domingo, 17 de novembro
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Uma breve exortação sobre a liberdade cristã, nossos hábitos e a glória de Deus

“Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus”. 1 Cor. 10.31

O versículo acima é uma exortação segura que lembra-nos de que todos os nossos atos devem ser voltados à glória de Deus. Isto é certo e bom.

Mas, ler esse texto em seu contexto ajuda-nos a entender como o apóstolo Paulo chegou a tal conclusão.

A questão que ele vinha tratando desde o capítulo 8, era sobre a indevida associação do cristão com a idolatria. Ele trata isso com muita seriedade, e alerta ao cristão, usando o exemplo das “coisas sacrificadas a ídolos” como uma forma inaceitável de associação do cristão com a idolatria. Paulo usa uma linguagem forte ao dizer que tais práticas significam “provocar o zelo do Senhor” e “associar-se a demônios”. Estabelecer esse ponto era muito importante, dada a aparente presunção dos coríntios de que aquela comunhão intencional com o que havia de pior naquela cultura pagã era uma questão de somenos importância.
Uma vez estabelecido este ponto, o apóstolo passa a demonstrar que a liberdade cristã da qual desfrutamos não pode dar margem para que cometamos abusos ou causemos, indiretamente, mal a nossos irmãos na fé.

A questão da unidade no corpo de Cristo, na igreja, portanto, é uma das grandes preocupações do apóstolo Paulo nesta passagem. É esse ponto que analisaremos, buscando refletir como ele toca sensivelmente em questões que envolvem o nosso convívio com os cristãos hoje em dia – sobretudo diante da realidade multifacetada e polarizada do cristianismo de confissão evangélica de nossos dias.

Nesta passagem de 1 Coríntios 10.31, Paulo está tratando a respeito de práticas (neste caso ele cita uma específica, mas há aplicação para outras) que conquanto em si e por si mesmas não sejam [aparentemente] pecaminosas, podem, de alguma maneira, causar escândalo ou tropeço para outrem. É interessante notar que em outro lugar Paulo lida com uma questão muito semelhante, em suas exortações em Romanos 14, particularmente os versos 22 e 23.

“A fé que tens, tem-na para ti mesmo perante Deus. Bem aventurado é aquele que não se condena naquilo que aprova. Mas aquele que tem dúvidas é condenado se comer, porque o que faz não provem de fé; e tudo o que não provem de fé, é pecado”.
No caso de Romanos 14.22,23, ele faz a mesma aplicação de 1 Cor. 10.31. Os versículos que lemos, são uma conclusão da exposição que Paulo faz a partir do capítulo 14 até ao capítulo 15.

O exemplo que o apóstolo Paulo usa para frisar um valor maior e estabelecer um princípio no relacionamento entre os irmãos em Cristo, é sobre algo que estava presente em várias das igrejas às quais ele ministrava, sobretudo aquelas de maioria gentílica e que estavam mais expostas à cultura fortemente pagã daqueles tempos, como a igreja em Corinto, na Grécia, e a de Roma.

No texto de Romanos, Paulo usa dois exemplos, que são justamente o da comida e da guarda dos dias (Rm. 14.1-5), para estabelecer qual deve ser a conduta do cristão diante de certas controvérsias, oriundas da diversidade que há entre eles:

1) É bom frisar que a referência que Paulo faz em Romanos a respeito dos dias e da alimentação é diferente da que ele faz em Gálatas 4.10 e em Col. 2.16-23, pois, nestes casos, a referência a estes assuntos está ligada a utilização deles como uma adulteração da mensagem do evangelho. Quando princípios básicos do evangelho estão em jogo, a atitude de Paulo é sempre zelosa e severa.

2) Neste caso, a referência a este problema dos dias e da alimentação, aparentemente, não era a respeito de algo que ferisse os pontos “cardeais” do evangelho, mas, estava ligada à força ou fraqueza relativas à fé noevangelho.

É importante estabelecer esta distinção a fim de que entendamos bem qual a mensagem do apóstolo nesta situação. Em outras palavras, Paulo não estava preocupado, neste contexto, com a questão da alimentação ou dos dias em si, mas com a maneira como nos comportamos diante de situações em que nos deparamos com posições e pensamentos diferentes dos nossos, sobre assuntos que não fazem parte essencial do evangelho, mas que fazem parte da vida cristã.

A exortação do apóstolo estabelece alguns princípios de grande valor, os quais devemos, como cristãos, observar:

  • Temos de identificar, em nossas próprias vidas, se a nossa “comida” ou “seleção de dias”, de alguma maneira, ofende a um irmão nosso que é fraco na fé (ou novo na fé):

Paulo não estava preocupado em debater os exemplos que ele mesmo mencionou (Rm.14.2-5), mas, o seu claro objetivo era admoestar aos cristãos a que não permitissem que estas diferenças de opinião viessem a ser motivo de contenda entre eles, ou ainda, viesse a se constituir como tropeço para aquele mais fraco na fé e, por outro lado, intolerância por parte daquele que, tendo mais esclarecimento, e, portanto, liberdade para certas práticas, tenha causado o escândalo ao seu irmão.

É muito melhor fortalecermo-nos na unidade do que distanciarmo-nos na diversidade que há entre nós. Os versículos 7 e 8 de Rom.14 evidenciam esta verdade.

Então, a primeira grande verdade que podemos perceber destes dois textos tão ricos, está ligada à nossa percepção e sensibilidade quanto ao nosso próximo: devemos “acolher o que é débil na fé”. Isto significa, que embora tudo – o que não é pecado – nos seja licito, nem tudo nos convém. E, que em nome do amor cristão, não devemos procurar nossos próprios interesses – I Cor. 13.5 – antes, se for necessário, devemos “abrir mão” de certas práticas que, mesmo não sendo pecaminosas, afetam ou podem afetar a vida do nosso próximo, então, por amor a eles, temos de fazer isto.

