segunda-feira, 23 de dezembro
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A disciplina da honra

Honra? Quem pensa em honra hoje em dia?

Certo dia, uma amiga me ligou e me perguntou algo que me fez pensar de uma nova forma.

“Ron e eu não temos ficado muito felizes com os sermões que temos recebido ultimamente. Eu mal sei o que dizer ao pastor quando saímos da igreja e apertamos as mãos. Mas o que mais me incomoda é como honrá-lo. A Bíblia não nos diz para honrarmos todos os homens?”

E é verdade. Mas que pergunta curiosa para uma jovem mulher moderna. Honra? Quem pensa em honra hoje em dia? Somos todos iguais. Nós nos apresentamos apenas pelos primeiros nomes; negligenciamos o uso de títulos para pessoas que uma vez teriam sido consideradas nossos superiores; e o sistema de honra nas escolas parece ter caído fortemente. Não tenho mais certeza se os escoteiros ainda juram pela “palavra de escoteiro”, mas todo o país foi abalado quando 13 mil controladores de tráfego aéreo quebraram um juramento ao entrarem em greve em 1981. Alguns dos grevistas podem ter tido momentos de apreensão, considerando o que o juramento realmente significava, mas o fato é que eles o fizeram, concordando que o desejo deles por uma semana de 32 horas e um mínimo de $30.642 dólares por ano substituíam o juramento que haviam assinado. A revista Time, em referência a esse fato, citou William Murray, solicitador geral da Grã-Bretanha no século dezoito: “Nenhum país pode subsistir doze meses onde um juramento não é considerado obrigatório, pois a falta dele deve necessariamente dissolver a sociedade”.

A Bíblia nos diz para dar “a devida honra”[1] a todos. Devida significa “que se deve, pagável”; isto é, não é algo acima e além do chamado do dever, mas algo obrigatório, como as contas, os pedágios ou os impostos. Significa também o mesmo que exigido, assim como “o devido cuidado”, ou “no devido tempo”.

Não tem nada a ver com nossos sentimentos sobre nós mesmos ou sobre os outros, a despeito dos controladores de tráfego aéreo.

“Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem respeito, respeito; a quem honra, honra. A ninguém fiqueis devendo coisa alguma, exceto o amor”.[2]

Aqui devemos enfatizar fortemente que o discípulo está sozinho diante do Senhor, enfrentando sua obrigação principalmente para com o próprio Deus. Deus não lhe perguntará se a outra pessoa cumpriu a parte dela no acordo. Ele pede apenas um coração puro. É suficientemente fácil nos exonerarmos com base no fracasso da outra parte (de uma pessoa, de uma instituição, de uma sociedade) em cumprir sua obrigação, mas a obediência de um discípulo não é contingente. “A ninguém fiques devendo coisa alguma” é a única preocupação do indivíduo. Não há nenhuma exigência de que nós nos asseguremos de que outros nos paguem.

Honra significa “respeito, alta consideração, reconhecimento de valor”. Um cristão enxerga todos os homens como feitos à imagem de Deus. Todos são pecadores também, o que significa que a imagem é manchada, mas é uma imagem divina, capaz de redenção e, portanto, de ser considerada honrosa.

Uma fonte de confusão é a definição de respeito. Respeito significa “reverência debaixo de Deus”, antes de mais nada; isto é, uma apreciação adequada pela pessoa que Deus fez pelo mesmo motivo de Deus a ter feito. Mas a Bíblia diz que Deus “não faz acepção e pessoas”,[3] o que significa que ele não tem favoritos. No mesmo sentido, Tiago diz que somos inconsistentes e que estamos julgando por padrões falsos se “tratamos com deferência”,[4] ou seja, se jogamos com os favoritos, como quando prestamos atenção especial ao homem que usa roupas finas.

Discriminar alguém por falsas razões é errado. Em um lugar de culto, tanto o homem bem-vestido com anéis de ouro quanto o pobre homem com roupas gastas devem ser bem-vindos. Essa é uma obrigação cristã. O homem rico que vem com roupas gastas, porém, ilustra outro lado da moeda do respeito.

