Está ao alcance da vontade do homem aceitar ou rejeitar o Senhor Jesus como salvador? Admitindo o fato que o evangelho é pregado ao pecador e também que o Espírito Santo o convence de seu estado de perdição, o render-se a Deus está, afinal de contas, ao alcance da própria vontade do pecador? A nossa resposta a essa pergunta define o conceito que temos a respeito da depravação humana. Todos os cristãos professos admitirão que o homem é uma criatura caída, mas a dificuldade consiste em determinar o que eles entendem pelo termo “caído”. A impressão geral parece ser a de que o homem passou a ser mortal, não estando mais nas condições em que saiu das mãos do Criador; que é suscetível às doenças e herdeiro de tendências pecaminosas; mas também há a impressão geral de que, se o homem empregar suas capacidades da melhor maneira possível, de algum modo, finalmente, ele alcançará a felicidade. Quão longe estão tais ideias de corresponder à triste verdade! As enfermidades, as debilidades e até mesmo a morte física são ninharias em comparação com os efeitos morais e espirituais da queda! É somente consultando as Sagradas Escrituras que podemos obter alguma ideia do alcance dessa terrível calamidade.
Quando dizemos que o homem é totalmente depravado, queremos afirmar que a entrada do pecado na constituição humana afetou cada parte e cada faculdade do seu ser. Por depravação total se entende que o homem é escravo do pecado e prisioneiro do diabo, em corpo, alma e espírito, andando “segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito que agora atua nos filhos da desobediência” (Ef 2.2). Essa afirmação não deveria suscitar nenhuma discussão; é um fato comum da experiência humana. O homem é incapaz de concretizar suas próprias aspirações e de materializar seus próprios ideais. Não pode fazer as coisas que gostaria de fazer. Há certa incapacidade moral que o paralisa. Isso é uma prova positiva de que ele não é livre; pelo contrário, é escravo do pecado e de Satanás. “Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos” (Jo 8.44). O pecado é mais do que um ato ou uma série de atos; é um estado ou condição que subjaz aos atos pecaminosos e que os produz. O pecado penetrou e permeou todo o ser humano; cegou-lhe o entendimento, corrompeu-lhe o coração e alienou-lhe a mente em relação a Deus. E a vontade do homem não escapou a esses efeitos. A vontade humana está sob o domínio do pecado e de Satanás. Portanto, ela não é livre. Em resumo, as emoções se expressam e a vontade escolhe como devem elas expressar-se, de conformidade com o estado do coração, e por ser o coração enganoso, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto, “não há quem busque a Deus” (Rm 3.11).
Repetimos a nossa pergunta: Entregar-se a Deus está ao alcance da vontade do homem? Procuremos a resposta mediante várias outras indagações. Pode a água, por si mesma, subir acima do seu próprio nível? Pode uma coisa limpa surgir de uma coisa suja? Pode a vontade reverter completamente a tendência e o caráter da natureza humana? Aquilo que está sob o domínio do pecado pode dar origem àquilo que é puro e santo? É claro que não. Para que a vontade de uma criatura caída e depravada possa subir em direção a Deus, é mister que lhe seja aplicado um poder divino que vença as influências do pecado, as quais procuram arrastá-la em outra direção. Isso é apenas uma outra maneira de dizer: “Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer” (Jo 6.44). Em outras palavras, o povo de Deus deve apresentar-se voluntariamente no dia do seu poder (Sl 110.3). Conforme disse J.N. Darby: “Se Cristo veio salvar o que estava perdido, decorre daí que o livre-arbítrio não tem lugar ou razão de ser. Não que Deus impeça os homens de receberem a Cristo — muito pelo contrário. Mas, até mesmo quando Deus emprega todos os recursos para induzir o homem, todos os meios capazes de exercer influência sobre o coração humano, tudo serve apenas para demonstrar que o homem não tem poder algum; que o seu coração é tão corrupto, sua vontade é tão obstinada em não sujeitar-se a Deus (sem contarmos a influência do diabo para induzir o homem ao pecado), que nada pode induzi-lo a receber o Senhor e a abandonar o pecado. Se a expressão ‘a liberdade do homem’ significa que ninguém força o homem a rejeitar o Senhor, então realmente existe tal liberdade. Porém, se isso é dito devido ao fato que o homem não pode escapar da sua condição e escolher o bem, por causa do domínio do pecado, do qual se tornou escravo por sua própria vontade — então, o homem não tem a mínima liberdade” (grifo nosso).
