Ela conseguiu passar com dificuldade seus dois irmãos pequenos através da claraboia e se espremer para chegar ao telhado de ardósia. Liberdade gloriosa. Eles se levantaram triunfantes no ar fresco que soprava do mar da Irlanda. A água era azul naquele dia, o que para a menina (com sete ou oito anos de idade) significava que o mar era feliz. Em alguns dias, o mar era verde e bravo. Outros dias, cinzento e pavoroso. Do topo dos telhados do vilarejo, eles podiam ver a praia rochosa e, mais ao longe, na água, a grande rocha chamada Ailsa Craig e os dois montes arredondados, os Paps de Jura. Agora vamos ao resto da aventura. As três crianças deslizaram alegremente pelas ardósias e desfilaram triunfais ao redor das calhas — até que viram, fitando-as, as faces admiradas de seus pais.
A menina era Amy Beatrice Carmichael, trineta de uma tal Jane Dalziel. Conta-se que o rei Kenneth II (971–995), da Escócia, havia oferecido uma recompensa a qualquer de seus súditos que ousasse remover o corpo do amigo e parente do rei que fora enforcado. Alguém deu um passo adiante e disse, em gaélico: “Dalziel” — Eu ouso. Por isso, seu nome se tornou Dalziel. Esse espírito não foi muito diluído na criança que estava sobre o telhado.
Os pais, no solo, eram David Carmichael, descendente de covenanters escoceses, e Catherine Jane Filson, descendente de Dalziel. Anos mais tarde, Amy achou significado espiritual nessa união, como achava significado espiritual em quase tudo. Porque os ancestrais de sua mãe eram amigos de certos perseguidores dos covenanters, foi como se perseguidor e perseguido estivessem por fim unidos. “Assim, você percebe”, ela escreveu, “que, afinal de contas, crueldade e erro não são as maiores forças no mundo. Não há nada eterno nelas. Somente o amor é eterno.”
Amy Carmichael nasceu em 16 de dezembro de 1867, na casa de pedra cinzenta, uma das três maiores casas no vilarejo de Millisle, no litoral norte da Irlanda. Abaixo da casa da família Carmichael, perto da beira-mar, até ao dia de hoje, há uma fileira de velhas casas de pedra, com portas baixas, paredes grossas e pequenas janelas com vidraças. Na rua que corre ao longo dessas casas, há bombas de água e argolas de ferro fixas nas pedras em que os cavalos eram amarrados. Não é difícil um visitante no final do século XX imaginar uma menina, envolta num xale de lã, tentando andar rapidamente pela rua com seu irmão menor, enquanto carregava uma panela de sopa enviada por sua mãe para um dos pobres habitantes dos casebres.
A praia rochosa era o lugar favorito de Amy para brincar, o lugar em que ela se deitava de bruços ao lado das poças da maré e observava, observava. Havia coisas vivas nas poças, coisas que tinham encanto infindo para a criança. Seus poderes de observação eram excelentes; sua simpatia, ilimitada — até, como veremos depois, por criaturas que o resto do mundo considera dignas apenas de morte.
A casa era cercada por um jardim em que havia rosas, hera, macieiras, tojos amarelos e amor-perfeito. Havia um muro alto, com um portão enorme que se abria para a rua principal do vilarejo. Não muito distantes, permanecem hoje as ruínas de um velho moinho de farinha, suas janelas, lacradas de tijolos, e o teto, desintegrado. Na beira-mar, pode ser visto o que sobrou do cais onde o grão era descarregado. O bisavô de Amy havia arrendado o moinho cem anos antes de Amy nascer; e sua mãe e seu tio William, cuja casa estava um pouco abaixo na rua, o administravam juntos. Vinda das terras baixas da Escócia, a família se uniu à igreja presbiteriana edificada pelos separatistas antiburgueses, um grupo que, por causa de discordâncias doutrinárias, se separara da Igreja da Escócia. Convencidos de sua obrigação de viverem para o bem dos outros, os dois irmãos apoiavam a igreja com dízimos generosos, compraram uma carruagem movida a pônei para o ministro e eram benfeitores da Millisle National School, que era usada não somente para ensino, mas também para Escola Dominical e cultos evangelísticos.
