Entretenimento letal
Essa é a pergunta que David Foster Wallace faz em seu romance Graça infinita — um título shakespeariano que se duplica, pois é também o nome do filme dentro do extenso conto.[1] No enredo, o filme Graça infinita cativa corações e olhos de maneiras que nenhum outro entretenimento pode igualar.
O governo americano investiga obsessivamente o viciante filme e seus efeitos. Com seu corpo amarrado a uma cadeira e eletrodutos agarrados às suas têmporas, um rato de laboratório humano assiste ao filme, narrando aos pesquisadores e suas pranchetas o que ele via na cena de abertura — “antes que as energias mentais e espirituais do sujeito abruptamente declinassem, a ponto de que, mesmo voltagens quase-fatais transmitidas pelos eletrodos, não desviavam sua atenção do Entretenimento”.
Após verem o filme e, então, não desejarem nada além do que vê-lo repetidamente, as “vítimas” eram encaminhadas à ala psiquiátrica. “O sentido da vida das pessoas tinha se reduzido a um foco tão estreito que nenhuma outra atividade ou conexão conseguia prender a atenção delas. Dotadas basicamente das energias mentais/espirituais de uma mariposa”.[2]
Se um filme fosse tão bom assim — fatalmente divertido —, você assistiria?
Entretido até a morte
Numa entrevista em 1996, Wallace o descreveu como “um tipo de exagero paródico da relação das pessoas com o entretenimento em nossos dias. Mas eu não penso que seja tão diferente da vida real”, ele disse. Wallace estava soando um alarme.
Uma das questões centrais do romance é bastante direta: será que as pessoas “possuem os meios para se protegerem de se entreterem até à morte”? O entretenimento em vídeo vai ficando “cada vez melhor”, ele disse, “e não está claro para mim que nós, enquanto cultura, estamos ensinando a nós mesmos e aos nossos filhos quando iremos dizer sim ou não”.[3]
“De algum modo, penso que nós, enquanto cultura, temos medo de nos ensinar que o prazer é perigoso”, diz Wallace, “e que alguns tipos de prazer são melhores que outros e que parte do significado de ser humano é decidir o quanto de participação ativa queremos ter em nossa própria vida”.[4]
Wallace se autodenominava um viciado em telas. Ele lamentava a falta do autocontrole necessário para consumir entretenimento em vídeo apenas em pequenas doses. Ele também passou a crer que a TV fora concebida para ser consumida em excesso.
Então, ele se livrou da sua TV. “Eu não tenho uma TV porque, se tiver, irei assistir o tempo todo”.[5] “Eu não tenho uma TV, mas não é culpa dela”, reitera. “Depois de uma hora, eu nem tenho mais prazer em assistir, sentindo-me culpado por estar sendo tão improdutivo. Após me sentir culpado, fico ansioso e isso me faz querer buscar alívio nas distrações e, então, assisto à TV ainda mais. Logo, tudo se torna deprimente. Minha própria relação com a TV me deprime”.[6]
Alguns de nós terão de jogar a TV no lixo, mas todos nós temos de cultivar um uso consciente de nossa mídia, pois Wallace apresenta um argumento profundo (embora simples) ao dizer: “A maioria dos problemas na minha vida tem a ver com minha confusão entre aquilo que eu quero e aquilo que eu preciso”.[7]
Tensões espirituais
Não creio que Wallace fosse cristão, mas ele perscrutou tensões espirituais profundas na era midiática. Alimentar-se de mídias pecaminosas irá anular suas santas afeições. Sem dúvida. Mas empanturrar-se de um excesso de mídias moralmente neutras também irá depredar seu zelo afetivo. Cada um de nós precisa aprender a proteger prazeres superiores fazendo guerra contra deleites inferiores.[8]
Idolatria
Nossos programas, filmes e games nos seduzem para que nos entreguemos às telas, um vício em vídeo o qual Wallace chamou de “um impulso religioso distorcido”, uma entrega de si que deveria estar reservada apenas para Deus, uma dedicação idólatra da alma a uma mídia incapaz de nos amar de volta.[9]
Isso significa que o maior problema com os videogames não é que jogá-los seja inerentemente mau, mas sim que jogá-los é tão bom ao ponto de viciar-nos. Os games exploram nossa competitividade social, nosso amor por narrativas e nosso interesse em resolver problemas. À medida que as franquias de games se expandem, esses sonhos digitais vão se tornando holisticamente imersivos.
O maior problema com a TV não é que ela seja inerentemente má, mas sim que a TV é infinitamente boa em nos dar exatamente o que queremos, sempre que quisermos. Nossas plataformas sob demanda continuam a crescer em opções.
Esgotamento
Vivemos numa era em que os artesãos digitais de nossa cultura visual têm alcançado níveis inacreditáveis de destreza, poder e influência. Eles nunca foram tão bons. E estão ficando melhores. Nossos fazedores de imagens conjuram fantasias dentro de nós — algo que não é mau em si, mas que certamente tem um poder viciante e mais atraente do que a vida comum.
Minha vida cotidiana jamais poderá concorrer com os mágicos televisuais da Electronic Arts, da Nintendo, de Hollywood, da HBO. E, à medida que nossos espetáculos digitais se tornam mais complexos e cheios de nuances, eles exigem ainda mais do nosso tempo e reivindicam mais da nossa vida.
No exato momento em que nosso corpo está anestesiado e estamos “vegetando” em um coma onírico diante de uma tela, estamos sendo empobrecidos. Algo está sendo roubado de nós. Wallace fez uma descoberta profunda ao sugerir que nosso entretenimento suga nossa energia espiritual. O consumo excessivo de distrações drena todo o vigor de nossa alma. Assim como o meu tempo é um jogo de soma zero, também o é a minha “energia espiritual” — minhas afeições e minha capacidade de deslumbramento.
Artigo adaptado do livro A Guerra dos Espetáculos, de Tony Reinke.
[1] David Foster Wallace, Infinite Jest (New York: Back Bay Books, 2006). Não estou recomendando este longo romance aos leitores em geral. Ele de fato contém vários insights brilhantes sobre a natureza humana, mas a obra é longa, tediosa e intrincada, apresentando uma estrutura de roteiro fabricada por um romancista com conhecimento matemático e que a inspirou no triângulo fractal de Sierpiński’s, certamente a fim de frustrar muita gente na primeira leitura.
[2] David Foster Wallace, Infinite Jest, 548-49 [a citação é da edição em português: Graça infinita (São Paulo: Companhia das Letras, 2014)].
[3] Ibid.
[4] Ibid.
[5] ZDFinfo, rede estatal da televisão alemã, entrevista com David Foster Wallace, nov. 2003.
[6] Reinke, “David Foster Wallace on Entertainment Culture.”
[7] ZDFinfo, rede estatal da televisão alemã, entrevista com David Foster Wallace.
[8] Uma rivalidade que parece incongruente, como bem capturado na pergunta retórica de Neil Postman: “Quem está pronto para pegar em armas contra um mar de distrações?”. Neil Postman, Amusing Ourselves to Death: Public Discourse in the Age of Show Business (New York: Penguin, 2005), 156.
[9] David Lipsky and David Foster Wallace, Although of Course You End Up Becoming Yourself: A Road Trip with David Foster Wallace (New York: Broadway Books, 2010), 82.