sexta-feira, 20 de dezembro
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“A Palavra fez tudo”: A necessidade de pregar como os reformadores

O perigo de se estar familiarizado com a história é exatamente este – ela se torna familiar para nós. Pelo menos é o que pensamos. Nossa familiaridade com os fatos, com as relações de causa e efeito e com a narrativa podem nos afastar de perceber o que aconteceu ou do porquê desses fatos serem importantes para nós. A narrativa da Reforma Protestante serve como exemplo. Martinho Lutero (1483–1546), simplesmente, leu a Bíblia, redescobriu a doutrina da justificação pela fé (sola fide) e pregou o Evangelho. E nesse processo, ele e, mais tarde, reformadores como João Calvino (1509–1564), viraram o mundo de cabeça para baixo. [1] Certo?

Não tão depressa, argumenta Brad Gregory, conceituado historiador da Reforma. Ele defende que a Reforma desvinculou o mundo firmemente unido da síntese Tomista entre fé e razão e a concepção Católica da Cristandade, em que o secular e o religioso coexistiam e se uniram intimamente. Sem saber, Lutero desencadeou uma torrente que inchou o mundo moderno com todos os seus problemas pós-iluministas. 

Em outras palavras, inconscientemente, os reformadores causaram a modernidade. Como? Fundamentalmente, se afastando da definição católica de dogma, para se aproximar da visão de que a Bíblia, não a Igreja, é quem determina a verdade. A Sola Scriptura provocou os problemas que o Ocidente tem enfrentado na Modernidade. [2]

A VISÃO DE LUTERO SOBRE PREGAÇÃO E ORAÇÃO

Quando Lutero e Calvino, no entanto, descreveram o que impulsionou as transformações destruidoras de seus dias, com uma só voz, declararam a recuperação do Evangelho, e foi a clara pregação desse Evangelho que fez com que as pessoas saíssem das trevas espirituais para a luz. Sola fide brotou da sola scriptura.

Lutero padeceu por meses (ou até mais!) para entender como “a retidão de Deus” (que ele pensava se referir à justiça retributiva de Deus) poderia ser uma “boa notícia” em Romanos 1.16-17. Depois de, finalmente, ver que Deus graciosamente imputou a retidão de Cristo em seu povo, [3] Lutero descreveu a doutrina da justificação pela fé como “o resumo de toda doutrina cristã” e “o objeto pelo qual a igreja se sustenta ou cai”.[4] Em outro momento ele observou, “Nada nessa matéria [da justificação] pode ser abandonado ou comprometido, mesmo que Céu, Terra e coisas temporais devam ser destruídas… Nessa matéria repousa tudo que ensinamos e praticamos contra o papa, o diabo e o mundo”. [5]

Lutero argumentou que o curso da Reforma avançou com a pregação da Palavra de Deus: “Eu simplesmente ensinei, preguei, escrevi a Palavra de Deus; fora isso, eu não fiz nada. E, então, enquanto eu dormia ou bebia cerveja de Wittenberg… a Palavra enfraqueceu o papado de tal forma, como nenhum príncipe ou imperador causou tamanho dano antes. Eu não fiz nada. A Palavra fez tudo.”[6]

Aí está. A Palavra fez tudo.

Para que a igreja se reúna como povo de Deus, deve haver pregação da Palavra de Deus e oração, Lutero exortou. “Em cada culto, uma passagem da Escritura deve ser lida e, então, interpretada. Isso deve ser seguido pela oração nos Salmos e outras orações”. [7] Lutero enfatizou que a Palavra era a própria Palavra de Cristo. E Cristo trouxe a Palavra para levá-la com poder por meio de seu Espírito. Embora “Deus use os meios ordinários de leitura e pregação da Palavra pelos ministros do Evangelho”, a Palavra “se torna interior quando interiormente é recebida e crida”. Essa é a obra do Espírito Santo. É através da Palavra que o Espírito Santo trabalha”.[8]