O amor que formava a atmosfera do lar Carmichael era um amor robusto, sem o menor traço de sentimentalismo, sustentando não apenas a convicção do lado da família paterna e a coragem da família materna de Amy, mas também a firmeza dos presbiterianos irlandeses, a resiliência produzida pelo inverno naquele mar frio e princípios práticos para a criação de filhos.
Não havia dúvida na mente da família Carmichael quanto ao que se esperava deles. Preto era preto. Branco era branco. Eles podiam confiar plenamente na palavra de seus pais, e, quando não era obedecida, havia consequências. Cinco tipos de punição eram usados: ficar de pé num canto com o rosto voltado para a parede, proibição de sair para brincar, palmadas, “palmatoriar” e (o pior de tudo) receber o ”remédio amargo”. Uma palmatória era uma pancada com uma régua de ébano fina e plana. Exigia-se que o filho ficasse de pé e quieto, estendesse a mão imediatamente e não a puxasse para trás, não fizesse escândalo e, por fim, dissesse com educação: “Obrigado, mamãe.” Ele sabia que o pior estava vindo quando via uma bandeja preparada na sala de jantar, com uma jarra de água quente, uma pequena jarra de leite frio, uma xícara de chá, uma colher de chá e um vidro de pó cor-de-rosa.
Era tarde demais para desculpas. A mãe misturava a porção, o filho a recebia, agradecia-lhe pela porção e a tomava.
Um dia, Amy e dois de seus irmãos estavam balançando no portão do jardim quando uma ideia lhe ocorreu. Alguém lhes dissera que as sementes da árvore de laburno ali próxima eram venenosas. “Vamos contar quantas podemos comer antes de morrermos!”, disse Amy. Não demorou para começarem a sentir-se desconfortáveis, e se perguntavam o que aconteceria em seguida. O remédio amargo, é claro, foi o que aconteceu em seguida, e foram mandados para a cama para meditarem em seus pecados. Alguma noção da forte determinação da mãe pode ser obtida do relato de Amy sobre a ocasião, quando ela clamou: “Ó mamãe, tenho uma dor tão desagradável!” A resposta calma: “Tem, querida? Espero que lhe faça bem.” “Mas, mamãe, não posso suportá-la! É uma dor terrível.” “É mesmo, querida? Receio que você terá de suportá-la.”
Uma babá tentou amedrontar as crianças por causa de seu hábito de engolir sementes de ameixa, dizendo-lhes que uma ameixeira nasceria a partir de suas cabeças para cada semente que engolissem. Amy ficou encantada com a ideia de ter um pomar de si mesma, com acesso tão fácil. Resolvendo que 12 árvores lhe proveriam abundância de ameixas para comer e distribuir, ela engoliu em seco 12 sementes.
Quando lhe diziam quão excessivamente arteira ela era, Amy costumava pensar: “Se você ao menos soubesse o quanto eu poderia ser mais arteira, nem acharia que sou de fato arteira.”
Os sete filhos — Amy, Norman, Ernest, Eva, Ethel, Walter e Alfred — eram chamados todos os dias às orações em família pelo som de um sino. Provavelmente, aos servos também era exigido que participassem. Amy se lembrava do som da voz de seu pai lendo a Escritura, um “som solene, como o levantar-se e o rebentar-se das ondas na praia”. Seu ouvido foi treinado dessa maneira, desde os seus primeiros anos, quando os poderes de memorização de uma criança por ouvir eram quase miraculosos. Pelo resto de sua vida, a majestosa cadência da Authorized Version (King James) moldou seu pensamento e cada frase que ela escrevia. Uma criança, mesmo quando aparentemente distraída, aprende muito mais do que os adultos imaginam que ela pode aprender. Amy nem sempre participava perfeitamente da leitura. Uma vez ela viu um rato se afogando num balde de água no exato momento em que o sino de oração tocou. Ela o pescou do balde, o escondeu em seu avental, ocupou seu lugar no momento de oração e esperou que o rato não rechinasse. Ele o fez.
