça livre e soberana de Deus. Isso é exemplificado especialmente na vida de Agostinho, Lutero, Pascal, Wesley e Lewis. Como resultado, esses homens se percebiam peregrinos, cuja pátria está nos céus. A grande ambição da vida deles era a glória de Deus, e para isso viveram, escreveram, pregaram e serviram ao bem comum.

2. Podemos constatar que a espiritualidade na vida dos nossos biografados é moldada pela Escritura. Deus revela seu amado Filho nas Escrituras, inspiradas pelo Espírito Santo e, por isso, sem erro. Kenneth Kantzer nos diz que a Bíblia, assim como Martinho Lutero nos ensinou muitos anos atrás, é o berço pelo qual Cristo vem a nós. Se tirássemos o bebê do berço e o colocássemos na rua, ele morreria. E se o berço fosse instável e fraco, prejudicaria a segurança do bebê. Da mesma maneira, a doutrina da inerrância é a salvaguarda de uma fé cristã saudável e completa.Em conexão com isto, nossas personagens enfatizaram fortemente uma teologia exegética e bíblica. George Eldon Ladd nos diz que:

A teologia bíblica é a disciplina que estrutura a mensagem dos livros da Bíblia em seu ambiente formativo histórico. A teologia bíblica é primariamente uma disciplina descritiva, cuja abrangência não busca primeiramente o significado final dos ensinos da Bíblia ou sua relevância para os dias atuais, uma tarefa da teologia sistemática. A tarefa da teologia bíblica é expor a teologia encontrada na Bíblia em seu contexto histórico, com seus principais termos, categorias e formas de pensamento. O propósito óbvio da Bíblia é contar a história a respeito de Deus e de seus atos na história para a salvação da humanidade.

Ainda que concordando com a definição de Ladd, devemos ir além, e afirmar que o propósito da teologia bíblica não é ser meramente descritiva. A teologia bíblica tem um papel também normativo, uma vez que demonstra o significado do texto e sua relevância para a vida cristã. Isso pode ser exemplificado nas Institutas da religião cristã, de João Calvino. Exposta de maneira sistemática, a teologia presente nesta obra, desenvolvida em torno do Credo dos Apóstolos, começa com a compreensão do texto bíblico em seu contexto histórico. Por esta característica, as Institutas se tornaram, nas palavras de Alister McGrath, “uma declaração definitiva sobre a natureza da fé cristã (…), a obra teológica de maior influência da Reforma Protestante”.

Essa teologia também está unida à pregação e ao uso da imaginação. Como modelo de teólogos criativos e bíblicos, temos Irineu, Basílio, Agostinho, Leão, Lutero, Calvino, Edwards e até mesmo Barth. Nos textos deles, o uso das ferramentas filosóficas está a serviço do estudo das Escrituras. Por outro lado, em Lloyd-Jones, Spurgeon e Wesley temos modelos de grandes pregadores, cuja mensagem era centrada em Cristo Jesus, morto e ressurreto, e que construíram sobre o legado de seus predecessores. E em Bunyan, Bach e Lewis temos modelos do uso da imaginação, saturada da linguagem das Escrituras, sempre para a edificação da igreja e para a glória de Deus.

3. Outra característica que se destaca é um forte senso de inadequação para o ministério cristão, e isso está presente em quase todos os biografados, mas é exemplificado especialmente na vida de Atanásio, Agostinho e Calvino. Quando completou oitenta anos, Karl Barth comparou seu próprio trabalho como teólogo ao jumento que carregou Jesus Cristo para Jerusalém (Mt 21.1-3):

Se fiz alguma coisa nesta minha vida, o fiz como parente do jumento que seguiu seu caminho carregando um importante fardo. Os discípulos haviam dito a seu dono:‘O Senhor precisa dele.’ E, assim, parece que agradou a Deus ter-me usado nesse tempo, exatamente como eu era, a despeito de todas as coisas, as coisas desagradáveis, que muito corretamente são e serão ditas sobre mim. Assim fui usado. (…) Apenas aconteceu de eu estar no ponto certo. Uma teologia um pouco diferente da teologia usual fazia-se claramente necessária em nossa época, e foi-me permitido ser o jumento que carregou essa teologia melhor ao longo de parte do caminho, ou tentou carregá-la da melhor forma que pude.

