segunda-feira, 23 de dezembro
Home / Artigos / Como identificamos o gênero literário do texto bíblico

Como identificamos o gênero literário do texto bíblico

E por que isso é importante?

Ao pegar um novo texto, o leitor identificará rapidamente o gênero. Ou seja, o leitor decidirá (consciente ou inconscientemente, correta ou incorretamente) se o texto deve ser entendido como ficção ou não ficção, científico ou poético etc. A determinação exata do gênero de uma obra é essencial à sua interpretação correta.

Definindo “gênero”

De acordo com o dicionário Merriam-Webster, gênero é “uma categoria de composição artística, musical ou literária caracterizada por um estilo, uma forma e um conteúdo específico”.[1] Neste livro, é claro, estamos interessados primariamente nos gêneros literários e, mais especificamente, nos gêneros literários da Bíblia.

Ao escolher expressar suas ideias por meio de um gênero literário específico, o autor se submete a várias convenções associadas a ele. Por exemplo, se eu começasse uma história dizendo: “Era uma vez”, indicaria a meus leitores que eu narraria um conto de fadas. Essa história provavelmente teria criaturas fantásticas (por exemplo, dragões, unicórnios), um desafio a ser vencido e um final feliz. Os leitores esperariam que a história fosse destinada a crianças, principalmente com o propósito de entretenimento, mas talvez, igualmente, de instrução moral.

Muitas vezes, todos os dias, tomamos decisões sobre como entender uma composição literária com base em nossa avaliação consciente do gênero correspondente. Por exemplo, se recebo uma correspondência que diz: “Sr. Plumer (observe a grafia errada), o senhor pode ter ganhado dez milhões de dólares!”, compreendo que estou segurando algum tipo de anúncio que não tem interesse em me dar dez milhões de dólares, e sim, em vez disso, que eu compre algo. De modo semelhante, se recebo uma carta oficial da Companhia de Água de Louisville, com a seguinte expressão estampada em letras vermelhas: “Notificação de Prazo de Pagamento”, entendo que tenho em mãos uma informação importante relacionada a um débito evidente. E, quando dirijo para casa, compreendo que uma placa que diz “Velocidade Máxima 60 km” não é apenas para decorar ou oferecer uma sugestão, e sim um fato, uma notificação legalmente obrigatória.

Identificando o gênero dos escritos bíblicos

Na vida cotidiana, familiarizamo-nos com os gêneros que vamos encontrando. Inicialmente, a carta de anúncio descrita já pode ter-nos empolgado no passado com a possibilidade de ganhar dez milhões de dólares, mas, depois de vários anos de inscrições fracassadas, chegamos a reconhecer o verdadeiro gênero dessa espécie de material. De modo semelhante, crianças novas podem ter dificuldade para fazer distinção entre o noticiário da noite, um filme de ficção científica e um documentário. Mas um adulto instruído deve ser não somente capaz de reconhecer um filme e um documentário, como também de identificar algumas das tendências e objetivos dos produtores.

Certos livros na Bíblia são escritos em gêneros que nos são familiares, enquanto outros são estranhos ao leitor moderno. E mesmo os gêneros familiares incluem, às vezes, pressuposições que o leitor moderno talvez não espere. Uma maneira de identificar o gênero de um livro da Bíblia é lê-lo e notar os detalhes literários significativos e os comentários dos autores que sugerem ao leitor como o livro deve ser entendido. Por exemplo, o gênero mais comum na Bíblia é a narrativa histórica, que constitui mais da metade de seu conteúdo. O gênero bíblico de narrativa histórica é semelhante ao relato de história real que lemos hoje em um jornal ou em livros de história. Mas existem algumas diferenças: (1) as narrativas históricas da Bíblia são frequentemente entremeadas com subgêneros familiares, como genealogias (Mt 1.1-17), cânticos (Êx 15.1-18), provérbios (Mt 26.52), profecias (Mc 13.3-37) ou alianças (Js 24.1-28). (2) As narrativas históricas da Bíblia não se preocupam geralmente com os mesmos detalhes que os leitores modernos desejariam que fossem abordados (por exemplo, identificação cronológica estrita ou detalhes biográficos sequenciais de toda a vida de uma pessoa etc.). (3) As narrativas históricas da Bíblia, embora exatas, nunca reivindicam objetividade. Os autores bíblicos têm um propósito ao escrever: convencer os leitores da mensagem reveladora de Deus e da necessidade de responderem a Deus com arrependimento, fé e obediência (por exemplo, Jo 20.30-31). Quanto a mais orientações sobre a interpretação de narrativas históricas, veja a Questão 22 (“Como interpretamos as narrativas históricas?”).