A casa da família Carmichael em Millisle
Sempre que havia uma reunião na pequena igreja pintada de branco em Balleycopeland, a família Carmichael estava lá. Amy tinha inveja dos filhos dos fazendeiros cuja situação na vida era diferente da deles. As esposas dos fazendeiros, por sua parte, talvez tivessem dó dos filhos do proprietário do moinho e, às vezes, lhes ofereciam pastilhas de hortelã quando iam à igreja. As crianças eram instruídas a rejeitar educadamente e dizer: “Muito obrigado, mas mamãe prefere que eu não as coma.” Uma coisa era ir à igreja com as pessoas do vilarejo. Outra bem diferente era fazer o que elas faziam. Os seus filhos se acomodavam durante o longo culto (nunca menos do que duas horas) e chupavam pastilhas cor-de-rosa e brancas. O cheiro chegava até ao banco da família Carmichael — “mas aquela consolação nos era negada”.
Aos domingos era permitido cantar apenas salmos, porém hinos podiam ser usados nas reuniões de oração às quartas-feiras à noite. Uma vez, quando o tema da reunião de oração era “Nossa partida deste mundo”, Amy se entreteve contando todas as várias coisas que escritores de hinos disseram que se esperava alguém fizesse no momento da partida. Como uma pessoa às portas da morte conseguiria fazer tudo que ela nem mesmo sabia, mas estava satisfeita com a perspectiva de clamar: “Ao subir pelo ar, ‘Adeus, adeus, bendita hora de oração!’”? O que mais isso poderia significar, senão aquela própria reunião de oração?
Amy tinha uma extrema sensibilidade ao sofrimento dos outros. Quando sua mãe lhe contou pela primeira vez a história do Calvário, ela se apressou a sair para o jardim, para tentar esquecer os pensamentos tão horríveis a serem suportados, pois como alguém poderia ferir tão gravemente outra pessoa, em especial aquele que era tão bom? E lá, no gramado, estava um primo, e ele havia prendido um sapo a uma araucária-chilena. Parecia uma coisa crucificada… Fiquei desvairada. Num ímpeto de piedade, tentei libertá-lo dos espetos horríveis, mas não podia alcançá-lo. Por isso, disparei rumo à casa para chamar alguém, e, enquanto corria, o pensamento veio de repente: “Ora, todos os sapos vão para o céu.”
Uma lição sobre os mistérios da oração — uma lição árdua para qualquer adulto — ocorreu quando Amy estava com 13 anos. Instruída por sua mãe de que Deus era um ouvidor e respondedor de oração, alguém que podia transformar água em vinho, Amy determinou-se a testar os poderes de Deus. Ajoelhando-se ao lado de sua cama, ela pediu uma coisa pela qual anelava intensamente: olhos azuis. Por certo não haveria dificuldade para o Senhor fazer isso. A menininha foi para a cama com perfeita confiança. Pulou da cama ao amanhecer, puxou uma cadeira para a cômoda, subiu e olhou no espelho — os mesmos olhos castanhos. Ela nunca esqueceu a perplexidade que sentiu até que, de algum modo, uma explicação lhe foi dada (o Senhor mesmo lhe falou ou outra pessoa?): “O não não é uma resposta?” Portanto, a oração não era mágica. Como o seu pai terreno, que a amava, o seu Pai celestial também podia dizer não.
Tendo recebido uma casa de bonecas completa, com mobília formidável e bonecas vestidas apropriadamente, Amy desagradou sua velha babá, Bessie, ao esvaziar a casa e enchê-la de pedras, musgo, besouros e lacraias — coisas que ela achava muito mais interessantes do que os excelentes brinquedos que as crianças deveriam ter, como se pensava.