Jesus contou uma história sobre um homem que foi jogado nas trevas, onde havia choro e ranger de dentes, porque apareceu em um casamento vestido inadequadamente.[5] É claro que o ponto que Jesus estava fazendo nessa história não era principalmente de respeito, mas a verdade está ali. Recusar a roupa apropriada (que, segundo me disseram, era habitualmente fornecida pelo anfitrião para aqueles que não podiam pagar) foi uma ofensa. Os ricos que se vestem de forma surrada quando podiam se vestir de maneira respeitável são culpados de outra forma de favoritismo: o esnobismo inverso.

Sei que estou patinando sobre gelo muito fino ao levantar a questão do vestuário, uma vez que, por várias décadas, isso tem sido considerado pela maioria dos cristãos como de muito pouca ou absolutamente nenhuma importância, uma vez que Deus olha o coração, mas acredito que vale a pena reconsiderar isso em termos de respeito. Quando estou disposta a me vestir bem — seja para uma entrevista de trabalho, por exemplo; para um convidado especial que estou entretendo; para um evento social para o qual me sinto honrada por ter sido convidada —, isso não é uma indicação do meu respeito pelo valor da outra pessoa? Não é um sinal do respeito de um ator pelo seu público e do público pela pessoa que se apresenta quando eles se vestem para a ocasião? Isso pode ser ridicularizado como uma forma de orgulho (“quem você̂ está tentando impressionar?”), mas pode ser uma humildade genuína do mesmo tipo que nos levaria a polir a prata, tirar a bela toalha de mesa e colocar luz de velas e flores para alguém muito amado. A atitude dos estudantes, tenho notado, é fortemente influenciada pela vestimenta de um professor, assim como pelos modos dele.

Um segundo motivo de confusão em matéria de respeito, além da confusão sobre a definição, é a noção atual de que todos merecem a igualdade do tipo olho por olho. Esse é um dos excessos da democracia, que não deve ser confundido com o cristianismo. A verdade é que nem todos têm direito a tudo. Uma criança tem o direito de ser cuidada. Um adulto não. Um adulto tem o direito de votar, de se casar, de ser tributado. Uma criança não.

A palavra-chave, que nos ajudará a entender algumas distinções extremamente importantes, é devido. Quando Pedro nos diz para dar a devida honra a todos, ele passa a especificar três maneiras diferentes de obedecer a essa ordem: “amai os irmãos, temei a Deus, honrai o rei”.[6] Já observamos que o que é devido é o que se deve. É apropriado, próprio, adequado a essa pessoa em particular. Diferentes tipos de honra e respeito são adequados a diferentes pessoas e, ao discriminarmos, nós os honramos de fato. Nada ilustra isso mais claramente do que o casamento do Príncipe Charles com a Lady Diana. Em virtude de Charles ser um príncipe e herdeiro do trono da Inglaterra, a pompa e o esplendor daquele casamento lhe eram devidos. Era devido, adequado, próprio, tanto quanto era exigido e esperado. O fato de que nossas expectativas foram cumpridas foi uma fonte de grande alegria. Os rostos das multidões testificaram eloquentemente isso.

A honra é dada. Não é tomada. Se o próprio príncipe Charles tivesse mandado realizar a elaborada cerimônia contra a vontade do monarca ou do povo, não haveria alegria alguma. Ele não o exigiu — sua posição o exigiu. Isso é essencial em nossa compreensão do dever de honrar uns aos outros. Devemos considerar a posição do outro diante de Deus.

Dever é outra palavra útil. Significa simplesmente “o que é devido (como nos direitos alfandegários que devem ser pagos), qualquer ação necessária ou apropriada à própria ocupação ou posição, um senso de obrigação”.

Centenas de milhares agitaram bandeiras, aplaudiram e torceram enquanto o carro real passava. Cavaleiros elegantemente uniformizados cavalgavam cavalos esplendidamente caparisionados. Assim, a honra apropriada foi oferecida ao príncipe e à princesa, mas eles, por sua vez, honraram a multidão acenando com a cabeça, sorrindo, acenando com as mãos e aparecendo várias vezes na varanda do Palácio de Buckingham para reconhecer a reivindicação de seus súditos. Essa resposta foi a forma de homenagear a multidão.

