quinta-feira, 30 de janeiro
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A doutrina da transubstanciação está na Bíblia?

Uma resposta bíblica aos fundamentos romanistas da transubistanciação

“Para que em todas as coisas cheguemos ao conhecimento da verdade, a fim de não errarmos em coisa alguma, devemos ter sempre como regra fixa e invariável que aquilo que nossos olhos virem branco é realmente negro, se assim o entende e define a igreja romana”. – Inácio de Loyola – Exercícios espirituais, traduzidos do latim e prefaciados por Wiseman, Pág. 180. Londres, 1847

No presente capítulo propomo-nos tratar da doutrina da transubstanciação, a qual, segundo a igreja romana ensina, consiste em serem convertidas no corpo e sangue de Jesus Cristo as substâncias do pão e do vinho, em virtude das palavras da consagração pronunciadas pelo sacerdote.[i]

Supõe-se que desaparecem os elementos preexistentes, ficando apenas os acidentes, como lhes chamam os romanistas, a saber – a dimensão, a figura, o cheiro, a cor e o sabor do pão e do vinho. Deixam de existir o pão e o vinho, e em seu lugar fica, sob a aparência das duas espécies, um Cristo inteiro, com verdadeiro corpo, sangue, ossos, nervos, alma e divindade,[ii] o mesmo corpo que foi crucificado, sepultado e que ressuscitou e subiu aos céus.

Em um catecismo romano, aprovado pela autoridade eclesiástica, achamos esta mesma doutrina contida nas seguintes perguntas e respostas:

P. O corpo e o sangue de Cristo estão sob as aparências do pão e do vinho?

R. Sim: ali está Cristo inteiro, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.

P. Credes que o Deus de toda a glória está sob as espécies de nosso alimento corporal?

R. Sim: da mesma maneira que cremos que o Deus de toda a glória sofreu a morte na cruz sob a aparência de um criminoso.

P. A missa é um sacrifício diferente do da cruz?

R. Não: o mesmo Cristo, que uma vez se ofereceu sobre a cruz, vítima cruenta, a seu Pai celestial, continua a ser oferecido em nossos altares, pelas mãos dos sacerdotes, de uma maneira incruenta.

Além disto, quando foi negado o vinho ao povo, declarou-se que no pão só, sem o vinho, está o corpo, sangue, alma e divindade de Cristo: ainda mais quando, depois de partida uma partícula, em diversos fragmentos, em cada um deles existe Cristo inteiro.[iii] Por absurda que pareça a proposição, não pode haver coisa mais clara e literal do que a linguagem da igreja romana; nesta doutrina nada há de típico, simbólico ou espiritual; tudo é literal e carnívoro: a ideia é repelente, porém é sugerida pelo sistema. Se esta doutrina é verdadeira, o ato de manducatione foi propriamente definido em um decreto do Papa Nicolau II, num Concílio celebrado em Roma, em 1059, como consta das decretais ou do livro da Lei Canônica da igreja romana. Quando Berengário[iv] foi obrigado a retratar-se de sua suposta heresia, pois que negava a transubstanciação, obrigaram-no também a admitir que no sacramento não somente estão sensivelmente presentes o corpo e o sangue de Cristo, mas também esse corpo e esse sangue são manuseados pelo sacerdote e partidos e triturados pelos dentes dos fiéis.[v] Este Concílio, como acabamos de dizer, foi celebrado em Roma, no pontificado de Nicolau II, em 1059; e, ainda que os romanos possam valer-se do pretexto de que a declaração que então se fez era anterior ao Concílio de Trento, e, consequentemente, antiga, devemos, todavia, observar que a mesma proposição foi renovada pelo Cardeal Belarmino, que viveu alguns anos depois da assembleia de Trento. Eis como ele confirmou aquilo que exigiram de Berengário:

Dizemos que o corpo de Cristo, colocado na patena ou sobre o altar, verdadeira e propriamente é posto, tirado, levado das mãos à boca, e desta ao estômago; e isso mesmo foi Berengário obrigado a reconhecer no Concílio celebrado em Roma, no pontificado do Papa Nicolau – que o corpo de Cristo era sensivelmente tocado e partido pelas mãos do sacerdote.[vi]

Em que se fundamenta esta doutrina romana? Nas Escrituras, certamente que não. Verdade é que Cristo, havendo dado graças, tomou o pão, partindo-o, deu-o a seus discípulos, dizendo: “Este é o meu corpo”. O que quis, porém, ele significar por meio destas palavras?[vii] Os polemistas romanos, hoje em dia, que na interpretação literal e autoridade deste texto fundamentam a crença na doutrina da transubstanciação, dizem que essa interpretação tem sido sempre a de toda a igreja. Nada valem, contudo, meras afirmações numa controvérsia. Esta proposição é moderna. Não se pode fundamentar doutrina alguma sobre um texto cuja interpretação literal seja disputada, e não se pode citar um só dos antigos padres que, apoiando-se na interpretação literal destas palavras, haja ensinado a doutrina da “conversão dos elementos”.

