Mundanismo não é composto de certas atividades (certos jogos, danças e artes). Não podemos ter uma visão gnóstica da ética que divide a vida em coisas ruins e coisas boas para se fazer (sagrado e secular). O pecado não está em ter prazer nas coisas criadas, mas em usá-las indevidamente.
A minha filha mais velha, quando era pequena, perguntou-me certa vez: “Pai, essa música a gente não pode cantar porque ela não é de Deus, não é?” Ao expressar-se assim, ela fazia uma dicotomia entre música de louvor (sacra) e música que não é de louvor a Deus (secular). Para a minha filha, música sacra era sinônimo de ser “de Deus”. Eu precisei ensiná-la, porém, que o fato de ser sacra não significa que seja agradável a Deus e o fato de ser secular não é sinal de que só expressa mentiras. Há músicas sacras que são mundanas em seu ensino e músicas não-sacras que, pela graça divina, retratam realidades com veracidade, beleza e sensibilidade.
Se mundanismo tem mais a ver com o “como” eu faço algo, então mundanismo é orientação religiosa. Isso está relacionado com a distinção reformada entre “estrutura” e “direção”. Tullian Tchividjian explica de maneira simples:
Deus criou todas as coisas boas (estrutura), mas nosso pecado violou e corrompeu todas as coisas que Deus havia criado, “dirigindo-as” para longe dele. Tudo na ordem criada (cada pessoa, lugar ou coisa) foi retorcido e deformado pelo nosso pecado… Devemos amar a estrutura do mundo (pessoas, lugares e coi- sas) e, ao mesmo tempo, lutar contra a direção pecaminosa do mundo… O mundanismo, portanto, é caracterizado na Bíblia como a direção errada ou má da boa criação de Deus. Significa adotar os modos, hábitos, padrões de pensamento, práticas, espírito e gostos do mundo.[i]
Nossa vida cultural deveria estar sujeita às normas de Deus. A criação é boa (estrutura) mas o nosso uso da mesma é mau (direção).[ii]
Mundanismo é como um vírus que carregamos para todos os lugares em que vamos. Michael Horton afirma: “É bem possível ser totalmente corrompido pelo mundanismo até mesmo quando estamos enfurnados no gueto cristão. Nossa música, literatura, escolas, rádio, televisão e igrejas cristãs podem tornar-se portadores do vírus do mundanismo sem que tenhamos que nos incomodar com o mundo”.[iii] Horton está nos ensinando que você não precisa sair da igreja para ser mundano. Não estou me referindo a imoralidades. Você não precisa fazer coisa errada dentro da igreja para ser mundano. É possível realizar atividade sacra na igreja (cantar louvores, pregar/ensinar, administrar) e ser mundano. Até quando você cultua ao Senhor, ou quando promove um trabalho focado nos interesses de jovens, ou organiza um evento evangelístico, você pode ser mundano.
Porém, como o nosso enfoque por enquanto é na vida do crente enquanto no mundo, pensemos um pouco mais nas atividades ditas “seculares”. Um cristão mundano age como um ateu na prática, diz Tullian Tchividjian. “Um ateu prático é uma pessoa que chega a conclusões a respeito de dinheiro, negócios, culto, diversão, ministério, educação, ou qualquer outra coisa, sem a influência direta de Deus e de sua verdade revelada (a Bíblia).”[iv] Não refletir
sobre essas atividades extra eclesiásticas a partir do que nós conhecemos de Deus, na prática, é ateísmo.
Observe como a exortação não é para que preenchamos a agenda dos nossos filhos com atividades da igreja para que não sejam contaminados pelo mundo. Mais acampamentos e retiros durante feriados prolongados pode livrá-los de uma viagem devassa com amigos descrentes. Porém, se não cooperarmos na formação de uma cosmovisão cristã nesses jovens, eles continuarão com mentalidade pagã, mesmo no acampamento. Mais tarde na sua vida, Daniel reconhece que é possível estar dentro de um país que professa adorar o Deus verdadeiro, envolvido com atividades cúlticas, e ainda assim ser eminentemente mundano (Dn 9.5-11).
Desde o início da história de Daniel, ele não procura isolar-se das atividades babilônicas. É claro que ele não pode isolar-se, pois é cativo. No entanto, a grande lição que aprendemos com esse jovem é que inserido naquela cultura pagã ele discerne entre o que é lícito e o que é ilícito, o que é cotidiano e o que mundano. Daniel resolveu ser íntegro (v.8a) não se isolando no mundo. Não! Ele demonstrou saber amar a Deus no mundo. O hebraico do início do verso 8 diz algo como “Daniel colocou no seu coração que não se contaminaria”. Já vimos no capítulo 2 deste livro que “coração” (leb em hebraico) na mentalidade hebraica era a sede da personalidade humana, o elemento fundamental da cosmovisão. Isto significa que a resolução de Daniel provém de uma visão de mundo sedimentada no coração. Embora ainda jovem, ele e seus amigos enfrentaram um mundo adverso com uma cosmovisão cristã. E ele sabia que a melhor maneira de expressar essa cosmovisão era com uma conduta piedosa.
Semelhantemente, precisamos conhecer a cultura de forma acurada, observando onde e quando ela influencia a maneira como pensamos e vivemos. Precisamos de um radar cultural para reconhecer padrões disfarçados do mundanismo em nossa cosmovisão para que extirpemos sua influência tóxica.
Este artigo é um trecho adaptado com permissão do livro Amando a Deus no mundo, de Heber Campos Jr, Editora Fiel.
[i] Tchividjian, Fora de Moda, p. 37.
[ii] Essa visão positiva de nossas atividades “seculares” (rotineiras) é que fez com que os reformado- res tratassem de toda profissão como sendo uma “vocação”, pois entendiam que deveriam trabalhar em resposta aos ditames divinos em sua profissão. Para uma tratativa mais ampla do trabalho, veja o capítulo 21 deste livro.
[iii] Michael Horton, O Cristão e a Cultura (São Paulo: Cultura Cristã, 1998), p. 177.
[iv] Tchividjian, Fora de Moda, p. 38.