A honra tem a ver com orgulho — no mais verdadeiro e nobre sentido de reconhecimento da missão divina. “Deem orgulho de posição uns aos outros em estima”[7], diz Paulo aos romanos. Em sua obra Out of Africa[8], Isak Dinesen chega mais perto de expressar o que isso significa:

O bárbaro ama seu próprio orgulho e odeia, ou não acredita, no orgulho dos outros. Serei um ser civilizado, amarei o orgulho de meus adversários, de meus servos e de minha amante; e minha casa será, com toda a humildade, no deserto, um lugar civilizado.

Ame o orgulho de Deus além de todas as coisas, e o orgulho de seu próximo como seu próprio orgulho. O orgulho dos leões: não os cale em zoológicos. O orgulho de seus cães: não os deixe engordar. Ame o orgulho de seus companheiros partidários, e não lhes permita nenhuma autopiedade.

Ame o orgulho das nações conquistadas, e deixe-os honrar seu pai e sua mãe.

Amar o orgulho dos outros requer um espírito generoso. Um homem de espírito pequeno não estará disposto a ver outro receber crédito, honra ou posição. Todos nós, suponho, às vezes resmungamos interiormente ao ver alguém receber um lugar que aquela pessoa não merecia. “Isso não é justo, ele não é qualificado. De quem foi a ideia de nomeá-lo? Como ele entrou na diretoria? Como foi que eu não entrei?” A última pergunta é a que toca a raiz mais profunda de nossa falta de vontade de honrar o outro: nosso próprio orgulho, um tipo perverso que realmente dá origem ao ciúme. Sem dúvida, Deus deve, às vezes, permitir que a pessoa “errada” receba crédito para que nós, os “certos”, descubramos quão cheios de orgulho somos.

O cristianismo ensina a justiça, não os direitos. Ele enfatiza a honra, não a igualdade. A preocupação de um cristão é o que se deve ao outro, não o que se deve a si mesmo.

“Amem os seus inimigos, façam o bem aos que odeiam vocês. Abençoem aqueles que os amaldiçoam, orem pelos que maltratam vocês […]Dê a todo o que lhe pedir alguma coisa; e, se alguém levar o que é seu, não exija que seja devolvido”.[9]

Isso está muito longe da velha lei da igualdade de direitos de olho por olho. No entanto, estranhamente, hoje, quando a igualdade é o suposto ideal, muitas vezes há discriminação inversa, onde é dada uma vantagem injusta àqueles que antes estavam em desvantagem, por exemplo, os criminosos, os pobres, os grupos étnicos ou as mulheres. Nos tempos do Antigo Testamento, dizia-se aos israelitas que ser parcial ou favorecer os pobres era uma perversão da justiça, tanto quanto era subserviência aos grandes.

“Não farás injustiça no juízo […] com justiça julgarás o teu próximo […] Eu sou o SENHOR”.[10]

Eu sou o Senhor. Isso já era motivo suficiente para o povo de Israel. Temos ainda mais razão, tendo visto a glória de Deus no rosto de Jesus Cristo, que se tornou o Filho do Homem. Ao nos lembrarmos dele, honramos todos os homens.

Aqueles a quem nos é especificamente ordenado honrar por terem sido colocados sobre nós são autoridades civis, pais, professores, mestres e presbíteros. Os presbíteros são dignos de uma dupla honra, ou de dobrados honorários.[11] Aqueles que sofrem por nós e trabalham para nós merecem honra.