CALVINO SOBRE A PREGAÇÃO E ORAÇÃO 

Calvino concordou com Lutero, o pioneiro. Ele descreveu a justificação pela fé como “a principal dobradiça sobre a qual a religião se curva”.[9] E os meios de proclamar este Evangelho primoroso é pela pregação ordinária da Palavra de Deus. Calvino considerou isso como “um privilégio singular” em que Deus consagrou “para ele mesmo as bocas e línguas de homens para que a sua voz ressoasse neles.”[10] A pregação é essencial. Na verdade, nada é “mais notável ou glorioso na igreja do que o ministério do Evangelho, já que é a direção do Espírito Santo, da retidão e da vida eterna”.[11]

E Calvino viveu de acordo com o que escreveu. Ele pregou — muito! O comentário de John Leith é adequado e compreensível: “O enorme número de pregações de Calvino é impressionante”. Sempre concebendo o ministério da pregação regular como seu chamado primário, o pastor de Genebra carregou uma carga de pregações impressionante. Durante os últimos 15 anos de sua vida, ele pregava duas vezes todo domingo e também de segunda a sábado, em semanas alternadas. Só de 1549 até 1564, ele pregou 2.042 sermões. De acordo com Dawn DeVries, entre os anos de 1541 a 1564, Calvino pregou em “Salmos, Jeremias, Lamentações, Miquéias, Sofonias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Daniel, Ezequiel, 1 e 2 Tessalonicenses, 1 e 2 Timóteo, Tito, 1 e 2 Coríntios, Jó, Deuteronômio, Isaías, Gálatas, Efésios, Harmonia dos Evangelhos (união dos Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João), Atos, Gênesis, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 Reis”. Sua produção incluía 200 sermões no livro de Deuteronômio, 174 em Ezequiel e 189 em Atos. [12] Quando todo o corpo de sermões de Calvino é considerado, ele constitui quase metade de tudo que esse rico autor já produziu. Apesar de Calvino pregar com anotações, o conselho da cidade de Genebra reconhecia o fenômeno que eles tinham em Calvino. Por isso, eles pagaram um grupo de secretários para reunir os sermões do pregador e publicá-los.[13]

Por que Calvino dedicou tanto tempo à pregação? Simples – e incrivelmente – porque nela Deus comunicava ao seu povo: “Quando o Evangelho é pregado em nome de Deus, isto é como se ele mesmo falasse em sua própria pessoa”. O Deus Todo-Poderoso, que habita numa luz inacessível, comunica-se através da pregação de sua Palavra. E a conduz de tal forma que faz o Evangelho ir adiante com poder para salvar seus eleitos:

     A voz do homem não é nada, senão um som que       desaparece no ar e não obstante é o poder de Deus para a salvação de todos os crentes (diz o Apóstolo Paulo). Quando Deus nos fala, pela boca dos homens, então ele se conjuga com a graça interior de seu Espírito Santo, até o fim, para que a doutrina não seja inútil, mas para que possa dar frutos. Veja então como ouvimos o Pai celestial: isto é, quando ele nos fala secretamente por meio de seu Espírito Santo, e então chegamos a nosso Senhor Jesus Cristo.[14]

Calvino acreditava que Deus falava com seu povo através dos meios ordinários da pregação de sua Palavra. Por meio da Palavra pregada, Deus salvou seu povo. Por meio da Palavra pregada, ele os conforma cada vez mais a Cristo, porque Deus “nada terá pregado em seu nome a não ser aquilo que trará proveito e edificação”.[15]

Há um outro motivo que levou Calvino a enfatizar a pregação regular da Palavra de Deus: as pessoas eram, frequentemente, desviadas dos meios adequados para conhecer a Deus e sua vontade. Os católicos direcionavam as pessoas para a igreja. Os libertinos e os fanáticos olhavam para as experiências notáveis. Ambos eram falhos, disse Calvino. Conhecemos a Deus em sua Palavra enquanto o Espírito Santo – que foi o autor do livro – nos ilumina para entender sua Escritura. Calvino afirma, “por uma espécie de vínculo mútuo, o Senhor uniu a certeza de sua Palavra e de seu Espírito para que a religião perfeita da Palavra possa permanecer em nossa mente quando o Espírito, que nos faz contemplar o rosto de Deus, brilhar; e para que nós, por nossa vez, possamos abraçar o Espírito sem medo de sermos enganados quando o reconhecemos em sua própria imagem, ou seja, na Palavra”.[16]