Uma maneira de identificar e aprender sobre os gêneros dos livros da Bíblia é consultar uma Bíblia de estudo, um comentário ou outra obra de referência teológica (veja a Questão 13, “Quais são alguns livros ou materiais proveitosos para se interpretar a Bíblia?”). A segunda metade deste livro também proverá ajuda útil, visto que contém uma breve introdução a vários gêneros bíblicos, bem como as suposições e cautelas específicas que devemos ter em mente quando os abordamos.

A Figura 12 oferece uma lista de gêneros literários que se encontram frequentemente na Bíblia, bem como exemplos de livros ou passagens classificadas em cada gênero.

Figura 12:

Gênero literário na Bíblia

Narrativa histórica                                             Gênesis, Marcos
Genealogia 1 Crônicas 1–9; Mateus 1.1-17
Exagero/hipérboleMateus 5.29-30; 23.24
ProfeciaIsaías, Malaquias
PoesiaJoel, Amós (também profecia)
Aliança                                                                           Gênesis 17.1-4; Josué 24.1-28
Provérbios/literatura de sabedoriaProvérbios, Jó
Salmos e cânticos                                 Êxodo 15.1-18; Salmos
Cartas1 Coríntios, 2 Pedro
RevelaçãoDaniel, Apocalipse

Deslizes interpretativos

Vários deslizes interpretativos se avultam no campo minado dos gêneros. Três importantes que devemos notar são os seguintes.

  1. Entender incorretamente o gênero de uma obra pode resultar em interpretação distorcida. Juízes 11.39 relata que Jefté cumpriu o voto que fizera ao Senhor, ao sacrificar sua filha. O gênero de narrativa histórica, ao qual pertence o livro de Juízes, não nos diz por si mesmo se as ações relatadas são boas ou más. Indicações adicionais do autor são necessárias para que o leitor saiba como o escritor inspirado avaliou o acontecimento ou a pessoa relatada. Como é evidente na espiral decrescente de pecado em Juízes (3.7–16.31), bem como nas afirmações resumidoras do autor (17.6; 18.1; 19.1; 21.25), a ação de Jefté não deve ser elogiada nem imitada.[2] A suposição de que os comportamentos de personagens importantes em narrativas históricas devem sempre ser copiados poderia resultar em aplicação horrível nesse caso.
  1. Classificar erroneamente um gênero bíblico pode ser uma maneira desonesta de negar a veracidade do texto. É comum vermos eruditos religiosos proeminentes nos meios de comunicação afirmando que grandes porções da Bíblia devem ser entendidas como mito, e não como narrativa histórica.[3] Ou seja, os textos não devem ser entendidos como relatando informações históricas factuais, e sim como textos que pintam quadros mitológicos para nos inspirar e nos desafiar. Mas afirmações desse tipo negam indicações claras do autor em sentido contrário (veja Lc 1.1-4), bem como evidências de fora da Bíblia que confirmam a historicidade de seus conteúdos.[4] Em referência àqueles que rotulavam os evangelhos como mito em seus dias, C. S. Lewis, autor renomado e crítico literário, comentou:

Não importa o que esses homens sejam como críticos da Bíblia, não confio neles como críticos. Parece-me que não têm julgamento literário nem percepção quanto à própria qualidade dos textos que estão lendo. Parece uma acusação estranha que trazem contra homens que investiram nesses livros toda a sua vida. Mas esse pode ser exatamente o problema. Um homem que gastou sua juventude e maturidade no estudo minucioso dos textos do Novo Testamento e dos estudos de outras pessoas sobre esses textos, cuja experiência literária desses textos não segue um padrão de comparação que se desenvolva de uma experiência ampla, profunda e agradável da literatura em geral, muito provavelmente, devo pensar, ignorará as coisas óbvias desses textos. Se ele me diz que algo num evangelho é lenda ou romance, quero saber quantas lendas ou romances ele já leu, como seu gosto é treinado em detectá-los pelo sabor, e não quantos anos ele já gastou nesse evangelho.[5]

De modo semelhante, é comum encontrarmos eruditos que afirmam que Jonas é uma histórica fictícia. De fato, um idoso colega meu (agora aposentado) confidenciou-me, certa vez, que dissera à sua classe que pensava que Jonas era ficcional. “Depois”, o professor me falou, “um aluno veio até mim e disse: ‘Dr. _______, você não deveria ter dito aquilo publicamente. Gostamos de você e queremos que continue ensinando aqui’”.[6]

A intuição do aluno estava correta, porque não somente o livro de Jonas relata pessoas e lugares sem qualquer artifício ficcional, como também Jesus se refere a Jonas como uma pessoa histórica que esteve, literal e historicamente, na barriga de um grande peixe (Mt 12.40-41).

