quarta-feira, 18 de dezembro
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Por que a interpretação bíblica é importante?

O debate moderno sobre a Escritura

Apelando à mesma Bíblia, cristãos, mórmons e testemunhas de Jeová podem chegar admiravelmente a conclusões divergentes. Por exemplo, os cristãos creem que há um único Deus, o Deus trino (Pai, Filho e Espírito Santo), que existe e existirá para sempre. Os mórmons podem citar versículos para asseverar que o Deus da Bíblia é apenas um entre inúmeras deidades e que nós mesmos, se masculinos, somos também deuses. Testemunhas de Jeová afirmam que é blasfêmia dizer que Jesus ou o Espírito Santo é uma pessoa divina. Até pessoas que confessam o nome de cristão debatem veementemente se a Bíblia condena o comportamento homossexual. Em outro nível, cristãos genuínos podem ficar admirados depois de lerem um texto do Antigo Testamento que regulava doenças de pele infecciosas ou redistribuição de terra no antigo Israel (veja a Questão 19, “Todos os mandamentos da Bíblia se aplicam hoje?”). Como esses textos são aplicáveis hoje? Evidentemente, não basta dizer: “Eu creio na Bíblia”. A correta interpretação da Bíblia é essencial.

O que é interpretação?

Interpretar um documento é expressar seu significado por meio da fala ou da escrita. Envolver-se em interpretação presume que há, de fato, um significado correto e um significado incorreto de um texto, e que devemos ter cuidado para não interpretarmos errado esses significados. Quando lidamos com as Escrituras, interpretar apropriadamente um texto significa comunicar, de modo fiel, o significado do texto do autor humano inspirado, embora não negligenciando a intenção divina (veja a Questão 3, “Quem escreveu a Bíblia: humanos ou Deus?”).

As Escrituras mostram a necessidade de interpretação bíblica

Vários textos na Bíblia demonstram claramente que há tanto uma maneira correta como uma maneira incorreta de entender as Escrituras. Em seguida, oferecemos alguns exemplos desses textos, com breve comentário.

• 2 Timóteo 2.15: “Procura apresentar-te a Deus aprovado, como obreiro que não tem de que se envergonhar, que maneja bem a palavra da verdade”. Nesse versículo, Paulo exorta Timóteo a manejar bem ou “interpretar corretamente” (orthotomounta) a palavra da verdade, ou seja, as Escrituras. Essa advertência subentende que as Escrituras podem ser manejadas ou interpretadas de maneira incorreta.

• Salmo 119.18: “Desvenda os meus olhos, para que eu contemple as maravilhas da tua lei”. Aqui, o salmista rogou que o Senhor lhe permitisse entender e se deleitar no significado da Escritura. Essa súplica mostra que a experiência de entendimento prazeroso da Escritura não é universal.

2 Pedro 3.15-16: “Tende por salvação a longanimidade de nosso Senhor, como igualmente o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada, ao falar acerca desses assuntos, como, de fato, costuma fazer em todas as suas epístolas, nas quais há certas coisas difíceis de entender, que os ignorantes e instáveis deturpam, como também deturpam as demais Escrituras, para a própria destruição deles”. É claro, nas instruções de Pedro, que é possível distorcer o significado da Escritura. E, em vez de aprovar essa liberdade interpretativa, Pedro diz que perverter o significado da Escritura é um pecado de consequência séria.

Efésios 4.11-13: “Ele mesmo concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para pastores e mestres, com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo, até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo”. Se as Escrituras fossem entendidas automaticamente por todos, não haveria necessidade de mestres capacitados por Deus para instruir e edificar a igreja. A provisão de Deus de um ofício de ensino na igreja demonstra a necessidade de pessoas que possam entender e explicar corretamente a Bíblia.

• 2 Timóteo 4.2-3: “Prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com toda a longanimidade e doutrina. Pois haverá tempo em que não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, cercar-se-ão de mestres segundo suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos”. As instruções de Paulo a Timóteo mostram que há uma maneira correta de pregar a revelação da Escritura e que também haverá corruptores dessa revelação.

Linguagem e cultura mostram a necessidade interpretação bíblica

De algumas maneiras, a tradução é a forma mais fundamental de interpretação. O texto em sua forma original é ininteligível para uma nova audiência; por isso, ele precisa ser colocado em uma nova língua. Mas a tradução do texto não é como a repetição de regras matemáticas, apenas com símbolos diferentes. Todas as línguas têm elementos culturais e panos de fundo históricos admitidos que não podem ser expressos com o mesmo número de palavras ou construções gramaticais exatamente correspondentes. Por isso, há necessidade de estudo, explicação e interpretação adicional de um texto. Por exemplo, em Mateus 1.18, Maria e José são descritos como desposados (noivos), mas em Mateus 1.19 lemos que José pensa em “deixá-la secretamente”. Diferentemente dos costumes brasileiros de casamento, os antigos costumes judaicos exigiam que um divórcio rompesse o noivado. Certamente, esse conceito pode ser explicado, mas é difícil comunicá-lo de modo sucinto numa tradução. De fato, mesmo quando alguém se comunica em sua língua nativa, frequentemente há a necessidade de se clarificarem conceitos ambíguos.

