quinta-feira, 12 de dezembro
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A disciplina do trabalho

O trabalho cristão é qualquer tipo de trabalho

Não existe um trabalho cristão. Ou seja, não existe trabalho no mundo que seja, em si mesmo, cristão. O trabalho cristão é qualquer tipo de trabalho, desde limpar um esgoto até pregar um sermão, que é feito por um cristão e oferecido a Deus.

Isso significa que ninguém é excluído de servir a Deus. Significa que nenhum trabalho está “abaixo” de um cristão. Significa que não há trabalho no mundo que precise ser entediante ou inútil. Um cristão encontra realização não no tipo particular de trabalho que ele faz, mas na forma como o faz. O trabalho feito para Cristo o tempo todo deve ser “trabalho cristão em tempo integral”.

Os coletores de impostos e soldados estavam entre aqueles que saíram para o deserto para serem batizados por João. Quando perguntaram o que deveriam fazer para provar seu arrependimento, João não lhes disse para desistirem de seus trabalhos e começarem a fazer o que ele fazia. Aos coletores de impostos ele disse: “Não cobreis mais do que o estipulado”. Aos soldados, disse: “A ninguém maltrateis, não deis denúncia falsa e contentai-vos com o vosso soldo”.[i] Essa forma de fazer o trabalho específico deles certamente seria uma direção radical- mente nova. Um cobrador de impostos que não recebesse mais do que o exigido por lei ou um soldado que nunca intimidasse, nunca chantageasse, nunca protestasse por salários mais altos, seria um não conformista da melhor qualidade.

Cada um de nós tem um cumprimento do dever marcado por Deus. Para a maioria dos seres humanos, durante a maior parte da história, tem havido pouca escolha disponível. Tendemos a esquecer isso numa época em que as opções parecem ilimitadas e quando, em geral, “o que a pessoa faz” significa especificamente a capacidade que ela tem de ganhar dinheiro. O dever, porém, inclui tudo o que devemos fazer pelos outros: arrumar uma cama, dar carona a alguém para a igreja, cortar um gramado, limpar uma garagem, pintar uma casa. Muitas vezes, é possível “sair do” trabalho dessa maneira. Ninguém está nos pagando. É preciso simplesmente fazer aquilo, e se não o fizermos, ninguém o fará. Mas a natureza do trabalho muda quando vemos que é Deus quem marca esse cumprimento do dever. É um serviço para ele. Quando o vemos, podemos dizer: “Senhor, quando foi que eu cortei o teu gramado? Quando foi que passei tua roupa?” Ele responderá: “Quando você̂ o fez por um dos menores de meus filhos, você̂ o fez por mim”.

O irmão Lawrence praticou a presença de Deus na cozinha de um mosteiro. Sophie, a esfregadora, limpava pisos para Jesus. Dag Hammarskjöld, como secretário-geral das Nações Unidas, ofereceu seu trabalho a Deus, encontrando nos escritos dos grandes místicos medievais a explicação de como um homem deve viver uma vida de serviço social ativo:

Para quem a “autoentrega” tinha sido o caminho para a autorrealização, e que na “singeleza da mente” e na “interioridade” tinham encontrado forças para dizer sim a cada exigência que as necessidades de seus vizinhos os fazia enfrentar, e para dizer sim também a cada destino que a vida tinha reservado para eles. Amor — essa palavra muito mal-usada e mal-interpretada —, para eles significava simplesmente um transbordamento da força com que se sentiam preenchidos quando viviam em verdadeiro autoesquecimento. E esse amor encontrou expressão natural no cumprimento sem hesitação do dever e na aceitação sem reservas da vida, o que quer que fosse que os trouxesse pessoalmente de trabalho, sofrimento ou felicidade.

As primeiras palavras de um diário em 1956, lê-se:

Diante de ti, Pai,

em retidão e humildade,

contigo, Irmão,

na fé e na coragem,

Em ti, Espírito, em quietude.