Como veremos, todos eles foram pastores e reformadores relutantes. Sabiam que eram pequenos para a grande tarefa à qual Deus os chamou. Sabiam que sua suficiência estava em Deus. Por isso, relutaram em entrar para o ministério cristão. Alguns chegaram a lutar para não entrar no ministério cristão! Eles sabiam que pecadores falarem do Deus vivo para outros pecadores não era uma tarefa corriqueira.

4. O teólogo reformado holandês G. C. Berkouwer disse certa vez para seus alunos na Universidade Livre de Amsterdã que todos os grandes teólogos começam e terminam a sua obra com uma doxologia. Na vida das nossas personagens, piedade e louvor caminham lado a lado com erudição e conhecimento. Não há uma falsa polarização, tão comum em nosso tempo, entre estudo e devoção ou luz e paixão nesses homens, e isso pode ser visto nas obras de Irineu, Atanásio, Agostinho, Lutero, Calvino, Edwards e Barth. Eles escreveram e pensaram para a glória de Deus e edificação da igreja.

5. A maioria das personagens que estudaremos nesta obra foram pastores – e grandes pastores. E, neles, as artes esquecidas do discipulado, da mentoria, da catequese e da evangelização estavam unidas. Vemos isso especialmente em Bento, Tomás de Kempis, Baxter, Wesley, Conceição e Bonhoeffer.

6. Essas personagens moldaram o que tem sido chamado de cosmovisão cristã, isto é, uma visão integral da obra de Deus na criação e restauração de todas as coisas, com suas abrangentes aplicações para a vida espiritual, social e cultural. Isso é notado sobretudo em Kuyper, mas também em Schaeffer.

7. A fé que esses homens tinham na graça de Deus também estava ligada ao seu serviço à sociedade. Eles se dedicaram não apenas à igreja, mas serviram a homens e mulheres de forma integral. Fundaram escolas, universidades, hospitais, lutaram pela abolição da escravatura, traduziram Bíblias e alimentaram os pobres. Essa característica é notada principalmente em Basílio, Melanchthon, Wilberforce e Kuyper.

8. No estudo dessas personagens, devemos destacar a ênfase na comunhão dos santos. Pode ser de ajuda ter em mente que a igreja cristã estava unida até o século xi, quando a igreja ocidental e a igreja oriental se dividiram. E, no século xvi, a igreja ocidental novamente se dividiu, durante a reforma protestante, quando a mensagem central das Escrituras foi redescoberta – Deus salva pecadores somente pela graça, recebida pela fé somente.Principais Ramos da Igreja Cristãséc. I ao séc. XI       A Igreja Cristã

século XI       Católica Ocidental       Católica Oriental

século XVI       Protestante       Católica Romana       Católica Oriental       Igrejas Protestantes

século XVI       Anabatista    Reformada       Luterana       Anglicana

século XVII       Puritanos (presbiteriana, congregacional, batista)

século XVIII       Metodista

século XX       Pentecostal

Adaptado de What It Means To Be Reformed: An Identity Statement. Grand Rapids, MI: CRC, 2002, p. 8.

O gráfico anterior pode ajudar o leitor a situar as várias personagens deste livro no ramo denominacional a que pertencem, e seu lugar na história da igreja. Mas, ao mesmo tempo, devemos lembrar o que o famoso evangelista inglês do século xviii, George Whitefield, afirmou, num sermão:

Pai Abraão, quem está com você nos céus? Os episcopais? Não! Os presbiterianos? Não! Os independentes ou metodistas? Não, não, não! Quem está com você? Nós, aqui, não sabemos seus nomes. Todos os que estão aqui são cristãos (…). É esse o caso? Então, Deus, nos ajude a esquecer o nome de grupos e nos tornarmos cristãos de verdade.