A vontade não é soberana; é serva, porquanto é influenciada e controlada pelas demais faculdades do homem. A vontade não é livre porque o homem é escravo do pecado, o que se percebe nas palavras de nosso Senhor: “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” (Jo 8.36). O homem é um ser racional e, por isso mesmo, é responsável perante Deus; entretanto, afirmar que ele tem a capacidade de escolher o que é espiritualmente bom é negar seu estado de total depravação, ou seja, é negar que a sua vontade, tal como o resto de sua personalidade, é depravada. Visto que a vontade do homem é governada por sua mente e por seu coração e visto que um e outro foram debilitados e corrompidos pelo pecado, segue-se que a única maneira pela qual o homem pode voltar-se para Deus, ou mover-se em direção a ele, é que o próprio Deus efetue nele “tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade” (Fp 2.13). A liberdade da qual o homem se orgulha é, na verdade, a escravidão da corrupção; ele serve a “toda sorte de paixões e prazeres”. Um servo de Deus, com profundos conhecimentos espirituais, disse: “Quanto à sua vontade, o homem é impotente. Não possui uma vontade que se incline para Deus. Eu creio no livre-arbítrio; mas trata-se de uma liberdade pela qual a vontade pode agir tão somente segundo sua própria natureza (grifo nosso). A pomba não tem qualquer vontade de ingerir carniça; o corvo não tem qualquer vontade de comer a comida limpa da pomba. Se a natureza da pomba fosse implantada no corvo, este comeria o alimento daquela. Satanás não pode ter vontade de praticar a santidade. Falando com toda a reverência, o Senhor Deus não pode desejar aquilo que é mau. E o pecador, em sua natureza pecaminosa, jamais poderia ter uma vontade nos moldes desejados por Deus. Para tanto, precisa nascer de novo” (J. Denham Smith). É precisamente isso que temos sustentado ao longo deste capítulo — a vontade é regulada pela natureza pecaminosa.
Entre os “decretos” do Concílio de Trento (1563), declaradamente o padrão do papismo, achamos o seguinte (nos cânones sobre a justificação): “Se alguém afirmar que o livre-arbítrio do homem, movido e despertado por Deus, não coopera, por meio do seu consentimento, com Deus, que o move e desperta, de modo a dispor-se e preparar-se para alcançar a justificação; se, além disto, alguém disser que a vontade humana não pode recusar-se a obedecer, se assim ela quiser, e que ela é inativa, meramente passiva; que tal pessoa seja anátema!”
“Se alguém afirmar que desde a queda de Adão o livre-arbítrio do homem foi perdido e extinto; ou que é algo meramente nominal, um título sem realidade, uma ficção introduzida por Satanás na igreja; que tal pessoa seja anátema!”
Assim, aqueles que hoje insistem no livre-arbítrio do homem natural creem exatamente o que Roma ensina sobre a questão!