Tanto Lutero quanto Calvino acreditavam que a restauração do Evangelho bíblico da justificação pela fé era essencial para que as pessoas nascessem de novo. Ao mesmo tempo, o Evangelho pregado causou crescimento nos cristãos. Pois, na pregação, Deus falou por meio de seu Espírito. E ele agiu. Então Lutero e Calvino simplesmente estudaram, oraram e pregaram – e escreveram, discipularam, lideraram e trabalharam quase até a morte. E Deus usou esses homens falhos, mas comprometidos para virar o mundo de cabeça para baixo.

COMO A PREGAÇÃO DA REFORMA MUDOU O MUNDO

As Reformas alemã e suíça – e os movimentos luterano e calvinista que elas acarretaram – agitaram o mundo do século 16. Um rápido olhar sobre os efeitos do lado calvinista da Reforma demonstra a maneira pela qual a Palavra pregada construiu a igreja. Calvino pregou, pastoreou e discipulou outros.[17] Isso não só levou ao crescimento da igreja em Genebra, mas também na igreja de Genebra enviando plantadores de igrejas para a França.

Os franceses eram bastante hostis à fé protestante, mas mesmo assim os missionários de Genebra trabalhavam fielmente. Antes de 1555, parece não ter havido nenhum esforço organizado por parte de Genebra. Mas então eles começaram a enviar homens jovens – muitos deles. Como conta Robert Kingdon, “entre 1555 e 1563 o ‘Registro da Companhia de Pastores’ registrou cerca de 88 missionários enviados, mas este é apenas um número parcial, pois os registros estão incompletos”.[18] O que aconteceu a partir da pregação fiel desses jovens é notável. De acordo com Pierre Courthial, “em 1555 havia cinco igrejas reformadas organizadas na França; em 1559, ano em que o primeiro sínodo nacional se reuniu em Paris, eram quase 100; e em 1562 eles eram 2.150”.[19] A Palavra pregada levou a um crescimento extraordinário por meio de conversões e plantações de igrejas.

Nós poderíamos recontar a maneira pela qual a Palavra pregada levou a uma nova vida e profundidade espiritual na era Puritana na Inglaterra no século 17. Também poderíamos observar a maneira como a pregação abalou as colônias inglesas no Primeiro Grande Despertar entre 1735 e 1745, alimentada por Jonathan Edwards e George Whitefield. O fio comum dos séculos 16 a 18 foi a pregação fiel, clara e apaixonada da Palavra de Deus, combinada com a adesão à doutrina da justificação pela fé.[20]

CONCLUSÃO

Deus, por meio de seu Espírito, continua a trabalhar da mesma maneira hoje. O Senhor abençoa o mesmo Evangelho e os mesmos pregadores comuns que confiam na autoridade de sua Palavra e na necessidade do Espírito Santo de trazer convicção e iluminação.

Na Reforma, a Palavra fez tudo isso. Daqui a quinhentos anos, que se diga isso do seu ministério e do meu.

 

[1] Michael Reeves winsomely presents the narrative of the Protestant Reformation in Unquenchable Flame: Discovering the Heart of the Reformation (Nashville, TN: B&H, 2010). A fuller treatment that acknowledges the religious and doctrinal focus is Carter Lindberg, The European Reformations, 2nd ed. (Malden, MA: Wiley-Blackwell, 2009).

[2] For Gregory’s extended argument see Brad S. Gregory, The Unintended Reformation: How a Religious Revolution Secularized Society (Harvard, MA: Harvard University Press, 2012). He highlights the negative effects of sola scriptura in “A Response to Evangelicalism” in Journeys of Faith: Evangelicalism, Eastern Orthodoxy, Catholicism, and Anglicanism , ed. Robert L. Plummer (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2012), 165–178. Readers might be interested in two insightful reviews of Gregory’s argument, the first by Michael Horton (https://www.thegospelcoalition.org/reviews/the-unintended-reformation/), the second by Carl Trueman (https://www.reformation21.org/articles/pay-no-attention-to-that-man-behind-the-curtain-roman-catholic-history-and-the-e.php).