No que diz respeito à conversão da substância dos elementos, que é o ponto em questão, o Cardeal Caetano, que escreveu uns doze anos antes do Concílio de Trento, afirma que tal doutrina não se encontra nos Evangelhos, mas, sim, que foi expressamente definida pela igreja.[viii] Eis aqui suas próprias palavras:

Não consta do Evangelho nada que nos obrigue a entender as palavras de Cristo em seu sentido literal: ainda mais – não há nada no texto que nos iniba de tomar estas palavras: este é meu corpo, em sentido metafísico, como também estas palavras do apóstolo: a rocha era Cristo. As palavras de qualquer das duas proposições exprimem a verdade, mas é necessário não dar às coisas mencionadas o sentido literal, mas metafísico.

E acrescenta:

Aquela parte que o Evangelho expressamente não declara – a conversão do pão no corpo e sangue de Cristo – é-nos apresentada pela Igreja.

O Jesuíta Suarez diz que o Cardeal Caetano ensinou que as palavras – Este é meu corpo, não provam suficientemente por si mesmas a transubstanciação, sem a autoridade da Igreja; e que, por isso mesmo, por ordem de Pio V, aquela parte de seu comentário foi excluída da edição romana de suas obras.[ix]

Fisher, bispo romano e grande adversário da Reforma, declarou expressamente que, “no Evangelho de São Mateus não há texto algum com que se possa provar que na missa se verifica a mesma presença do corpo e sangue de Cristo”. Diz ainda mais “que uma tal doutrina não se pode provar pela Escritura”[x]; e foi por isto que o Cardeal Belarmino foi forçado a dizer o seguinte:

Não é de todo improvável que não haja na Escritura passagem clara e expressa que prove a transubstanciação sem a declaração da Igreja, como disse Scoto, pois que, posto que as Escrituras nos pareçam tão claras que todos têm a obrigação de obedecer ao que elas dizem, a não ser um ou outro homem que se obstine em não lhes dar crédito, com justiça se pode duvidar de que o texto em questão seja suficientemente explicito, não obstante a opinião em contrário dos homens mais inteligentes e doutos.[xi]

Outro célebre bispo católico romano, Pedro Ailly, mais geralmente conhecido pelo nome de Cardeal de Alliaco, doutor em teologia em 1380, chanceler da Universidade de Paris em 1389, bispo de Cambraia em 1396 e Cardeal em 1411, escreveu:

É possível admitir-se que não é mudada a substância do pão; tampouco é isso contrário à razão e à autoridade da Escritura; ainda mais – é mais fácil e razoável pensá-lo assim, uma vez que “concorde com a determinação da Igreja”.[xii]

Podemos, de passagem, observar que o Cardeal Caetano estabelece um paralelo entre o texto (1Co 10.4) “a rocha era Cristo”, e o texto em questão, como fez Agostinho em sua obra a “Cidade de Deus”. Agostinho disse: “Todo o símbolo parece, ‘de certa maneira’, sustentar a personalidade das coisas que significa; assim o apóstolo diz: ‘a rocha era Cristo’, porque a rocha de que se fala significava Cristo”.[xiii] A mesma ideia apresenta o mesmo santo padre em seu comentário sobre o Evangelho de João (Tract. XIV.): “Vejamos agora como são diversos os sinais, permanecendo a mesma fé. Aqui (isto é, no deserto) a ‘rocha’ era Cristo; para nós o que está no altar de Deus é Cristo”.[xiv] “Cristo não oscilou em dizer: Este é meu corpo; dando um sinal de seu corpo”.[xv] Estas palavras são demasiado claras para que necessitem de nossos comentários.