Para que o pecador fosse salvo, três coisas se fizeram indispensáveis: Deus Pai teve que determinar sua salvação, Deus Filho teve de adquiri-la e Deus Espírito Santo teve de aplicá-la. Deus faz mais do que simplesmente propor-nos a salvação. Se Deus apenas nos convidasse, estaríamos todos perdidos. Isso é ilustrado de maneira marcante no Antigo Testamento. Lemos em Esdras 1.1-3: “No primeiro ano de Ciro, rei da Pérsia, para que se cumprisse a palavra do SENHOR, por boca de Jeremias, despertou o SENHOR o espírito de Ciro, rei da Pérsia, o qual fez passar pregão por todo o seu reino, como também por escrito, dizendo: Assim diz Ciro, rei da Pérsia: O SENHOR Deus dos céus me deu todos os reinos da terra e me encarregou de lhe edificar uma casa em Jerusalém de Judá. Quem dentre vós é de todo o seu povo, seja seu Deus com ele, e suba a Jerusalém de Judá, e edifique a casa do SENHOR, Deus de Israel; ele é o Deus que habita em Jerusalém”. Segundo lemos, fez-se um oferecimento a um povo cativo, concedendo-lhe a oportunidade de voltar a Jerusalém — o lugar da habitação do Senhor. Todos os israelitas responderam sofregamente a esse convite? Não, de modo algum. A vasta maioria se contentou em permanecer na terra do inimigo. Somente um “remanescente” tirou proveito dessa proposta misericordiosa! E, por que eles assim o fizeram? Preste atenção à resposta das Escrituras: “Então se levantaram os cabeças de famílias de Judá e de Benjamim, e os sacerdotes e os levitas, com todos aqueles cujo espírito Deus despertou, para subirem a edificar a casa do SENHOR, a qual está em Jerusalém” (Ed 1.5). Por semelhante modo, Deus “desperta” os espíritos dos seus eleitos, quando lhes chega a chamada eficaz; e é somente então que têm qualquer disposição para responder à proclamação divina.
A obra superficial de muitos dos evangelistas profissionais dos últimos cinquenta anos é responsável por boa parte das opiniões errôneas, atualmente em voga, quanto à escravidão do homem natural, as quais são ajudadas pela preguiça dos ouvintes, que deixam de julgar “todas as cousas” (1Ts 5.21). O púlpito evangélico típico de nossos dias deixa a impressão de que está inteiramente no poder do pecador aceitar ou não a salvação. Diz-se que “Deus fez a parte dele, e o homem precisa fazer a parte que lhe compete”. Infelizmente, um morto nada pode fazer, e, por natureza, os homens estão mortos nos delitos e pecados (Ef 2.1). Se essa verdade fosse crida realmente, haveria mais dependência do Espírito Santo, para ele atuar com seu poder que opera milagres, e menos confiança em nossas tentativas de “ganhar homens para Cristo”.
Dirigindo-se aos não salvos, os pregadores com frequência usam uma analogia do modo pelo qual Deus oferece o evangelho ao pecador. Imaginam o pecador como um enfermo, acamado, com o remédio para curá-lo, posto sobre a mesinha a seu lado; tudo o que o pecador precisa fazer é esticar o braço e tomar o remédio. Mas, para que essa ilustração retrate de maneira justa o quadro que a Bíblia nos fornece sobre o pecador caído e depravado, há necessidade do homem enfermo e acamado ser descrito como cego (Ef 4.18), de tal modo que não pode ver o medicamento, e tendo a mão paralisada (Rm 5.6), de tal forma que não pode apanhar o remédio. Além disso, seu coração deve ser mostrado não apenas como sendo destituído de total confiança no remédio, mas também cheio de ódio contra o próprio médico (Jo 15.18). Quão superficiais são os pontos de vista hoje em dia defendidos quanto à desesperadora situação do homem! Cristo veio à terra não para ajudar àqueles que estavam dispostos a ajudarem-se a si mesmos, mas para realizar, em prol do seu povo, aquilo que eram incapazes de fazer por si mesmos, ou seja, para abrir os olhos aos cegos, para tirar da prisão o cativo e do cárcere os que jazem nas trevas (Is 42.7).
Concluindo, discutiremos agora a objeção usual e inevitável: por que pregar o evangelho, se os homens não têm a capacidade de responder favoravelmente a ele? Por que convidar o pecador a vir a Cristo, se o pecado o escravizou de tal maneira que não tem em si mesmo a capacidade de vir? Nossa resposta é: não pregamos o evangelho porque cremos que o homem possui “livre-arbítrio”, e, portanto, é capaz de receber a Cristo. Mas nós o pregamos porque esse foi o mandamento que recebemos[1] (Mc 16.15). E porque, embora o evangelho seja uma loucura para os que se perdem, “para nós, que somos salvos, é poder de Deus” (1Co 1.18). “Porque a loucura de Deus é mais sábia do que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens” (1Co 1.25). O pecador está morto em delitos e pecados (Ef 2.1); e um morto não tem a capacidade de desejar coisa alguma. Porquanto “os que estão na carne [os não regenerados] não podem agradar a Deus” (Rm 8.8).