Falando de Epafrodito, seu colega de trabalho e companheiro, Paulo disse aos filipenses para o receberem com todo o prazer e para o honrarem, pois “por causa da obra de Cristo, chegou ele às portas da morte e se dispôs a dar a própria vida, para suprir a vossa carência de socorro para comigo”.[12]

Aos tessalonicenses, ele escreveu: “Agora, vos rogamos, irmãos, que acateis com apreço os que trabalham entre vós e os que vos presidem no Senhor e vos admoestam; e que os tenhais com amor em máxima consideração, por causa do trabalho que realizam”.[13]

Madre Teresa de Calcutá honrou os indigentes e moribundos que jaziam nas ruas da cidade. Ela viu Cristo nas mais tristes migalhas da humanidade, e com humildade e amor os reuniu para serem atendidos. Ninguém que não reconhecesse neles a imagem divina faria tal trabalho.

O respeito parece ser uma coisa difícil em nossa sociedade atual. Muitos alunos do seminário onde eu costumava ensinar eram residentes — situação em que, em troca de trabalhos domésticos ou de trabalho no jardim, o estudante recebe um lugar para viver sem precisar pagar aluguel. Ao conversar com alguns deles, descobri que se sentiam ofendidos ao serem tratados como servos. Eles sentiam que deveriam ter recebido um lugar de igual para igual na família. Quando eu salientei que a condição em que lhes foi permitido viver lá (alguns dos lugares são verdadeiramente luxuosos, em grandes propriedades à beira-mar) era que eles deveriam servir, eles pareciam perplexos, não tendo nenhuma concepção da posição de um servo.

Um senso de saber o seu lugar é importante para um cristão. Não podemos dar honra devida — onde ela é devida — sem um senso de posição. Quem é essa pessoa, quem sou eu em relação a ela? Somos pessoas que estão debaixo de autoridade a todo momento, devendo honra e respeito a um rei ou a um presidente, aos pais, ao mestre, ao professor, ao marido ou ao chefe, aos ministros e anciãos e bispos e, naturalmente, sempre e mais importante, a Cristo.

 

[1] 1 Pedro 2.17; a expressão devida honra aparece na versão New English Bible (NEB).

[2] Romanos 13.7-8

[3] Atos 10.34

[4] Tiago 2.3

[5] Mateus 22.11-14, NAA

[6] 1 Pedro 2.17

[7] Romanos 12.10, tradução direta da versão NEB. (N. T.: A maioria das versões em português trazem a tradução “preferir em honra uns aos outros”. Nesse caso, a autora utilizou a versão New English Bible, que traz, em Romanos 12.10, a ideia de conceder o orgulho da posição a outra pessoa.)

[8] Isak Dinesen, Out of Africa (New York: Random House, 1972), 261

[9] Lucas 6.27-28, 30, NAA

[10] Levítico 19.15-16

[11] 1 Timóteo 5.17

[12] Filipenses 2.30

[13] 1 Tessalonicenses 5.12-13

 


O trecho acima foi extraído com permissão do livro Uma vida de obediência, de Elisabeth Elliot, Editora Fiel

 

 


Autor: Elisabeth Elliot

Elisabeth Elliot (1926–2015) foi uma das mulheres cristãs mais influentes do século XX. Nascida na Bélgica, filha de missionários, ela inspirou, com sua fé corajosa, seguidoras de Cristo em todo o mundo através de suas experiências como esposa, mãe e missionária. Seu primeiro marido, Jim Elliot (1927–1956), foi morto, com outros quatro missionários, quando buscava dar testemunho de Cristo entre os Auca, atualmente conhecidos como Huaorani, no leste do Equador. Alguns anos depois dessa tragédia, Elisabeth, com sua filha ainda pequena, passou a viver entre os membros dessa mesma tribo, a fim de compartilhar com eles o precioso evangelho. Em seu retorno para os Estados Unidos, Elisabeth deu início ao seu ministério como palestrante e escritora, publicando mais de vinte livros que foram traduzidos para diversas línguas. Seu ministério continua a influenciar gerações de mulheres ao redor do mundo.

Ministério: Editora Fiel

Editora Fiel
A Editora Fiel tem como missão publicar livros comprometidos com a sã doutrina bíblica, visando a edificação da igreja de fala portuguesa ao redor do mundo. Atualmente, o catálogo da Fiel possui títulos de autores clássicos da literatura reformada, como João Calvino, Charles Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, bem como escritores contemporâneos, como John MacArthur, R.C. Sproul e John Piper.

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