Temos de ser sensíveis às carências e dificuldades de compreensão de nossos irmãos. Será que estamos dispostos a abrir mão de nossa “comida” para não causar tropeço a alguém? O ponto aqui é compreender que estas coisas, o amor ao nosso irmão e nosso uso da liberdade cristã, são coisas que tocam na glória do Senhor, ou seja, a forma como lidamos com essas coisas glorificarão ao Senhor – ou o ofenderão.

***

Pensar nessas coisas pode ser algo que venha a nos ajudar a considerar sobre nossos hábitos e práticas com relação a nós mesmos.

Deus requer de nós, como já vimos, que façamos tudo com consciência limpa, diante das Escrituras – do Logos, portanto, d’Ele mesmo – de nossos irmãos, e, diante de nós mesmos; mais ainda, requer que tudo seja para a glória dEle.

Esta afirmação do apóstolo, deve nos levar a refletir se nossos hábitos glorificam a Deus. Ainda que eles (nossos hábitos) não sejam questionados (julgados) pelos outros, devemos, conforme nos exorta a Palavra em 2 Cor. 13.5, examinar a nós mesmos para sabermos se estamos de fato na fé.

Esta consideração é importante e necessária, e, a análise de nossas práticas diante de nossos irmãos, conforme acabamos de ver, deve nos levar a refleti-las também diante de nós mesmos.

A pergunta a se fazer é a seguinte: Temos glorificado a Deus no nosso comer e beber?, ou seja, nos nossos hábitos?

Vejamos esta questão da seguinte maneira:

Temos ouvido muitas vezes pessoas dizendo que deixam de fazer certas coisas, coisas que até consideram importantes, porque não têm tempo para elas. O dia possui 24 horas para todas as pessoas, inclusive para o presidente do Brasil ou para o presidente dos EUA, enfim, todos absolutamente dispõem da mesma sucessão de segundos, minutos e horas, que nos provê a sensação de passado, presente e futuro e chamamos tempo. Todos, igualmente, dispõem do mesmo tempo.

O nosso dia a dia é preenchido, por assim dizer, por nossos hábitos, e, nossos hábitos, são constituídos por nossas prioridades. Logo, nossos hábitos revelam aquilo que priorizamos mais em nossas vidas.

Hábito é a disposição adquirida pela repetição dum ato, uso, costume.

Rotina: Seqüência de atos, usos, observadas pela força do hábito.

A rotina é, portanto, uma seqüência de hábitos durante o tempo.

Todos nós temos hábitos, invariavelmente. Nossa rotina é formada por uma sucessão de hábitos, e, nossos hábitos são constituídos pela repetição de certos atos, e, estes atos são determinados de acordo com a nossa vontade, e, a nossa vontade está submetida à nossa natureza.

O problema reside no fato de que em nós há uma luta de nossa velha natureza – aquela que herdamos de Adão no nosso nascimento natural, e aquela da qual somos revestidos a partir do nosso novo nascimento em Cristo. Martinho Lutero, a este respeito, disse que somos: simul Justus et pecator. “Ao mesmo tempo justo e pecador”.

Temos de cuidar, portanto, para que nossos hábitos estejam agora vinculados à nossa nova natureza, a fim de que possamos cumprir a exortação de Paulo em 1 Cor. 10.31: fazer tudo para a glória de Deus, e Rm. 14.23, fazer todas as coisas pela fé.

Esta não é uma tarefa fácil. Vemos isto no dilema vivido pelo apóstolo Paulo em Rm. 7.24 e 1 Cor. 9.27, onde vemos a dualidade entre a carne (sarx) – onde a o corpo (soma) físico é ilustrado como meio de expressão do pecado – e a ação do Espírito Santo em nossos corações (Rm. 9.28).

Pensemos, pois, em nossos hábitos na forma de indagação, e respondamos com franqueza a nós mesmos:

  • O que preenche nosso tempo e nosso pensamento?

Temos de considerar esta pergunta da seguinte maneira:

As práticas que constituem nossos hábitos podem ser que em si mesmas, ou, como fim, não sejam pecaminosas, mas, quando se integram à nossa rotina, e, de alguma maneira sufocam outras práticas que deveriam estar em primeiro lugar, aí pecamos. A ênfase recai, portanto, nas nossas prioridades; naquilo que escolhemos fazer com nosso tempo. De alguma maneira, nossos hábitos revelam quem nós somos, pois revelam as escolhas que fazemos diariamente. Devemos lembrar que nossas escolhas estão submetidas à nossa vontade e nossa vontade está submetida à nossa natureza.

Mais uma vez, a conclusão é que devemos avaliar nossa prática, nossos hábitos, nossa preferência e nosso procedimento com nosso irmão sob a ótica daquilo que honra a Deus e o glorifica. Essa é a pedra de toque, afinal de contas.


Autor: Tiago Santos

Tiago Santos é Diretor Executivo do Ministério Fiel, um dos pastores da Igreja Batista da Graça e co-fundador e diretor do programa de estudos avançados no Seminário Martin Bucer. É bacharel em direito pela Universidade do Vale do Paraíba e estudou teologia no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper e na Universidade Luterana do Brasil. Casado com Elaine e pai de três filhos: Tiago, Gabriel e Rebeca.

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Ministério Fiel: Apoiando a Igreja de Deus.

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