Amai os vossos inimigos. (Lc 6.27)
Os cristãos demonstram em suas vidas que a salvação é uma realidade. O verdadeiro cristão não aponta para um certificado de batismo ou para uma decisão tomada anos atrás, mas para sua vida no presente como evidência de que sua fé é real. E aqui está a próxima marca simples, porém profundamente desafiadora, do cristão. Jesus a expõe nessas quatro palavras simples: “Amai os vossos inimigos”.
Imagine alguém no meio da multidão cochichando na orelha do amigo ao lado: “Jesus acabou de dizer o que eu acho que ele disse? Jesus acabou de dizer que você deve realmente amar seus inimigos?”. E seu amigo diz: “Shh… espere um minuto. Você está perdendo o resto da frase!” E então eles inclinam os ouvidos para Jesus a tempo de ouvi-lo dizer: “fazei o bem aos que vos odeiam; bendizei aos que vos maldizem, orai pelos que vos caluniam” (vv. 27-28).
Jesus está ensinando que seus seguidores não devem simplesmente fazer o que é certo, mas devem fazer o que é bom. E devem agir dessa forma não apenas em relação àqueles que merecem, mas também em relação àqueles que não merecem. Por quê? Porque“é misericordioso vosso Pai” (v. 36).
É incongruente, se não impossível, para nós, que nos declaramos filhos do Pai celestial, não manifestarmos a misericórdia de nosso Deus misericordioso e não demonstrarmos amor por nossos inimigos; é incongruente para nós, que professamos ser seguidores de Jesus, não abordarmos aqueles que nos prejudicam da mesma forma que Cristo, que, “quando ultrajado, não revidava com ultraje […] mas entregava-se àquele que julga retamente” (1Pe 2.23).
O ponto aqui, portanto, é simplesmente este: amor. Todo mundo tem algo a dizer sobre o amor – poetas, compositores, celebridades. Ouço com bastante frequência alguém dizer algo como “Bem, tudo o que você precisa é de amor, como diz o bom livro”. Ignorando o fato de que foram Lennon e McCartney, não Deus, que disseram “ Tudo o que você precisa é de amor”, há um sentido em que isso é verdade: certamente precisamos mais de amor do que de ódio, e todos nós podemos ver o que o ódio está fazendo com o nosso mundo e talvez até mesmo em nossas próprias comunidades ou famílias.
Mas uma coisa é cantar; outra coisa é entender o que é o amor, e outra, ainda, é colocar em prática o mandamento de amar.
AMOR É…
Então, o que é o amor? A palavra que encontramos no Novo Testamento para“amor” é a tradução de uma das três palavras gregas para“amor” usadas no Novo Testamento, e, na verdade, há quatro palavras gregas para “amor” que são traduzidas por nossa única palavra em português.
Primeiro, storge, que é a palavra grega para “afeição natural”. É o tipo de afeição que deveria existir entre duas irmãs em uma família. Há uma dimensão natural nisso. Elas se amam; esse é um amor do tipo storge. Segundo, eros, que é um amor romântico ou sensual. Terceiro, philia ou phileo, que é a palavra que faz parte do nome da Filadélfia,“a cidade do amor fraterno”. Isso não tem a ver com o afeto natural de pessoas da mesma família, mas com um senso de fraternidade e camaradagem, como os membros de uma equipe esportiva ou de um clube de ginástica podem ter entre si.
No entanto, nenhuma dessas palavras é a usada por Jesus aqui. Aqui, a palavra é ágape. E isso é radicalmente diferente porque esse é um amor que não é despertado pela identidade, atratividade ou pelo mérito daquele que está sendo amado. Ele não surge só porque olhamos para a pessoa e pensamos: “Ah, essa é uma pessoa adorável. Naturalmente, sinto um certo nível de afeição por ela”. Jesus está pedindo um amor pelas pessoas que não está, de forma alguma, relacionado a quão amáveis elas são.
Ágape é, obviamente, o tipo de amor que Deus tem por você em Cristo. Ele não o ama porque você melhorou seu comportamento, ou porque você é espiritualmente atraente, ou porque suas obras merecem a afeição dele. Não, nós “éramos, por natureza, filhos da ira”, pois estávamos “mortos em [nossos] delitos e pecados nos quais [andávamos] outrora” (Ef 2.3, 1). “Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores […] nós, quando inimigos, fomos reconciliados com Deus mediante a morte do seu Filho” (Rm 5.8, 10, ênfase acrescentada).