Para a sabedoria carnal, parece o cúmulo da loucura pregar o evangelho aos que estão mortos, sendo que, por isso, estão além da possibilidade de fazer qualquer coisa por si mesmos. Sim, mas os caminhos de Deus são diferentes dos nossos. “Aprouve a Deus salvar aos que creem, pela loucura da pregação” (1Co 1.21). Os homens podem considerar loucura o pregar a “ossos secos”, dizendo-lhes: “Ossos secos, ouvi a palavra do SENHOR” (Ez 37.4). Ah! mas afinal, foi a Palavra do Senhor, e as palavras que ele profere “são espírito e são vida” (Jo 6.63). Homens entendidos, ao lado do túmulo de Lázaro, poderiam caracterizar como evidência de loucura o ato de Jesus, ao dizer ele a um morto: “Lázaro, vem para fora”. Contudo, aquele que assim falou era e é a própria ressurreição e a vida, e, mediante a sua palavra, até os mortos vivem! Portanto, o evangelho é por nós pregado, não porque creiamos que os pecadores têm, em si mesmos, o poder de receber ao salvador proclamado, mas porque o próprio evangelho é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê e porque sabemos que todos quantos têm sido “destinados para a vida eterna” (At 13.48) haverão de crer (Jo 6.37 e 10.16 — note o futuro nessas passagens), no tempo determinado por Deus, porquanto está escrito: “Apresentar-se-á voluntariamente o teu povo, no dia do teu poder” (Sl 110.3).
O que temos exposto neste capítulo não é produto do “pensamento moderno”. É evidente que não, visto que o contradiz de maneira direta. Os homens das últimas gerações estão muito distantes dos ensinamentos de seus antepassados, os quais estavam solidamente alicerçados sobre as Escrituras. Lemos nos Trinta e Nove Artigos da Igreja Anglicana: “A condição do homem depois da queda de Adão é tal que não pode inclinar-se à fé e preparar-se para ela, mediante suas próprias forças e boas obras naturais, e nem mesmo ele pode invocar a Deus. Logo, não temos poder nenhum para praticar boas obras agradáveis e aceitáveis a Deus, sem a graça divina que, mediante Cristo, nos assiste previamente, para que tenhamos a disposição conveniente, e que opera em nós quando chegamos a ter essa boa disposição” (Artigo 10).
No Catecismo Maior de Westminster (que costumava ser reconhecido por todas as igrejas Presbiterianas), lemos: “O estado de pecaminosidade em que o homem caiu consiste na culpa do primeiro pecado de Adão, na ausência daquela retidão com a qual Adão foi criado e na corrupção da natureza do homem, mediante o que ele se tornou inteiramente indisposto, incapaz e oposto continuamente a tudo que é espiritualmente bom, e completamente inclinado para todo o mal” (resposta à pergunta 25).
Outro tanto se lê na Confissão de Fé dos Batistas da Filadélfia (1742): “O homem, por sua queda no estado de pecado, perdeu totalmente qualquer capacidade da vontade, no tocante a qualquer bem espiritual que acompanha a salvação. Por conseguinte, o homem natural, inteiramente hostil ao bem e morto no seu próprio pecado, não pode, por suas próprias forças, converter-se ou preparar-se para tanto” (Capítulo 9).
O artigo acima é um trecho adaptado e retirado com permissão do livro Deus é soberano, de A.W. Pink, Editora Fiel.
[1] “A única base ou garantia para o ato humano de anunciar o perdão e a salvação a seu semelhante é a autoridade e a ordem de Deus, através de sua Palavra” (Historical Theology, William Cunningham, Volume II, pp. 347-8).