O objetivo da obra de Deus em nós é trazer nossa vida para a harmonia e concordância com a sua própria justiça, a fim de manifestar para nós mesmos e outros nossa identidade como seus filhos adotados. Descobrimos, na Lei de Deus, a imagem dele mesmo, à qual somos progressivamente conformados. No entanto, como somos preguiçosos e precisamos ser estimulados e encorajados, será útil construir, neste trabalho, um modelo de maturidade cristã a partir de várias passagens da Escritura, para que aqueles que possuem um coração verdadeiramente arrependido não se percam no caminho que leva a uma maior conformidade com a imagem de Deus.
Eu sei que, ao lidar com o tópico da maturidade na vida cristã, estou entrando num assunto vasto e complexo. Mesmo que eu apenas resumisse tudo o que foi escrito por outros acerca desse tema, o resultado seria um volume longo e denso. Gerações anteriores de teólogos escreveram grandes trabalhos sobre as virtudes individuais, mas não pouparam palavras. Quando alguém busca descrever e recomendar uma virtude particular, é como se sua caneta espontaneamente o levasse a escrever um longo texto, por causa da importância do assunto. Com efeito, uma pessoa não parecerá ter descrito uma virtude em particular de maneira suficiente a menos que escreva extensamente.
Neste trabalho, porém, não é minha intenção dizer muito, nem discutir cada virtude em detalhes, tampouco me desviar para longas exortações. Tais exortações podem ser encontradas nos escritos daqueles que viveram antes de nós, especialmente nos sermões dos Pais da Igreja. Meu objetivo aqui é simplesmente apresentar para os piedosos um modelo para que ordenem a própria vida. O que pretendo é identificar certo princípio universal para guiar os cristãos em seus deveres. Talvez, no futuro, eu tenha tempo para tratar do assunto das virtudes cristãs de modo mais completo. Pode ser que outros mais adequados à tarefa o façam. Por natureza, amo a brevidade, de sorte que é provável que, mesmo que tentasse escrever mais extensamente, eu não obtivesse êxito em meus esforços. Seja como for, ainda que um trabalho mais longo sobre a vida cristã valesse o empenho, eu hesitaria em dedicar-me a ele agora, uma vez que o propósito desta obra é apresentar a doutrina de forma simples e concisa.
Quando filósofos escrevem sobre a vida virtuosa, identificam certos objetivos primários para o ser humano, tais como a integridade e a honra, das quais derivam deveres específicos e um coro inteiro de virtudes remanescentes. Mas a Escritura tem sua própria ordem e plano, os quais são mais belos e certos do que qualquer outro método filosófico. Os filósofos, querendo chamar atenção para si, esforçaram-se para ser claros — claros, na verdade, na exibição de suas próprias habilidades retóricas. Porém, o Espírito de Deus é desprovido dessa motivação em seus ensinamentos. Ele, portanto, não seguiu o método específico dos filósofos, embora tenha revelado a verdade clara o suficiente para nos impedir de menosprezar a clareza.
Há duas outras partes da instrução das Escrituras sobre a vida cristã, que são as que se seguem. A primeira é que o amor à justiça — à qual não somos naturalmente propensos — deve ser implantado e derramado em nosso coração. A segunda é que precisamos de alguns modelos que nos previnam de nos perder em nossa busca pela justiça. A Escritura contém muitos argumentos para nos encorajar no caminho da justiça. Muitos desses argumentos apresentei em outros lugares,[1] enquanto outros apresento aqui.
Para começar, qual melhor base podem as Escrituras dar para a busca da justiça do que nos dizer que deveríamos ser santos porque o próprio Deus é santo? Além disso, quando estávamos espalhados e vagando como ovelhas, perdidos no labirinto do mundo, Deus nos encontrou e nos reuniu consigo. Quando contemplamos nosso relacionamento com Deus, lembremos que a santidade é o laço da nossa união com ele — não porque, evidentemente, entramos em comunhão com ele pelo mérito de nossa própria santidade. Antes, nós primeiramente nos agarramos a ele e, então, havendo recebido sua santidade, seguimos para onde ele nos chamar; visto que é característico de sua glória que ele não tenha comunhão com o pecado e a impureza. A santidade é o objetivo do nosso chamado. Assim, por coerência, devemos ter em vista a santidade caso queiramos responder corretamente ao chamado de Deus. Para qual propósito Deus nos tirou da maldade e da poluição deste mundo, nas quais estávamos submersos, se nós nos permitimos nadar nelas pelo resto de nossa vida?
Ademais, se nos contamos entre o povo de Deus, a Escritura nos manda viver como cidadãos da cidade santa de Jerusalém, que ele consagrou a si próprio.