Deve, portanto, observar-se que a doutrina da transubstanciação assenta unicamente na decisão ou autoridade da igreja romana. A palavra transubstanciação,[xvi] é bom também saber-se, apareceu pela primeira vez no Concílio de Latrão, no pontificado de Inocêncio III, em novembro de 1215, na primeira parte dos setenta capítulos que se supõe haverem sido redigidos pelo próprio Inocêncio, e que se referiam à extirpação das heresias. Alguns negam que essas constituições sejam obra do Concílio, e atribuem-nas única e exclusivamente ao Papa Inocêncio. Se assim for, com grande dificuldade poderá admitir-se que a doutrina tivesse, sequer, recebido a aprovação do Concílio. Hoje em dia entre os próprios romanistas há não poucos que afirmam que esses cânones, especialmente o ‘terceiro’ (o qual excomunga os hereges e ordena que sejam entregues ao poder secular para serem castigados) tivessem a sanção desse mesmo Concílio.[xvii] Um eminente escolástico, o erudito João Duns Scoto,[xviii] como o chama Belarmino, diz “que antes do Concílio de Latrão a transubstanciação não era crida como ponto de fé”;[xix] e clara e manifestamente confessa “que a transubstanciação, propriamente falando, não era uma mudança”.[xx] Justificaram, porventura, a afirmação de Scoto, que terminantemente declarou que, antes daquela data, a doutrina da transubstanciação não foi ensinada pela Igreja? Vejamos outro famoso teólogo, chamado o “mestre das sentenças”, Pedro Lombardo, arcebispo de Paris (1150). Se a transubstanciação é verdadeira, o chamado sacrifício feito sobre o altar romano e o sacrifício sobre a cruz são uma e a mesma coisa, e o primeiro não é uma comemoração do segundo. O arcebispo pergunta: “Pode aquilo que o sacerdote faz ser chamado um sacrifício ou imolação, e é Cristo imolado diariamente, ou foi imolado uma só vez?”

Este artigo é um trecho adaptado com permissão do livro Inovações da Igreja Católica Romana, de Carlos H. Collette. Uma publicação da Editora Fiel em parceria com a João Calvino Publicações (em breve).

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[i] Atque in sanctissimo Eucharistiae Sacramento esse vere, realiter et substantialiter corpus et sanguinem, una cum anima et divinitate Domini Nostri Jesu Christi, fierique conversionem totius substantiae panis in corpus et totius substanciae vini in sanguinem. (Credo do Papa Pio. Ordo Administrandi Sa cram. Concílio de Trento, ses. 13. Can. 1. Decreto sobre este sacramento).

[ii] Continetur totum corpus Christi scilicet ossa nervi, et alia. (Santo Tomás, Summa. Tom. lll. 2. 76. cap. I.)

Jam vero hoc loco a pastoribus explicandum est, nom solum verum Christi corpus, et quid-quid ad veram corporis rationem pertinet, velut ossa et nervos sed etiam totum Christum in hoc sacramento contineri. (Catech. Concil. Trid. part. II. seção XXXI de Euchar. Sac. Paris 1848.)

[iii] Si quis negaverit, in venerabili sacramento eucharistiae sub una quaque specie, et sub singulis conjusquespeciei partibus separatione facta, totum Christum contineri, anathema sit. (Cop. Trid. de Sacra. Euchar. ses. XIII, can. III. pág. 118. Paris, 1848).

[iv] Berengário foi arcediago da igreja de Angers, em França, e professor da cadeira de teologia.

[v][v] Corpus et sanguinem Domini sensualiter non solum sacramento, sed recitate manibus sacerdotum tractari, frangi et fidelium dentibus atteri. (Gratian Corp. Jur. Can., tom. I, pág. 2104, par. III. Dist. 2, cap. 42. Paris, 1612. Veja-se Baronii, Annales ad ann. 1059. seção 18).

[vi] Itaque vere et proprie dicimus, Christi Corpus in Eucharistia attoli, deponi, deferri, collocari in altari vel in pixide, transferri a manus ad os, et ab ore ad stomachum, idque in Concílio romano sub Nicolau II, compulsus est Berengarius confiteri: corpus sensualiter sacerdotum manibus tangi et frangi. (Bellar. De Eucharistia, lib. II. cap. II, ratio 5 et seq., tom. II. Praga, 1721).

[vii] Se se há de levar a tal extremo a interpretação literal, deve o católico romano engolir também o cálice, porquanto Paulo diz em 1 Coríntios 11.26: “Todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice”.

