Lidando com o aconselhamento pastoral por alguns anos, tenho percebido que muitos dos grandes problemas que enfrentamos parecem resultar de uma equação simples e binária: Não queremos Deus e queremos ser Deus. No fim das contas, o verso e reverso de uma mesma moeda. A marca registrada da impiedade humana, a qual, desde as suas raízes, caracteriza-se ativamente por estultícia, soberba e idolatria. Em rigor, a impiedade que acometeu os seres humanos é isto, a saber, o desprezo a Deus, que se manifesta em virar as costas para ele e tentar assumir o controle de tudo.
A lógica falida de não querer Deus e querer ser Deus, logo percebi, pode também ser uma realidade muito fortemente ativa em mim, pastor e conselheiro. Se você, leitor, pastoreia um rebanho de Cristo, suponho que entende o que estou tentando dizer. Nós, pastores, estamos constantemente sujeitos à tentação tão antiga quanto a astuta serpente no jardim: “É certo que não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal.” (Gn 3. 4b-5).
O único pastor perfeito, Jesus Cristo, sofreu um ataque semelhante. No quarto capítulo do Evangelho de Mateus, lemos que ele foi levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo. Vemos neste texto três áreas de tentações frequentes no ministério pastoral.
“Manda que estas pedras se transformem em pães” (v. 3). Jesus estava com fome. “Supra sua necessidade física”, foi o conselho do maligno. A tentação para ser imediatista, por atender as necessidades do momento, suprir o povo naquilo que este julga ser as suas mais sérias e importantes necessidades… Em suma, agir inteiramente referenciado por interesses pessoais. Isso atinge o centro de nossa identidade. Trata-se de uma tentação muito sutil, pois não é prontamente reconhecida como tal. Geralmente, trocando alhos por bugalhos, confundimos esta tentação como sendo um chamado de Deus. E nos indagamos: “Afinal de contas, o Senhor não quer que alimentemos o povo?” “Ele não quer que sejamos produtivos e eficientes em nosso trabalho?”
Assim, pensar em um ministério que lance raízes, que trabalhe sistemática e perseverantemente a fim de ver vidas serem transformadas, que seja constante e diacrônico na pregação e no discipulado cotidiano, enfim, tudo que exija o concurso de tempo para o amadurecimento, pode ser inconcebível para alguns de nós. Há alguns, em nossa atual geração de pastores, que têm imensa dificuldade com processos lentos, que exigem dedicação e esforço e que não trazem resultados imediatos.
“Então o diabo o levou à Cidade Santa, colocou-o sobre o pináculo do templo. E lhe disse: Se és filho de Deus, atira-te abaixo, porque está escrito: aos seus anjos ordenará a teu respeito, que te guardem…” (vv. 5-6). Assim, a tentação para se realizar algo espetacular não diminui desde os tempos de Jesus. Imagine o espetáculo que seria Jesus pulando do alto do templo e os anjos apressando-se em segurá-lo nos céus. Este cenário teria toda uma atmosfera Hollywoodiana. Em nossos ministérios, também podemos ser seduzidos pelo ideal de sucesso reluzente ao custo da fidelidade. Certamente, queremos ser bem sucedidos. Mas o que isto significa? A realidade é que podemos ter nesta área referenciais absolutamente mundanos, secularizados, e tomá-los como sinais indiscutíveis de bênção e evidente aprovação de Deus.
Pare um pouco e pense na história do povo de Deus, e sobretudo na pessoa de Jesus Cristo, o melhor dos pastores. Pode ser difícil lembrarmos que a salvação vem do “remanescente de Israel”; do “renovo que brota de uma terra seca”. É difícil acreditar no nascimento despretensioso do Rei dos reis, que veio ao mundo como servo, entrou em Jerusalém montado num pequeno jumentinho, morreu em uma cruz ao lado de ladrões e como um criminoso amaldiçoado e proscrito. Quando lemos o livro de Atos dos Apóstolos, constatamos que o evangelho se espalhou e tomou força pela pregação de “homens comuns”, de “pescadores incultos”, e de um outrora fariseu, perseguidor da igreja, que foi o apóstolo Paulo. E o poder de Deus aperfeiçoou-se em meio àquelas fraquezas, a fim de que a glória fosse inteiramente do Senhor.
Um incansável missionário norte-americano no Brasil, certa ocasião, escreveu oferecendo um alerta: “É importante compreender que nossa ânsia pelo espetacular é mais uma manifestação de nossa busca por identidade. Queremos ser alguém, queremos ser celebrados, ter ministério reconhecido. Se o espetacular cumpre nossa necessidade íntima, faremos qualquer coisa para consegui-lo.” Porém, o que realmente importa? Quem realmente somos? O que nos motiva a provarmos o nosso valor por meio daquilo que fazemos? Nós pastores sabemos que o cenário do ministério pastoral evangélico, tristemente, pode ser caracterizado por competições, manipulações e comparações ministeriais. Aqui neste livro temos um chamado a “permitir” que o poder de Deus se evidencie através de nós, que somos frágeis vasos de barro, por meio de nossa fraqueza e pequenez.