Na verdade, não temos aqui cidade permanente, mas buscamos a que há de vir. (Hb 13.14)
É vergonhoso que os cidadãos da cidade santa a poluam com a sua impureza. Dessa maneira, lemos que haverá uma morada no tabernáculo de Deus para aqueles que andam irrepreensíveis e buscam a justiça. Não é certo que o santuário em que Deus habita se pareça com um estábulo imundo.
Para nos motivar em direção à justiça de forma mais efetiva, a Escritura nos diz que Deus, o Pai, que nos reconciliou consigo mesmo em seu Ungido, Jesus Cristo, nos deu em Cristo um padrão ao qual deveríamos moldar nossa vida. Você não encontrará um modelo melhor entre os filósofos — nos quais muitos esperam encontrar o único tratamento correto e ordenado da filosofia moral. Estes, embora se esforcem ao máximo para nos encorajar à virtude, não têm nada a dizer senão que deveríamos viver “de acordo com a natureza”. A Escritura, porém, deriva seu encorajamento da verdadeira fonte. Ela nos ensina a contemplar nossa vida em relação a Deus, nosso Autor, a quem estamos ligados. E, tendo nos ensinado que caímos do verdadeiro estado e condição de nossa criação original, a Escritura acrescenta que Cristo, através de quem o favor divino para conosco foi restaurado, é colocado à nossa frente como um modelo cuja forma e beleza deveriam estar refletidas em nossa própria vida. O que poderia ser mais efetivo? De fato, o que poderia ser mais necessário que isso? Fomos adotados pelo Senhor como filhos mediante este entendimento: que, em nossa vida, deveríamos espelhar a Cristo, que é o elo da nossa adoção. Com efeito, a não ser que sejamos devotos à justiça — até mesmo aficionados dela —, abandonaremos sem fé nosso Criador e o renegaremos como nosso Salvador.
A Escritura deriva princípios de conduta de cada dádiva divina que ela descreve para nós, assim como de cada aspecto de nossa salvação. Deus se manifestou como um Pai para nós. Caso nós, por nossa vez, não nos manifestemos como filhos a ele, provamos ser extremamente ingratos (Ml 1.6; 1Jo 3.1).
Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos amados […]. (Ef 5.1)
Cristo limpou-nos ao nos lavar com seu sangue e transmitiu-nos essa limpeza por meio do batismo[2]. Seria inapropriado, portanto, corrompermo-nos com a imundícia (1Co 6.11; Ef 5.26; Hb 10.10; 1Pe 1.15, 19). Cristo enxertou-nos no seu corpo. Nós, portanto, que somos seus membros, devemos ser especialmente cuidadosos para não lançar lama ou impureza ao corpo de Cristo (Jo 15.3-6; 1Co 6.15; Ef 5.23-33).
Cristo, nosso cabeça, subiu aos céus. Nós, pois, devemos deixar de lado nossas afeições terrenas e esperar de todo o coração por aquele lugar (Cl 3.1ss). O Espírito Santo consagrou-nos como templos de Deus. Devemos, assim, deixar a glória de Deus brilhar através de nós, e não nos poluirmos com o pecado. Nosso corpo e nossa alma foram destinados à incorrupção celestial e a uma coroa imperecível. Nós, portanto, devemos nos empenhar, mantendo-nos puros e incorruptíveis até o Dia do Senhor (1Ts 5.23). Essas são as bases santas sobre as quais construímos a vida cristã. Nada parecido com isso pode ser encontrado em filósofos, que, em sua recomendação de virtude, nunca vão além da dignidade que o homem natural pode alcançar.
Algo deve ser dito sobre aqueles que querem ser chamados cristãos, mas não possuem nada de Cristo a não ser o título e a aparência. Estes se gloriam arrogantemente no santo nome dele. Contudo, apenas aqueles que ganharam um conhecimento verdadeiro de Cristo a partir da Palavra do Evangelho têm um relacionamento com ele. E o apóstolo nega que qualquer pessoa aprendeu verdadeiramente a Cristo se não compreendeu ainda que deve despir-se do velho homem, o qual é corrompido pelos desejos enganosos, e revestir-se de Cristo.
Mas não foi assim que aprendestes a Cristo, se é que, de fato, o tendes ouvido e nele fostes instruídos, segundo é a verdade em Jesus, no sentido de que, quanto ao trato passado, vos despojeis do velho homem, que se corrompe segundo as concupiscências do engano, e vos renoveis no espírito do vosso entendimento, e vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade. (Ef 4.20-24)
Tais cristãos nominais demonstram que seu conhecimento de Cristo é falso e ofensivo, não importando quão alto e eloquentemente falem sobre o Evangelho; uma vez que a verdadeira doutrina não está na língua, mas na vida. Além disso, a doutrina cristã não é entendida apenas pelo intelecto e memória, como a verdade é entendida em outros campos de estudo. Antes, a doutrina é recebida corretamente quando se apossa de toda a nossa alma e encontra moradia e abrigo no íntimo do nosso coração. Então, que essas pessoas parem de mentir ou provem-se discípulos dignos de Cristo, seu mestre.