[viii] … Dico autem ab ecclesia, cum non appareat ex evangelio coactionum aliquid ad intelligendum expunctus est, docuit, secius ecclesiae autoritate verba illa — (Hoc est corpus meum), ad veritatem hanc confirmandam non sufficere. Suarez, tom. 3, disp. 46, sec, 3, pág. 515, edit. Margunt.,1616).haec verba proprie: quod Evangelium non explicavit expresse, ab acclesia accepimus, vid conversionem panis in corpus Christi. (Cayetano in III. pág. 75, ar. I., pág. 130, Col. I. Venet., 1617. Index Expurg. Quiroga, pág. 98 Madrid, 1667.)

[ix] Ex catholicis solus Cayetanus in comentario hujus articuli, qui jussu Pii V, in romana editione

[x] Hactenus Matheus, qui et solus Testamenti Novi meminit, neque ullum hic verbum positum est quo probetur in nostra missa veram fieri carnis et sanguinis Christi praesentiam. — Non potest igitur per ullam Scripturam probari. (J. Fisher Contra Cap. Babyl. cap. 10, num. 8, et Opp. folio LXXX, Colon, 1525).

[xi] Secundum dicit Scotus, non extare locum ullum Scripturae tam expressum, ut sine ecclesiae determinatione evidenter cogat transubstantionem admittere, atque id non est omnino improbabile (Bell. De Euch. lib. III, cap. 23, tom. III, seção 2. pág. 337. Praga, 1721.

[xii] Patet quod ille modus sit possibilis nec repugnet rationi, nec auctoritati Bibliae, imo facilior ad intelligendum et rationabilior, quam, etc. In 4 sentent, pág. 6. art. I, fol. 216. Edit. paris (Sem data).

[xiii] Quodammodo omnia significantia videntur earum rerum quas significant sustinere personas, sicut dictum est ab apostolo, Petra erat Christus quoniam petra illa de qua hoc dictum est significabat utique Christum. (De Civit. Dei, lib. XVIII, cap. 48. Edit. Paris, 1685, tom. 5, col. 1120. Edit. Basil, 1569).

[xiv] Quid enim illi bibebant? Bibebant enim de spirituali sequente petra; petra autem erat Christus. Videte ergo, fide manente, signa variata. Ibi Petra Christus, nobis quod in altari Dei ponitur. (Edit. Basil. 1569, tom. IX. col. 333).

[xv] Non enim Dominus dubitavit dicere: “Hoc este corpus meum, cum signum daret corporis sui”. (Cont. Adimantum, cap. XII, pág. 124, tom. VIII. Paris, 1688).

[xvi] A doutrina havia já sido anunciada em vários concílios celebrados em Versalhes e Paris em 1050; e bem assim nos concílios de Tours em 1054, Roma em 1058 e 1079, em alguns dos quais foi condenado Berengário por negar a mudança das substâncias.

[xvii] Aqueles que negam que os cânones do 4.º Concílio de Latrão, especialmente o terceiro, jamais fossem aprovados pelo Concílio, citam Collier, como testemunho de não achar-se o fato consignado no exemplo de Mazarino, contemporâneo do Concílio. Ora, enquanto Collier assevera erroneamente que o terceiro cânon não se encontra com os outros, assina um em lugar destes no exemplar de Mazarino! O fato é que o terceiro cânon se encontra realmente no exemplar de Mazarino, tendo sido violentamente subtraída uma parte dele. Se alguém adquirisse os manuscritos da História de Espanha, de Mariana, e rasgasse uma parte deles, por exemplo, de Carlos I ou Filipe II, podia alegar com igual razão que a história destes monarcas não se encontra na obra de Mariana.

[xviii] Duns Scoto foi professor de teologia em Oxford em 1301, e pouco depois, em 1304, foi

para Paris, onde tomou a direção das escolas teológicas.

[xix] Unus addit Scotus, quod minime probandum, quod ante lateranense concilium non fuis-set dogma fidei. (Bell. lib. III. de Euchar. cap. XXIII, seção 12. pág. 337. tom. III. Praga, 1721. Scotus, fol. 55, pag. 2, col. 2. Venetia, 1597).

[xx] Dico proprie loquendo, quod transubstantiatio non est mutatio. (In 4. Sent. Art. XI. Seção I, ad propositum Venetia 1597).


Autor: Carlos H. Collette

Ministério: Editora Fiel

Editora Fiel
A Editora Fiel tem como missão publicar livros comprometidos com a sã doutrina bíblica, visando a edificação da igreja de fala portuguesa ao redor do mundo. Atualmente, o catálogo da Fiel possui títulos de autores clássicos da literatura reformada, como João Calvino, Charles Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, bem como escritores contemporâneos, como John MacArthur, R.C. Sproul e John Piper.

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