Seus pais os levavam para caminhadas aos domingos (caminhadas aos domingos eram malvistas pelos presbiterianos naqueles dias), atravessando os campos de trevo cor-de-rosa ou de linho-das-pradarias para verem cisnes, e, nos dias de semana, para observarem a grande roda preta gotejante do moinho espadelador em que as fibras de madeira eram batidas do linho-das-pradarias para fazer linho.
Eles tinham livros — todos os livros infantis que podiam ser adquiridos naquele tempo — e brinquedos, que incluíam um telefone de brinquedo, logo depois que o telefone foi inventado. Sempre havia animais de estimação — Daisy, a gata branca e amarela; Gildo, o collie; Fanny e Charlie, os pôneis. David e Catherine Carmichael amavam a beleza e tentavam cercar seus filhos com coisas bonitas, mantendo distante deles, sempre que possível, tudo que não era bonito. Deram-lhes um microscópio e lentes para encorajá-los a estudar e observar; ensinaram-lhes capilaridade, mostrando como a água subia de grão em grão num torrão de açúcar; demonstraram a eletricidade, esfregando um pedaço de âmbar na manga de um paletó até que finos pedaços de papel voassem para ela.
A avó de Amy morava numa pequena casa perto de Strangford Lough (palavra gaélica que significa lago ou mar), em um lugar chamado Portaferry. Dizia-se que a maré ali era a segunda mais forte do mundo. As crianças tinham permissão de ir remar dentro de certos limites. Uma tarde, Amy e seus irmãos passaram dos limites, foram pegos por uma corrente ligeira e varridos em direção ao banco de areia. “Eu estava pilotando, meus irmãos estavam remando arduamente, mas eram impotentes contra a correnteza. ‘Cante!’, eles gritaram para mim. E eu cantei, no máximo de minha voz, a primeira coisa que me veio à mente:
‘Ele me guia — ó pensamento bendito! Ó palavras celestiais carregadas de conforto! O que quer que eu faça, onde quer que esteja, Ainda é a mão de Deus que me guia.’”
J. H. Gilmore
Os filhos pequenos não frequentavam a escola nos primeiros anos, mas eram ensinados por uma sucessão de governantas. Uma delas, “uma mulher inglesa desafortunada”, não aguentou por muito tempo, e, quando ela partiu, todos eles desceram em marcha para assistir — “Queríamos ter certeza de que ela foi embora!” Sua substituta, Eleanor Milne, era muito mais amada, como uma irmã mais velha para as crianças. Ela lhes ensinava poesia, contava-lhes histórias dos grandes mártires da Escócia e da Inglaterra. As últimas palavras de Ridley a Latimer ficaram gravadas na mente de Amy: “Tenha bom ânimo, irmão, porque Deus ou aplacará a fúria da chama, ou nos dará forças para permanecermos nela.” Quando ele e Latimer foram acorrentados e o fogo, aceso, Latimer disse: “Pela graça de Deus, acenderemos neste dia uma luz tão grande na Inglaterra, que, conforme eu creio, nunca será apagada.”
Assim como a severidade do inverno irlandês, com sua melancolia, umidade e ventos gélidos, cria bochechas vermelhas tanto em velhos quanto em jovens, assim também a severidade da disciplina cristã criou sangue vermelho — saúde espiritual — na menina que nem poderia ter imaginado na época os ataques que seria chamada a enfrentar. Mas foi uma infância pacífica, tendo sua disciplina equilibrada com torrada amanteigada e geleia de framboesa em frente à lareira da creche, o vento brando sussurrando na chaminé enquanto as crianças ouviam histórias, o doce, doce som de uma mãe cantando, os momentos de cavalgar pôneis, subir em árvores, nadar no mar frio. Era um lar pacífico num vilarejo pacífico. O testemunho de Amy, muito tempo depois, foi este: “Não acho que poderia ter havido uma criança mais feliz do que eu era.”
O artigo acima é um trecho adaptado e retirado com permissão do livro Amy Carmichael: um legado de renúncia e entrega, de Elisabeth Elliot, Editora Fiel (em breve).
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