Se esses versículos lhe são familiares, não deixe que passem desapercebidos. Saboreie-os. É somente porque Deus escolhe amar aqueles que vivem como seus inimigos que você tem alguma esperança, algum relacionamento com ele e algo pelo que esperar na eternidade. Deus ama seus inimigos. E seus filhos, diz Jesus, devem fazer o mesmo.
O amor ágape não é cego. Jesus não está dizendo que exercemos esse tipo de amor por nossos inimigos sendo cegos às suas ofensas contra nós, ou porque, de alguma forma, o amor nos domina e não vemos as pessoas como realmente são. Ele está dizendo que as vemos exatamente como são – em toda a sua feiura, maldade, maledicências, ódio, e em sua falta de vontade de pagar o que nos devem – em tudo o que naturalmente nos levaria a vê-las como adversárias. Veja todos os defeitos e erros dessa pessoa de forma clara e evidente, diz Jesus. E então ame-a.
O estudioso da Bíblia Richard Lenski coloca isso da seguinte forma:
Pode ser que esse amor não veja nada de atrativo naquele que é amado. E esse amor também não se é ativado por qualquer coisa que seja atrativa. Seu motivo interior, independentemente de o objeto ser digno ou não, é conceder essas bênçãos sobre a pessoa amada e fazer a ela o bem mais elevado possível.[i]
Jesus está, mais uma vez, pegando a sabedoria humana convencional e virando-a completamente de cabeça para baixo. A abordagem padrão é a seguinte: você gosta das pessoas de quem deve gostar e odeia as pessoas que tem permissão para odiar. Se as pessoas o tratam bem, se seu afeto é atraído por quem elas são ou como são, então ame-as bem; se as pessoas o tratam mal, então, na melhor das hipóteses, você é chamado a tolerá-las e, na maioria das circunstâncias, é totalmente justificável se vingar delas. Jesus diz: “Faça o bem àqueles que o odeiam”. Isso é o oposto do que nossos corações querem fazer e do que nosso mundo nos diz para fazer.
Uma observação: Jesus não está aqui corrigindo os ensinamentos do Antigo Testamento, mas, sim, dando continuidade a eles. Havia uma compreensão equivocada de que o Antigo Testamento dizia: “Ame o seu próximo; odeie o seu inimigo”. Isso não é verdade. Levítico 19.18 diz ao povo de Deus: “Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor”.
Como é que alguém conclui “odeie seus inimigos e ame seu próximo” a partir dessa frase? Simples: eles pegam a pequena frase “do teu povo” e a usam para encolher e diminuir a noção de amor abrangente. Eles determinam quem é “do teu povo” e os definem como aqueles que são fáceis de amar. Pensando assim, você pode concluir que está dispensado de ter de amar qualquer pessoa que o contrarie ou que não seja muito parecida com você. E assim Jesus diz, em essência: Leia Levítico 19.18. Quem é seu povo? Todo mundo. Quem é seu próximo? Todo mundo.
Portanto, não guardar ira aplica-se ao seu relacionamento com quaisquer pessoas contra quem você poderia guardar ira. Isto é, todos aqueles que o prejudicaram. Isso é desafiador para quase todos nós. Alguns de nós guardam rancor que não datam apenas de alguns meses atrás, mas de anos. E nós carregamos esse rancor por aí. Nós cuidamos dele como se fosse nosso bichinho de estimação. Nós trazemos esse rancor à tona em nossa mente de tempos em tempos e o reexaminamos. Pode ser que nós nunca o coloquemos em prática, porém imaginamos quão satisfatório seria fazê-lo.
“Amai os vossos inimigos”, diz nosso Senhor. “Fazei o bem aos que vos odeiam”.
Este artigo é um trecho adaptado e retirado com permissão do livro A vida cristã segundo Jesus, de Alistair Begg, Editora Fiel.
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[i] The Interpretation of St. Luke’s Gospel 1–11 (Minneapolis: Augsburg Fortress, 2008), p. 361 (parafraseado).