Nós demos prioridade à doutrina que contém a nossa religião, já que ela estabelece a nossa salvação. Todavia, para a doutrina nos ser frutífera, deve transbordar em nosso coração, propagar-se em nossa rotina e realmente transformar-nos por dentro. Até mesmo os filósofos se enraivecem e rejeitam aqueles que, embora professem uma arte que lhes deveria governar a vida, distorcem-na de forma hipócrita, transformando-a em mero falatório. Quanto mais, então, deveríamos detestar a fala tola daqueles que concordam da boca para fora com o Evangelho? O poder do Evangelho deve penetrar nas mais recônditas afeições do coração, embrenhar-se em nossa alma e inspirar o ser humano completo cem vezes mais do que os ensinamentos desprovidos de vida dos filósofos.
Não estou dizendo que a conduta de um cristão não respirará nada além do Evangelho puro, embora isso deva ser desejado e buscado. Em outras palavras, não estou falando sobre a perfeição na caminhada cristã, como se estivesse indisposto a admitir ou reconhecer como cristão alguém que não obteve a perfeição. Se esse fosse o caso, todos seriam excluídos da igreja, já que não encontramos nela quem esteja próximo de ser perfeito. De fato, encontramos muitos na igreja que progrediram apenas um pouco em direção à perfeição, os quais, no entanto, seria injusto rejeitar como cristãos.
O que estou dizendo é: fixemos nossos olhos no alvo e único objeto de nossa busca. Que esse objetivo, em vista do qual temos de nos esforçar e batalhar, seja estabelecido desde o início. Afinal, não é certo barganhar com Deus quanto ao que aceitaremos ou não daquilo que nos prescreveu em sua Palavra. Deus sempre confere a máxima importância à integridade,[3] recomendando-a como a principal parte de seu culto.
Se andares perante mim como andou Davi, teu pai, com integridade de coração e com sinceridade, para fazeres segundo tudo o que te mandei e guardares os meus estatutos e os meus juízos, então, confirmarei o trono de teu reino sobre Israel para sempre, como falei acerca de Davi, teu pai, dizendo: Não te faltará sucessor sobre o trono de Israel. (1Rs 9.4-5)
Pela palavra integridade, ele se refere à simplicidade sincera do coração, livre de fingimento e engano, o que é o oposto da duplicidade de coração. Em outras palavras, viver corretamente tem uma base espiritual sobre a qual a afeição interna da alma é sinceramente devotada a Deus para ser nutrida em santidade e retidão.
Por óbvio, nenhum de nós é capaz de correr rapidamente no percurso correto enquanto permanecemos no confinamento terreno de nosso corpo. É verdade que a maioria de nós é tão oprimida pela fraqueza, que fazemos pouco progresso — cambaleando, mancando e rastejando no chão. Mas prossigamos de acordo com a medida de nossos recursos e persigamos o caminho em que começamos a andar. Nenhum de nós prosseguirá com tão pouco sucesso a ponto de não fazer nenhum progresso diário no caminho. Continuemos, portanto, a tentar progredir, a fim de que tenhamos continuamente alguns ganhos no caminho proposto pelo Senhor, sem que nos desanimemos com a pequenez de nossos êxitos. Embora muitos dos nossos sucessos estejam aquém de nossa vontade, nossos esforços não são vãos, caso estejamos mais adiantados hoje do que ontem. Então, fixemos nossos olhos no alvo com sinceridade e simplicidade, aspirando àquele fim — não nos autobajulando tolamente nem arranjando desculpas para nossas más ações. Prossigamos, num esforço contínuo, em direção ao alvo, com o fim de superarmos a nós mesmos, até que, finalmente, atinjamos a própria perfeição. Isso, de fato, é o que perseguimos e buscamos por toda a vida, porém só o possuiremos quando formos libertos da fraqueza da carne e tivermos sido recebidos na perfeita comunhão do Senhor.
O artigo acima é um trecho extraído com permissão do livro A essência da piedade, de João Calvino, Editora Fiel.
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[1] Por exemplo, na discussão de Calvino sobre a majestade de Deus (Institutas 1.1.2-3) e em sua discussão sobre a conversão (Institutas 2.3.6).
[2] Calvino reconhece o batismo como um instrumento das realidades que representa, desde que o sacramento seja acompanhado pela fé. “Mas deste sacramento, assim como de todos os outros, nós obtemos apenas aquilo que recebemos pela fé” (Institutas 4.15.15).
[3] Veja Gênesis 17.1-2; 1 Reis 9.4-5; Salmo 41.12.