“Levou-o ainda o diabo a um monte alto, mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a glória deles, e lhe disse: tudo isso te darei se prostrado, me adorares” (vv. 8-9). Penso que entendemos ser esta uma tentação contínua no ministério pastoral. Com alguma frequência, nos encontramos persuadidos de que a busca de poder e o desejo de servir têm o mesmo significado. Em um contexto assim, facilmente os fins podem justificar os meios, atendendo ao nosso desejo de sermos mais eficazes no trabalho de Deus. Indagamos intimamente: “Que valor há em não termos poder, em não causarmos impacto?”.
Nos momentos em que nos virmos sujeitos a tal realidade, ajuda-nos lembrarmos que o ministério é servir ao Senhor dependendo do seu poder e não do nosso. No reconhecimento de nossa fraqueza e vulnerabilidade nos tornamos mais dependentes da graça de Deus, e mais agradecidos por ela, ao mesmo tempo em que somos levados à empática posição de nos tornamos solidários ao próximo. Quando o Senhor Jesus Cristo foi tentado, respondeu: “Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele darás culto” (v. 10b). Estas palavras nos lembram que vamos nos tornando parecidos com aquilo que adoramos, e constituem-se em alerta para que, em nosso ministério, tenhamos os olhos fixos em Cristo. Quando deixamos de olhar para Jesus, podemos ser facilmente conduzidos a usar pessoas, manipular circunstâncias, armar situações para alcançar os nossos objetivos, e entrar em vergonhosas e patéticas disputas de poder.
Nunca ficaremos livres destas tentações em nosso ministério. Elas são constrangedoras e sedutoras por atingirem a nossa ambição e prometerem satisfazer a ilusão do ser humano egocêntrico. Eu e você podemos servir ao Senhor com o coração puro e autêntico. Eu e você podemos servir sem que dependamos, em todo tempo, de que o nosso valor seja referenciado pelo meio – e se há uma verdade acerca do meio é que ele é instável e caprichoso. E se o Senhor nos conceder aquela graça, então estaremos mais livres. E desfrutar do oxigênio dessa liberdade, provocará uma alegria profunda em servir ao nosso Deus com um coração inteiramente voltado para ele.
O triste fato, porém, é que reconhecidamente chegamos até aqui com uma história de fracassos nessas áreas. Cristo, que foi vitorioso nestas tentações tão prementes, é o único pastor perfeito. Ele é o “supremo pastor e bispo” de nossas almas que, por natureza, são carentes e mesquinhas. Digno é o cordeiro! Sim. Nós, assim como Pedro e Paulo, somos todos pastores imperfeitos, com histórias de fracassos para contar.
O Pastor Imperfeito é o segundo livro de Zack Eswine publicado em português. O primeiro foi A Depressão de Spurgeon (Fiel, 2015). O Senhor me conferiu a oportunidade honrosa de revisar e prefaciar a ambos. O Dr. Zachary W. Eswine foi por seis anos professor assistente de Homilética e diretor do programa de Doutorado no Covenant Theological Seminary, em St. Louis, Missouri, nos Estados Unidos. Atualmente, ele conduz o ministério pastoral em uma igreja na mesma cidade. Eswine é também o autor de alguns outros livros, inclusive de um acerca do método de pregação de Spurgeon — Kindled Fire: How the methods of C.H. Spurgeon can help your preaching. Em O Pastor Imperfeito, Eswine faz pulsar, com uma sonoridade simples porém vibrante, o seu “coração de pastor”. Com acolhedora ternura, sensível compaixão e graciosa firmeza, ele situa o chamado que seguimos, reposicionando-nos em nossa humanidade. A seguir expõe a insensatez de engrossarmos as tipologias ministeriais que refletem o padrão de não querer Deus e querer ser como Deus. Na terceira parte do livro, faz uma chamada à reformulação de nosso mundo interior, por situarmos as nossas ambições em perspectivas divinas e realistas. A parte final do livro é dedicada a uma reformulação do trabalho pastoral cotidiano, de uma forma prática e balizada instrumentalmente por discernimento, critério e medida.
O Pastor Imperfeito, penso eu, é oportuna contribuição à teologia pastoral, e particularmente à poimênica evangélico-reformada. Ele nos será muito útil, os quatro presbíteros de nossa igreja, pois pastores imperfeitos é o que somos, embora nem sempre estejamos lembrados ou crendo nisto. Como João Batista, eu precisarei relembrar a mim mesmo, aos meus colegas e à nossa preciosa congregação: “Eu não sou o Cristo”.