[3] See Martin Luther, “Two Kinds of Righteousness,” in Martin Luther’s Basic Theological Writings, ed. Timothy F. Lull (Minneapolis, MN: Fortress, 1989), 155–164.

[4] Timothy George, Theology of the Reformers (Nashville, TN: Broadman, 1988) 62.

[5] Martin Luther, The Smalcald Articles, in Martin Luther’s Basic Theological Writings, 502–503.

[6] George, Theology of the Reformers, 53.

[7] Hughes Oliphant Old, The Reading and Preaching of the Scriptures in the Worship of the Christian Church. Vol. 4: The Age of the Reformation (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2002), 31.

[8] Old, Reading and Preaching of the Scriptures, 41.

[9] John Calvin, Institutes of the Christian Religion, Library of Christian Classics, 2 volumes, ed. John T. McNeill, trans. Ford Lewis Battles (Philadelphia: Westminster, 1960), 3.11.1.

[10] Calvin, Institutes, 4.1.5.

[11] Calvin, Institutes, 4.3.3.

[12] Dawn DeVries, “Calvin’s Preaching,” in The Cambridge Companion to John Calvin, ed. Donald K. McKim (Cambridge: Cambridge University Press, 2004), 111.

[13] John H. Leith, “Calvin’s Doctrine of the Proclamation of the Word and Its Significance for Today,” in John Calvin and the Church: A Prism for Reform, ed., Timothy George (Louisville, KY: Westminster/John Knox, 1990), 206–207.

[14] John Calvin, third sermon on Jacob and Esau, quoted in Leith, “Calvin’s Doctrine of the Proclamation of the Word,” 227, n. 31.

[15] John Calvin, sermon on 2 Timothy 2:16–18, quoted in Leith, “Calvin’s Doctrine of the Proclamation of the Word,” 222.

[16] Calvin, Institutes, 1.9.3.

[17] A wonderful book on Calvin’s pastoral ministry and that of the next generation is Scott M. Manetsch, Calvin’s Company of Pastors: Pastoral Care and the Emerging Reformed Church, 1536–1609 (Oxford: Oxford University Press, 2012).

[18] Robert M. Kingdon, Geneva and the Coming of the Wars of Religion in France, 1555–1563 (Geneva: Librarie E. Droz, 1956), 14.

[19] Pierre Courthial, “The Golden Age of Calvinism in France,” in John Calvin: His Influence in the Western World, ed. W. Stanford Reid (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1982), 77.

[20] On the growth of Calvinism, see Jon Balserak, Calvinism: A Very Short Introduction (Oxford: Oxford University Press, 2016), and John T. McNeill, The History and Character of Calvinism (Oxford: Oxford University Press, 1954). For Calvin’s influence on missions, note Michael A. G. Haykin and C. Jeffrey Robinson, To the Ends of the Earth: Calvin’s Missional Vision and Legacy (Wheaton, IL: Crossway, 2014).

Por: Shawn Wright. ©️ 9 Marks. Website: 9marks.org. Traduzido com permissão. Fonte: “The Word Did It All”: The Necessity of Preaching According to the Protestant Reformers
©️ Voltemos ao Evangelho. Website: ministeriofiel.com.br. Todos os direitos reservados. Tradutor: Luise Massa Santos. Editor e revisor: Vinicius Lima.


Autor: Shawn Wright

Bio do autor: Shawn Wright é professor associado de História da Igreja no The Southern Baptist Theological Seminary em Louisville, no Kentucky. Ele também é Pastor de Desenvolvimento da Liderança na Igreja Batista Clifton.

Parceiro: 9Marks

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O ministério 9Marks tem como objetivo equipar a igreja e seus líderes com conteúdo bíblico que apoie seu ministério.

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