3. Princípios para a interpretação de gêneros podem ser mal-usados para eximir alguém das exigências da Escritura. Kierkegaard comentou ironicamente: “A erudição cristã é a prodigiosa invenção da raça humana para se defender do Novo Testamento, para garantir que alguém continue a ser cristão sem permitir que o Novo Testamento lhe seja muito íntimo”.[7] Essa verdade apresentada com ironia pode ser especialmente verdadeira na aplicação acadêmica de vários princípios de interpretação relacionados ao gênero. Por exemplo, ao considerar Mateus 5.42 (“Dá a quem te pede e não voltes as costas ao que deseja que lhe emprestes”), o intérprete pode notar corretamente que o ensino de Jesus aqui é classificado como exagero. Pode continuar e, depois, notar acertadamente que ninguém está obrigado a dar uma arma a uma pessoa suicida. Ao entendermos as qualificações implícitas do exagero, erramos quando não ouvimos a chamada radical em Mateus 5.42 para nos desprendermos dos bens mundanos. Alguém pode atenuar e racionalizar o texto até que a consciência fique insensível e se envolva em desobediência. Como Pascal comentou: “Os homens nunca fazem mal tão completa e alegremente como quando o fazem motivados por convicção religiosa”.[8] Intérpretes modernos precisam temer o julgamento de Deus quando procuram racionalizar o texto como os oponentes de Jesus fizeram (Mc 7.13).


O artigo acima é um trecho adaptado com permissão do livro Hermenêutica fiel: Introdução à interpretação bíblica, de Robert L. Plummer, Editora Fiel (em breve).

CLIQUE AQUI para acessar os demais artigos que são trechos deste livro.


[1] Versão online (acessada em 03/10/2024).

[2] Note os seis principais ciclos conectados com Juízes: Otniel, Eúde, Débora, Gideão, Jefté e Sansão. Uma nota na The New Oxford Annotated Bible observa: “No relato sobre cada importante juiz, o ciclo se desenrola. Por sua vez, esse desenrolar acentua a comunicação da deterioração que estava acontecendo no período dos juízes. De fato, no tempo de Sansão, o ciclo está quase acabado. O ciclo de Sansão serve como clímax literário e como o ponto moral mais baixo da seção de ciclos” (The New Oxford Annotated Bible, ed. Michael D. Coogan, 3a ed. [Nova York: Oxford University Press, 2001], p. 354).

[3] P. ex., John Dominic Crossan, The Historical Jesus: The Life of a Mediterranean Jewish Peasant (São Francisco: Harper-San Francisco, 1991); John Shelby Spong, Resurrection: Myth or Reality? A Bishop’s Search for the Origins of Christianity (Nova York: HarperCollins, 1994).

[4] Veja Walter Kaiser, Documentos do Antigo Testamento: Sua Relevância e Confiabilidade (São Paulo: Cultura Cristã, 2007); F. F. Bruce, Merece Confiança o Novo Testamento?, 3a ed. rev. (São Paulo: Vida Nova, 2010); Peter J. Williams, Podemos Confiar nos Evangelhos? (São Paulo: Vida Nova, 2022).

[5] C. S. Lewis, “Fern-Seed and Elephants”, em Fern-Seed and Elephants and Other Essays on Christianity, ed. Walter Hooper (Londres: Fontana/Collins, 1975), p. 106-07).

[6] A escola passou por uma mudança recentemente, e a maioria dos alunos se tornou mais conservadora do que os docentes mais antigos.

[7] Søren Kierkegaard, Søren Kierkegaard’s Journals and Papers, ed. e trad. Howard V. Hong e Edna H. Hong (Bloomington: Indiana University Press, 1975), 3:270.

[8] Pascal, Pensées, fragmento 895 em Great Books of the Western World: Pascal, ed. Mortimer J. Adler, 2a ed. (Chicago: Encyclopedia Britannica, 1990), 30:347. No volume, Pensées foi traduzido por W. F. Trotter.


Autor: Rob Plummer

Robert L. Plummer (PhD) é erudito na área de Novo Testamento e serve como professor de Interpretação do Novo Testamento no Southern Baptist Theological Seminary em Louisville, KY, EUA.

Ministério: Editora Fiel

Editora Fiel
A Editora Fiel tem como missão publicar livros comprometidos com a sã doutrina bíblica, visando a edificação da igreja de fala portuguesa ao redor do mundo. Atualmente, o catálogo da Fiel possui títulos de autores clássicos da literatura reformada, como João Calvino, Charles Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, bem como escritores contemporâneos, como John MacArthur, R.C. Sproul e John Piper.

Veja Também

Jesus Cristo, o Rei conquistador

Na sua pregação, ele ensinou aos seus discípulos como entrar no Reino e o tipo de estilo de vida a que isso levaria.