Vosso, pois vossa vontade é o meu destino,

Dedicado — pois meu destino é ser usado, e usado de acordo com a tua vontade.[ii]

Quais são as exigências que nos são impostas pelas necessidades de nossas famílias ou de nossos vizinhos? Esse é o cumprimento do dever que Deus nos estabeleceu. Para mim, quando eu era uma observadora próxima da vida dos índios da selva, ficou bastante claro que todos eles faziam o que tinham que fazer para sobreviver, desde a menor criança, que podia caminhar até a velha avó que ainda pegava sua cesta e saía para plantar mandioca na clareira da família. Havia poucas escolhas de fato. Eles não se parabenizavam por cumprir seus deveres. Certamente nunca lhes passou pela cabeça que fossem virtuosos por fazer isso. O dever é bom. Quando o fazemos, estamos fazendo o bem, mas não estamos ganhando mérito por isso.

É errado fazer tantas distinções entre aquilo do qual não podemos “escapar” de fazer — ou seja, o que é necessário para a sobrevivência — e o que escolhemos fazer. O trabalho diário de oito horas pelo qual estamos sendo pagos é um dever, bem como uma necessidade física. Muitas coisas que fazemos “depois do trabalho”, a menos que sejamos pessoas demoniacamente egoístas, são trabalho também, muitas vezes para os outros. Os dois são tão diferentes assim aos olhos de Deus? Eu duvido. O trabalho que me foi designado inclui escrever e falar, formas de serviço muitas vezes rotuladas como “cristão em tempo integral”, mas meu serviço a Deus também inclui tarefas domésticas e de correspondência, e estar disponível para ajudar a família e os amigos a fazerem coisas que precisam ser feitas. Se meu marido precisa de um corte de cabelo ou que uma carta seja digitada, eu estou disponível.

“Nós, porém, não nos gloriaremos sem medida”, escreveu Paulo aos coríntios, “mas respeitamos o limite da esfera de ação que Deus nos demarcou e que se estende até vós. Porque não ultrapassamos os nossos limites como se não devêssemos chegar até vós, posto que já chegamos até vós com o evangelho de Cristo; não nos gloriando fora de medida nos trabalhos alheios e tendo esperança de que, crescendo a vossa fé, seremos sobremaneira engrandecidos entre vós, dentro da nossa esfera de ação”.[iii]

O que é a nossa “esfera de ação”? Não podemos descartar o fato da vida moderna: na realidade, existem muitas escolhas quando se trata de discernir essa esfera. Estejamos certos de que Deus sabe como mostrar a vontade dele a quem está disposto a fazê-la. O lugar para começar a descobrir a esfera maior é na esfera menor — na disposição de dizer sim a toda exigência que a necessidade do próximo nos faz enfrentar.

[i] Lucas 3.13-14

[ii] Dag Hammarskjöld, Markings (London: Faber & Faber, 1975), 109

[iii] 2 Coríntios 10.13-15


O trecho acima foi extraído com permissão do livro Uma vida de obediência, de Elisabeth Elliot, Editora Fiel.


Autor: Elisabeth Elliot

Elisabeth Elliot (1926–2015) foi uma das mulheres cristãs mais influentes do século XX. Nascida na Bélgica, filha de missionários, ela inspirou, com sua fé corajosa, seguidoras de Cristo em todo o mundo através de suas experiências como esposa, mãe e missionária. Seu primeiro marido, Jim Elliot (1927–1956), foi morto, com outros quatro missionários, quando buscava dar testemunho de Cristo entre os Auca, atualmente conhecidos como Huaorani, no leste do Equador. Alguns anos depois dessa tragédia, Elisabeth, com sua filha ainda pequena, passou a viver entre os membros dessa mesma tribo, a fim de compartilhar com eles o precioso evangelho. Em seu retorno para os Estados Unidos, Elisabeth deu início ao seu ministério como palestrante e escritora, publicando mais de vinte livros que foram traduzidos para diversas línguas. Seu ministério continua a influenciar gerações de mulheres ao redor do mundo.

Ministério: Editora Fiel

Editora Fiel
A Editora Fiel tem como missão publicar livros comprometidos com a sã doutrina bíblica, visando a edificação da igreja de fala portuguesa ao redor do mundo. Atualmente, o catálogo da Fiel possui títulos de autores clássicos da literatura reformada, como João Calvino, Charles Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, bem como escritores contemporâneos, como John MacArthur, R.C. Sproul e John Piper.

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