1. Se desde a eternidade Deus escolheu algumas pessoas, mas não outras para a salvação, de acordo com o seu soberano querer, Ele não é justo. Ele revela parcialidade e, assim fazendo, prova que “há injustiça” de sua parte.
Deste modo, o Juiz de toda a terra é julgado pelo homem pequenino, que não pode acrescentar sequer uma polegada à sua própria estatura. Não há uma enorme incoerência nalgum lugar, uma lamentável má compreensão do caráter de Deus e dos ensinos claros de sua Palavra, quando o Infinito tem de ser trazido a juízo por homens falíveis? Deve haver.
A dificuldade não está na justiça de Deus, e sim na inteligência humana em não compreender a relação entre a justiça e a graça divina. A salvação não se fundamenta, de maneira alguma, no rígido princípio da justiça; pelo contrário, fundamenta-se no fato de ser ela o livramento da justiça. Se Deus tivesse resolvido exercer justiça para com os filhos caídos de Adão, nenhum deles poderia salvar-se. A justiça não é, em sentido algum, um fator determinante na salvação de nenhum homem. Se, portanto, Deus escolhe salvar alguns e não outros, conforme o provam os acontecimentos de cada dia, Ele ainda pode ser justo, como o seria, se não houvesse escolhido a ninguém da raça pecadora para a salvação. Este é um fato que o calvinista professa logicamente como uma das verdades das Santas Escrituras.
2. Se desde a eternidade Deus escolheu algumas pessoas, mas não outras, para a salvação, de acordo com o seu soberano querer, o homem não é responsável. Ele não pode mudar o curso de seu destino, mesmo se desejasse fazê-lo. O seu destino está determinado, pois ele não tem vontade própria quanto a este assunto. O homem não é “um agente moral livre”, não importando o que isto signifique, e, portanto, não é responsável.
“Que diremos, pois?” A objeção à primeira vista parece ser séria ou, então, existe um grande engano a seu respeito. É evidente que existe. A dificuldade não está na escolha por parte de Deus, e sim na má compreensão humana sobre a relação entre a responsabilidade do homem e a salvação divina. A objeção baseia-se na presunção de que a responsabilidade do homem descansa sobre algo fora dele mesmo; que ele é responsável apenas por algum ato especial de Deus; que, se Deus não o escolhe para a salvação, ele não pode responder por coisa alguma que ele faz ou deixa de fazer como um ser racional. Mas o fato é que a responsabilidade do homem e sua salvação são duas coisas muito diferentes, tão diferentes que a primeira pode existir (e existe) sem a segunda. O homem não é responsável por sua salvação, e sim pelos seus pecados. Ele é um agente livre quanto à sua conduta como um ser racional e no final será julgado a respeito do bem ou do mal que praticou e não pela sua salvação. Sua salvação talvez não será mencionada, quando ele se apresentar diante do tribunal de Deus; porém, os seus maus feitos ou o bem que praticou em nome do Senhor virão à luz. “Ao Senhor pertence a salvação” e o homem, portanto, não pode ser responsável por aquilo que não lhe pertence. Mas todo homem deve responder diante do tribunal de Deus pela sua conduta individual. O pecado é uma violação do relacionamento entre o Criador e suas criaturas racionais, e este relacionamento constitui o princípio fundamental da responsabilidade do homem. Se ninguém foi salvo, apesar disso, todas as criaturas inteligentes serão responsáveis – “Pois todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3.23).
3. Se desde eternidade Deus escolheu algumas pessoas, mas não outras, para a salvação, de acordo com o seu soberano querer, o uso dos meios para alcançar este objetivo é supérfluo. Os que estão escolhidos para a salvação salvar-se-ão de qualquer maneira, e os que já estão salvos não precisam se preocupar com este assunto; podem assentar-se, cruzar os braços e deixar que o destino misterioso faça sua obra.
Assim têm se comportado os “hipercalvinistas” e outros fatalistas.
Esta conclusão, porém, não se fundamenta na Palavra de Deus, tampouco na experiência do seu povo eleito. É perfeitamente certo que Deus escolheu tanto os meios como o fim e mandou ao seu povo trabalhar e orar pela salvação do mundo. E colocou no mais profundo do coração dos seus servos consagrados o fazer exatamente isto — “pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.10).
Os eleitos não-santificados, que vagueiam pelo mundo como ovelhas sem pastor, devem, por algum meio, ser chamados. Ora, visto que Deus ordenou a instrumentalidade humana para chamá-los à salvação, sem ter revelado aos homens quem são exatamente os seus eleitos no mundo, nós, que já respondemos ao seu chamado, somos aqueles que dirigem-se a todo homem com as boas-novas do evangelho, para reunirmos no céu os que pertencem a Ele. “Semeia pela manhã a tua semente e à tarde não repouses a mão, porque não sabes qual prosperará; se esta, se aquela ou se ambas igualmente serão boas” (Ec 11.6).
A doutrina da eleição eleva-se qual montanha majestosa sobre a planície das obras humanas. Contemplá-la visa despertar na mente mais indiferente o pensamento sobre a grandeza e a soberania do Deus de nossa salvação e inspirar na alma do fiel um interesse mais profundo pelas coisas atinentes ao seu reino. Nenhuma outra verdade se apossa da alma com mais firmeza do que a eleição da parte de Deus, e nenhuma outra verdade abala mais fortemente o fundamento das obras humanas. Permita-me o leitor citar uma experiência pessoal como exemplo deste fato.
Há alguns anos, minha mente pareceu dirigir-se especialmente à doutrina da eleição, encorajando-me a pregar aos meus amados dois entusiásticos sermões sobre o assunto. Para meu espanto, criou-se em nossa congregação o maior bulício que eu já vira. Mesmo os mais ponderados de nossa igreja tornaram-se grandemente perturbados pelo espírito de investigação e crítica. Alguns vieram após o primeiro sermão a inquirir mui fervorosamente se os batistas acreditavam no que eu acabava de expor. Comecei a pensar que, com toda a certeza, eu mexera em uma casa de marimbondos.
Bem cedo, na manhã seguinte, uma das irmãs dirigiu-se a mim com seus olhos inundados de lágrimas dizendo-me em tom doloroso: “Irmão, não consegui dormir toda a noite passada. Se o que você pregou a nós, ontem, é verdade, não sei porque orar pelos meus irmãos”. Respondi àquela irmã, com bastante mansidão: “Ora, você está me falando algo que eu não sabia; não sabia que você tinha alguns irmãos. Em nossas reuniões você nunca os mencionou, embora por muitos anos tenha se mostrado assídua em todas elas”. “Sim”, disse ela, “tenho dois irmãos perdidos, em Quincy”. Recomendei-lhe que orasse mais fervorosamente por eles e prometi que em minhas orações eu a auxiliaria quanto me fosse possível, porque, acrescentei eu, ambos podem ser eleitos de Deus.
Algumas semanas mais tarde, ela me procurou novamente, mas desta vez com júbilo em seu coração, dizendo-me que ambos os irmãos haviam se convertido em um culto de uma das igrejas batistas de Quincy; que um deles viera visitá-la e assistir ao culto que se realizava em nossa igreja. A lição essencial deste artigo é que a doutrina da eleição não constitui um entrave ao trabalho de ganhar almas. Quando bons crentes realmente se incomodam com os seus vizinhos e amigos, pensando se estes pertencem aos eleitos de Deus, algo grandioso acontecerá.