Há alguns anos, li uma reportagem sobre uma prática estranha que se desenvolvia entre alguns jovens cristãos na China. Esses novos crentes achavam que era um sinal de fé verdadeira levarem consigo uma pequena cruz de madeira. Aparentemente, com base nas instruções de Jesus em Lucas 9.23 (“Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, dia a dia tome a sua cruz e siga-me”), esses cristãos chegaram a pensar que colocar uma cruz de madeira em seu bolso era ordenado por Cristo. Entretanto, tomar “a sua cruz” é uma figura de linguagem, significando negar suas próprias ambições e desejos em submissão ao senhorio de Cristo.

Quando nos familiarizamos com os diferentes períodos, gêneros e antecipações/cumprimentos da Escritura, somos mais capazes de abordar com confiança qualquer parte individual da Bíblia. Admitindo a natureza unificada da Bíblia, bem como o desdobramento progressivo dos planos de Deus (Hb 1.1-3), é claro que uma pessoa que tem um entendimento definido dos propósitos universais de Deus estará mais preparada para entender as partes individuais da história. É claro que se exigem tempo e estudo para se obter maior familiaridade com o texto.

Diz-se, às vezes, que a Escritura é o melhor intérprete da Escritura. Isso significa que um contexto bíblico mais amplo ajudará o leitor a entender corretamente qualquer passagem individual. Sem conhecer todo o livro de 1 João, por exemplo, o texto de 1 João 5.16 parece extremamente obscuro (“Este é aquele que veio por meio de água e sangue, Jesus Cristo; não somente com água, mas também com a água e com o sangue. E o Espírito é o que dá testemunho, porque o Espírito é a verdade”). Conhecendo o contexto mais amplo da carta, pressupondo uma mensagem unificada no Novo Testamento e tendo algum conhecimento do pano de fundo cultural do gnosticismo incipiente, podemos concluir razoavelmente que o versículo afirma a natureza divino-humana de Cristo, vista tanto em seu batismo (água) como em sua morte/ressurreição (sangue).[1]

Um entendimento correto do significado original do autor é também fundamental para a aplicação correta do texto hoje. Por exemplo, Provérbios 22.28 diz: “Não removas os marcos antigos que puseram teus pais”. Visto que marcos eram usados para determinar os limites de propriedades antigas, esse provérbio proíbe a aquisição desonesta de uma terra do próximo. Aplicado mais amplamente, o texto aponta para o desagrado de Deus com qualquer roubo sorrateiro — mudar marcos antigos, envolver-se em esquemas de roubo de dados pessoais ou qualquer outro roubo furtivo. O princípio (“não roube de maneira furtiva”) tem de ser destilado de um mandamento culturalmente condicionado (“Não removas os marcos antigos”).

É importante proceder a uma interpretação cuidadosa porque pressuposições teológicas podem nortear interpretações. Alguns intérpretes bem-intencionados, por exemplo, devido aos seus compromissos hermenêuticos prévios, insistem na interpretação literalista de uma linguagem que os autores bíblicos pretendiam que fosse tomada figurativamente.[2] Por meio de interpretação bíblica cuidadosa, o estudante da Escritura pode tornar-se ciente das tendências de outros, bem como chegar a reconhecer e avaliar suas próprias predileções hermenêuticas.


O artigo acima é um trecho adaptado com permissão do livro Hermenêutica fiel: Introdução à interpretação bíblica, de Robert L. Plummer, Editora Fiel (em breve).

CLIQUE AQUI para acessar os demais artigos que são trechos deste livro.


[1] Veja John R. Stott, The Letters of John, ed. rev., TNTC 19 (Grand Rapids: Eerdmans, Leicester: InterVarsity Press 1988), p. 179-82.

[2] Veja a competente abordagem de linguagem figurada por Richard D. Patterson, em “Wonders in the Heavens and on the Earth: Apocaliptic Imagery in the Old Testament”, JETS 43, n. 3 (2000): 385-403.


Autor: Rob Plummer

Robert L. Plummer (PhD) é erudito na área de Novo Testamento e serve como professor de Interpretação do Novo Testamento no Southern Baptist Theological Seminary em Louisville, KY, EUA.

Ministério: Editora Fiel

Editora Fiel
A Editora Fiel tem como missão publicar livros comprometidos com a sã doutrina bíblica, visando a edificação da igreja de fala portuguesa ao redor do mundo. Atualmente, o catálogo da Fiel possui títulos de autores clássicos da literatura reformada, como João Calvino, Charles Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, bem como escritores contemporâneos, como John MacArthur, R.C. Sproul e John Piper.

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