“Por que você insiste em que o comportamento homossexual é errado quando a Bíblia também manda que pessoas não usem roupas feitas de dois materiais diferentes (Lv 19.19)? Você escolhe da Bíblia a moralidade que você quer”. Essas acusações contra os cristãos não são incomuns hoje. Como podemos, realmente, determinar quais mandamentos bíblicos são atemporais em sua aplicação? Temos uma base bíblica para obedecermos a alguns mandamentos da Escritura, enquanto negligenciamos outros?
Mandamentos vinculados à aliança
Ao considerarmos essa questão importante, precisamos, em primeiro lugar, fazer distinção entre mandamentos vinculados à antiga aliança que foram abolidos em Cristo e mandamentos que ainda devem ser vividos diariamente pelo povo de Deus. Embora seja um pouco de simplificação, pode ser útil pensarmos nos mandamentos de Deus no Antigo Testamento como divididos em civis (sociais), cerimoniais (religiosos) e morais (éticos). As leis que se relacionavam aos aspectos civis e cerimoniais (por exemplo, leis alimentares, sacrifícios, circuncisão, cidades de refúgio etc.) encontram seu cumprimento em Cristo e não têm mais aplicação. A ideia de que os cristãos não devem obedecer às leis civis e cerimoniais do Antigo Testamento está em todo o Novo Testamento. Por exemplo, em Marcos 7, lemos:
Convocando ele, de novo, a multidão, disse-lhes: Ouvi-me, todos, e entendei. Nada há fora do homem que, entrando nele, o possa contaminar; mas o que sai do homem é o que o contamina… Quando entrou em casa, deixando a multidão, seus discípulos o interrogaram acerca da parábola. Então, lhes disse: Assim vós também não entendeis? Não compreendeis que tudo o que de fora entra no homem não o pode contaminar, porque não lhe entra no coração, mas no ventre, e sai para lugar escuso? E, assim, ele considerou puros todos os alimentos. E dizia: O que sai do homem, isso é o que o contamina. Porque de dentro, do coração dos homens, é que procedem os maus desígnios, a prostituição, os furtos, os homicídios, os adultérios, a avareza, as malícias, o dolo, a lascívia, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura. Ora, todos esses males vêm de dentro e contaminam o homem. (Mc 7.14-23)
De modo semelhante, no livro de Atos, lemos:
Então, reuniram-se os apóstolos e os presbíteros para examinar a questão. Havendo grande debate, Pedro tomou a palavra e lhes disse: Irmãos, vós sabeis que, desde há muito, Deus me escolheu dentre vós para que, por meu intermédio, ouvissem os gentios a palavra do evangelho e cressem. Ora, Deus, que conhece os corações, lhes deu testemunho, concedendo o Espírito Santo a eles, como também a nós nos concedera. E não estabeleceu distinção alguma entre nós e eles, purificando-lhes pela fé o coração. Agora, pois, por que tentais a Deus, pondo sobre a cerviz dos discípulos um jugo que nem nossos pais puderam suportar, nem nós? Mas cremos que fomos salvos pela graça do Senhor Jesus, como também aqueles o foram. (At 15.6-11)[i]
Não somente as leis civis e cerimoniais, mas também as exigências morais atemporais de Deus têm seu cumprimento em Cristo. Mas esses mandamentos morais continuam a achar sua expressão nas vidas capacitadas pelo Espírito do corpo de Cristo, a igreja (Rm 3.31).
Alguns especulam sobre a razão de alguns dos mandamentos mais incomuns no Antigo Testamento. Por que tocar no cadáver de alguém tornava uma pessoa impura por sete dias (Nm 19.11-13)? Por que comer bagre foi proibido (Lv 11.9-11)? Às vezes, razões pseudocientíficas são apresentadas, como as que encontramos nos livros que incentivam as pessoas a comerem como os israelitas antigos.[ii] Em outras obras, pastores e comentaristas falam amplamente de significados simbólicos em vários mandamentos. Reconhecemos que há instruções divinas carregadas de simbologia; o fermento, por exemplo, parece ter conotação negativa na Bíblia (Êx 12.8-20; 23.18; Lv 10.12; Lc 12.1; 1Co 5.6-8; Gl 5.9).[iii] Indo muito além das evidentes indicações bíblicas, os supostos significados simbólicos para as regulações do Antigo Testamento se tornam logo muito fantasiosos. Independentemente da razão para os vários mandamentos (alguns deles são, francamente, difíceis), é claro que uma das principais funções era manter o povo de Deus como um grupo distinto, não contaminado e separado das culturas pagãs ao redor deles (Êx 19.6; Ed 9.1; 10.11). Além disso, alguns dos mandamentos bíblicos sugerem que as nações vizinhas se envolviam, aparentemente com conotação religiosa (Lv 19.26-28), nas próprias práticas que Deus proibira. Deus preservou os judeus como seu povo eleito, por meio do qual ele revelaria seu plano salvador e traria, por fim, o Salvador na plenitude do tempo (Gl 4.4).
Muitas das supostas incoerências da moralidade cristã (por exemplo, a acusação de que os cristãos usam a Bíblia para escolher a moralidade que querem) são explicadas ao entendermos a natureza provisional e preparatória das leis civis e cerimoniais do período da antiga aliança. A analogia não é exata, mas imagine quão tolo seria alguém levantar a seguinte acusação:
Milhões de pessoas em cada estado da União estão ignorando a Constituição! Vocês não obedecem realmente à Constituição, que afirma claramente na Emenda XVIII:
A fabricação, venda ou transporte de líquidos intoxicantes, a importação para ou a exportação a partir dos Estados Unidos e de todos os territórios sujeitos à sua jurisdição, para os propósitos de bebida, é proibida por esta emenda.[iv]
Responderíamos a isso:
“Sim, a emenda já foi lei em vigor no país, mas foi abolida pela Emenda XXI, que diz: ‘O artigo 18 da emenda à Constituição dos Estados Unidos é revogado por esta emenda’”.[v]
A Bíblia não é um livro de normas, em que cada página apresenta instruções igualmente atemporais. Sim, “Toda palavra de Deus é pura” (Pv 30.5). No entanto, a Bíblia parece mais uma narrativa em vários volumes, em que os capítulos posteriores esclarecem o significado final e, às vezes, a natureza temporária e complacente de regras e acontecimentos anteriores (veja Mt 19.8). Os mandamentos do Antigo Testamento que são repetidos no Novo Testamento (por exemplo, mandamentos morais, como a proibição da homossexualidade [Lv 18.22; 1Co 6.9]) ou que não são explicitamente revogados (como as leis civis e cerimoniais o são [Mc 7.19; Hb 10.1-10]) têm importância permanente na vida do povo de Deus, guiado pelo Espírito.
O artigo acima é um trecho adaptado com permissão do livro Hermenêutica fiel: Introdução à interpretação bíblica, de Robert L. Plummer, Editora Fiel (em breve).
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[i] Como uma acomodação missionária (para não ofender os judeus), os primeiros cristãos se abstiveram de algumas comidas permitidas (At 15.20; 1Co 8–10)
[ii] P. ex., Jordan Rubin, The Maker’s Diet: The 40 Day Health Experience That Will Change Your Life Forever (Lake Mary: Siloam, 2004)
[iii] Fermento pode referir-se a orgulho, hipocrisia, falsa doutrina etc. Mas note como ele simboliza uma influência crescente em Lc 13.21
[iv] A Emenda XVIII foi aprovada em 16 de janeiro de 1919
[v] A Emenda XXI foi aprovada em 5 de dezembro de 1933