Trecho extraído do livro: D. M. Lloyd Jones, Estudos no Sermão do Monte
Os versículos 5 a 8 de Mateus 6 encontramos o segundo exemplo utilizado por nosso Senhor com o fim de ilustrar o Seu ensino acerca da piedade ou da conduta na nossa vida religiosa. Conforme já vimos, isso constituiu o tema que Ele considerou nos dezoito primeiros versículos desse capítulo. Disse Jesus, em termos gerais: “Guardai-vos de exercer a vossa justiça diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles; doutra sorte, não tereis galardão junto de vosso Pai celeste”. Aqui está Sua segunda ilustração sobre esse particular. Após a questão da doação de esmolas, aparece a questão inteira das orações feitas a Deus, bem como de nossa comunhão e companheirismo com Ele. E, uma vez mais, descobrimos aqui que aquela mesma característica geral que nosso Senhor já havia descrito, mui infelizmente se evidencia novamente. Algumas vezes tenho pensado que esta porção das Escrituras é uma das mais perscrutadoras e humilhadoras da Bíblia inteira. Não obstante, podemos ler esses versículos de tal maneira que perdemos inteiramente de vista a sua significação e seu ensino, embora certamente não seja por isso que ficaremos sujeitos à condenação. Ao lermos essa passagem a nossa tendência é sempre considerarmos a mesma como uma censura dirigida contra os fariseus, uma denúncia contra aqueles que eram obviamente hipócritas. Quando a lemos, pensamos no tipo de indivíduo que se exibe, que chama a atenção de outros para si próprio, conforme faziam os fariseus quanto a esse particular. Por conseguinte, consideramos o trecho apenas como um desmascaramento daquela flagrante hipocrisia, mas que não tem vinculação alguma conosco. Porém, isso é perder de vista toda a significação desse ensino de Jesus, a saber, o desmascaramento devastador dos terríveis efeitos do pecado sobre a alma humana, e, especialmente, o pecado na forma de egoísmo e orgulho. Nisso consiste o ensino de Cristo Jesus.
O pecado, conforme Jesus nos mostra aqui, é algo que nos acompanha por todo o caminho que percorremos, chegando até à presença mesma de Deus. O pecado não é apenas um monstro que tenda por assediar-nos e afligir-nos quando estamos distanciados de Deus, quando estamos na “terra distante”, por assim dizer. Se quisermos acreditar na exposição feita por nosso Senhor, o pecado é algo tão terrível que, conforme o Senhor o desmascarou, não somente nos seguirá até às portas do céu, mas também – se isso fosse possível – até ao próprio céu. De fato, não é esse o ensino escriturístico acerca da origem do pecado? O pecado não teve começo nesta terra. Antes mesmo do homem haver caído já houvera uma outra queda. Satanás havia sido um ser angelical perfeito e resplandecente, que habitava nos lugares celestiais; todavia, Lúcifer caiu em pecado, antes que o homem caísse. Essa é a essência do ensino de nosso Senhor, nestes versículos. Trata-se de horrenda exposição da horrível natureza do pecado. Coisa alguma é tão enganadora quanto a noção de que o pecado só existe em termos de ações, pois enquanto imaginarmos o pecado somente em termos de erros realmente praticados, haveremos de falhar na justa compreensão do mesmo. A essência do ensino bíblico a respeito do pecado é que, no âmago, trata-se de uma disposição. Assim sendo, o pecado é um estado do coração. Suponho que podemos fazer o sumário do pecado asseverando que ele, em última análise, consiste em autoadoração e em autoadulação; e nosso Senhor mostra-nos que essa nossa tendência para a autoadulação (o que para mim parece algo de alarmante e aterrorizante) é algo que nos acompanha até à própria presença de Deus. Algumas vezes produz o resultado aqui aludido, isto é, que mesmo quando procuramos persuadir-nos de que estamos adorando a Deus, na realidade estamos adorando a nós mesmos, e nada mais.
Esse é o tremendo alcance do ensino de Jesus, neste ponto. Aquele erro terrível, denominado pecado, que veio fazer parte de nossa natureza e constituição, como seres humanos que somos, é algo de tal maneira poluente de todo o nosso ser que, quando o homem está engajado em sua mais exaltada forma de atividade, ainda assim é mister que ele combata contra tal inclinação pervertida. Muitos têm concordado que o mais elevado quadro do homem que jamais se pôde retratar, conforme também penso, é vê-lo de joelhos, esperando em Deus. A oração é a mais elevada realização do ser humano, é a sua mais nobre atitude. Nunca o homem se mostra tão grande como quando entra em comunhão e contato com Deus. Ora, de acordo com nosso Senhor, o pecado é algo que nos tem afetado tão profundamente que mesmo ao atingirmos aquelas elevações espirituais ele continua conosco, atacando-nos por todos os lados. De fato, certamente cumpre-nos concordar que, com base na doutrina neotestamentária, é somente quando chegamos a compreender a realidade por esse prisma que começamos a entender, realmente, o pecado.
Tendemos por pensar no pecado conforme o vemos nos molambos e nas sarjetas da vida. Contemplamos um beberrão, um pobre sujeito, e pomo-nos a pensar: “Eis aí o pecado; nisso consiste o pecado”. Não obstante, não encontramos aí a essência do pecado. Para nos defrontarmos com um quadro verdadeiro do pecado, e obtermos autêntica compreensão sobre o mesmo, é necessário que contemplemos algum grande santo, algum homem extraordinariamente devoto e piedoso. Contemplemo-lo ali, ajoelhado, na presença do Senhor. Sem embargo, até mesmo ali o pecado está fazendo papel de intruso, tentando-o a pensar sobre si mesmo, a pensar agradável e prazenteiramente sobre si mesmo, a realmente adorar-se, ao invés de adorar a Deus. Esse quadro, e não aquele primeiro, é que retrata fielmente o pecado. Naturalmente, aquele primeiro quadro também retrata o pecado, mas ali não o vemos em seu zênite, ou em sua essência. Ou, dizendo-o de outra maneira, se alguém realmente quiser compreender algo mais sobre a natureza de Satanás e de suas atividades, o que se faz necessário não é que vá rebuscá-las nos farrapos e nas valetas da vida. Sim, se você realmente quiser saber mais acerca de Satanás, vá até aquele lugar desértico onde nosso Senhor passou quarenta dias e quarenta noites. Ali encontramos um retrato verdadeiro do diabo, enquanto submetia a tentações o próprio Filho de Deus.
Tudo isso é destacado nesta declaração. O pecado é algo que nos segue até à própria presença de Deus.