A vida desses homens nos lembra que a igreja é maior que uma denominação. Na Escritura, o vocábulo igreja nunca é usado para designar um prédio, uma denominação ou a influência cristã na sociedade, mas a grupos locais reunidos para ouvir a Palavra de Deus (At 8.1; Rm 16.16; 2Ts 1.4), e a todo o povo de Deus, através dos séculos (Mt 16.18; 1Co 15.9; Ef 5.25). A igreja é composta de todos aqueles que confiam e descansam apenas no sacrifício único de Cristo na cruz. Então, somos chamados a apreciar a multiforme graça de Deus que age além da denominação à qual pertencemos. Como bem lembra Bruce Shelley:

A ideia [do termo denominação] remonta a uma ala minoritária do partido puritano na Inglaterra do século xvii. Na Assembleia de Westminster (1643) havia um grupo de independentes [congregacionais (…)]. Esses homens chegaram à conclusão de que a condição pecaminosa do ser humano, até mesmo dos cristãos, tornava impossível a compreensão da plena e clara verdade de Deus. Desse modo, nenhum conjunto único de crenças poderia jamais representar plenamente a exigência total de Deus sobre a mente e o coração dos crentes, e nenhum corpo único de cristãos poderia afirmar ser a verdadeira igreja de Deus sem considerar outros crentes em outros grupos. Assim sendo, na mente desses puritanos, a palavra denominação implicava em que um corpo particular de cristãos (digamos, por exemplo, os batistas) era apenas uma parte da igreja cristã total, chamada – ou denominada – por seu nome especial, batista.

Que o estudo dessas personagens nos estimule para que venha a ser verdade em nosso tempo o antigo dito cristão: “Em coisas essenciais, unidade; nas não essenciais, liberdade; em todas as coisas, caridade”.

9. A vida dos biografados foi marcada por grande coragem. Eles dominaram seus medos e confiaram na graça e soberania de Deus. Eles seguiam a senda do Cristo sofredor. Isso é exemplificado na vida de Policarpo, Atanásio, Huss, Tyndale, Carey e Bonhoeffer.

10. Seguindo-se a esse ponto, em todas as personagens temos exemplificada a ligação entre devoção, avivamento e triunfo escatológico. Deus conduz sua igreja por meio de contínuos avivamentos na história, o que nos faz esperar pela vinda triunfante de Cristo no último dia. Por isso, nossas personagens continuaram a servir a Deus de forma corajosa, sem nunca ficarem desiludidos ou sem esperança. Já que o Senhor Jesus Cristo ressuscitou dentre os mortos, eles não seriam derrotados de forma alguma, se Deus estivesse ao seu lado.

O teólogo medieval Pierre de Blois, que viveu cerca de trezentos anos antes de Lutero, afirmou que somos anões espirituais, e, quando estudamos os escritos dos gigantes do passado, no caso, os Pais da Igreja, nos colocamos sobre seus ombros, vendo mais longe. Sou devedor de vários escritores contemporâneos, sobretudo dos textos do eminente historiador metodista Justo Gonzalez. Mas, intencionalmente, evitei escrever um texto acadêmico. Por isso, ao final de cada capítulo, o leitor poderá encontrar não apenas sugestões de leituras para aprofundamento, mas também a recomendação dos livros escritos por esses homens, que, em nome de Cristo, nosso Senhor, fizeram a história da igreja, e que servirão de edificação, desafio, correção, conforto e estímulo em nossa peregrinação. Ao fim do livro são citadas outras obras em língua inglesa que foram úteis na preparação deste livro e que podem ter utilidade para o leitor.

O tema comum a todas as vidas abordadas neste livro é a glória de Deus. Que em tudo o Deus Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, receba a glória: “Pois dele, por ele e para ele são todas as coisas. A ele seja a glória para sempre!” (Rm 11.36).


Autor: Franklin Ferreira

Franklin Ferreira é bacharel em Teologia pela Universidade Mackenzie e mestre em Teologia pelo Seminário Batista do Sul (RJ). Diretor do Seminário Martin Bucer e consultor acadêmico de Edições Vida Nova, Franklin é co-autor do livro “Teologia Sistemática” e autor dos livros “Servos de Deus” (Fiel) e “A Igreja Cristã na História” (Vida Nova).

Ministério: Editora Fiel

Editora Fiel
A Editora Fiel tem como missão publicar livros comprometidos com a sã doutrina bíblica, visando a edificação da igreja de fala portuguesa ao redor do mundo. Atualmente, o catálogo da Fiel possui títulos de autores clássicos da literatura reformada, como João Calvino, Charles Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, bem como escritores contemporâneos, como John MacArthur, R.C. Sproul e John Piper.

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