Qual é a origem dos padrões éticos da Bíblia? Por que devemos acreditar que são válidos?
Esses padrões éticos valem para todas as pessoas em todas as sociedades e em todas as épocas?
No primeiro capítulo, eu escrevi que, neste livro, estudaríamos a ética tendo em mente a pergunta: “o que a Bíblia inteira ensina em relação a diversas questões éticas?”. Mas isso suscita outra pergunta: “qual é a origem dos padrões éticos da Bíblia?”
O fundamento dos padrões éticos da Bíblia é o caráter moral de Deus
O caráter de Deus é bom. Quando a Bíblia fala sobre o caráter moral de Deus, ela descreve Deus como “bom”. Por exemplo:
Tu és bom e fazes o bem; ensina-me os teus decretos. (Sl 119.68)
Eis a Rocha! Suas obras são perfeitas, porque todos os seus caminhos são juízo; Deus é fidelidade, e não há nele injustiça; é justo e reto. (Dt 32.4)
Justos e verdadeiros são os teus caminhos, ó Rei das nações! Quem não temerá e não glorificará o teu nome, ó Senhor? Pois só tu és santo; por isso, todas as nações virão e adorarão diante de ti, porque os teus atos de justiça se fizeram manifestos. (Ap 15.3-4)
Nessas passagens e em muitas outras, a Bíblia enfatiza que o caráter moral de Deus é bom. Ele é um Deus bom, amoroso, justo, misericordioso, fiel, verdadeiro e santo. Além disso, Deus aprova e verdadeiramente se deleita em seu próprio caráter moral. Ele é o Deus “bendito”, isto é, aquele que é supremamente feliz em si mesmo (1Tm 1.11; 6.15).[1] Aliás, quando a Palavra declara que ele é “bom”, isso indica que ele considera o próprio caráter como digno de aprovação.
As criaturas que se conformam ao caráter moral de Deus são aprovadas por ele. Muitas outras passagens na Escritura mostram que as criaturas morais que se conformam ao caráter moral de Deus agradam a ele e têm a aprovação dele. Assim como Deus é amoroso, justo, misericordioso, fiel, verdadeiro, santo e assim por diante, ele deseja que também sejamos amorosos, justos, misericordiosos, fiéis, verdadeiros, santos e assim por diante. Essas qualidades existem no próprio Deus e têm a aprovação dele. Por isso, essas são as qualidades morais que, quando existem nas criaturas, também têm a aprovação dele. Assim como ele se deleita em contemplar a própria excelência moral, ele se deleita em ver sua própria excelência moral sendo refletida nas criaturas que ele fez.[2]
Aqui estão algumas passagens que mostram que Deus se deleita em contemplar seu caráter sendo refletido em nossas vidas:
Segundo é santo aquele que vos chamou, tornai-vos santos também vós mesmos em todo o vosso procedimento. (1Pe 1.15)
Sede misericordiosos, como também é misericordioso vosso Pai. (Lc 6.36)
Nós amamos porque ele nos amou primeiro. (1Jo 4.19)
Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos amados. (Ef 5.1)
Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste. (Mt 5.48)
Não mintais uns aos outros, uma vez que vos despistes do velho homem com os seus feitos e vos revestistes do novo homem que se refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou. (Cl 3.9-10).
A ideia de Paulo é que nosso “novo homem” está se tornando mais parecido com Deus, de maneira que devemos imitar a integridade de Deus:
Amados, agora, somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que haveremos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é. E a si mesmo se purifica todo o que nele tem esta esperança, assim como ele é puro. (1Jo 3.2-3)
Em outras palavras, devemos viver como Jesus viveu, devemos andar como ele andou:
Sede meus imitadores, como também eu sou de Cristo. (1Co 11.1)
E andai em amor, como também Cristo nos amou e se entregou a si mesmo por nós, como oferta e sacrifício a Deus, em aroma suave. (Ef 5.2)
Aquele que diz que permanece nele, esse deve também andar assim como ele andou. (1Jo 2.6)
Porquanto para isto mesmo fostes chamados, pois que também Cristo sofreu em vosso lugar, deixando-vos exemplo para seguirdes os seus passos. (1Pe 2.21)
John Murray, professor de teologia sistemática no Westminster Seminary (Filadélfia, EUA) entre 1930 e 1966, corretamente fez a seguinte observação:
Em última análise, por que devemos nos comportar de uma maneira e não de outra? […] O padrão final do que é certo é o caráter ou natureza de Deus. O fundamento da ética é que Deus é o que ele é e nós devemos nos conformar ao que ele é em santidade, justiça, verdade, bondade e amor… Deus criou o homem à sua imagem e semelhança. Portanto, o homem precisa ser semelhante a Deus.[3]
Deus não poderia ter criado outro padrão moral
Como o padrão moral que Deus nos deu está fundamentado em seu caráter moral, ele não poderia ter criado um padrão moral diferente. Ele não poderia ter ordenado que o certo é odiar as pessoas em vez de amá-las, mentir em vez de dizer a verdade, assassinar em vez de proteger a vida, ser injusto em vez de ser justo e assim por diante.
Contudo, há uma coisa que precisa ser esclarecida. Quando falo sobre o padrão moral de Deus, não me refiro às regras temporárias que Deus deu ao povo de Israel no tempo de Moisés, como as regras sobre alimentos limpos e imundos ou as exigências para diversos tipos de sacrifícios de animais. Refiro-me ao padrão moral que vincula todos os povos, em todas os períodos da história (para ler mais sobre as leis do pacto mosaico, veja o capítulo 8).
O padrão moral de Deus, da maneira como existe na Bíblia, vale para todas as pessoas, em todas as culturas e em todos os períodos da história
Se o padrão moral de Deus procede de seu caráter moral imutável, esse é o padrão moral que servirá de base para julgar todas as pessoas em todos os lugares. Diversas passagens indicam que, um dia, Deus será o Juiz do mundo inteiro:
Não fará justiça o Juiz de toda a terra? (Gn 18.25)
O Senhor vem julgar a terra; julgará o mundo com justiça e os povos, consoante a sua fidelidade. (Sl 96.13)
Quando Paulo discursou para os filósofos pagãos gregos no areópago em Atenas, ele estava falando com um público que não conhecia o padrão moral do Deus de Israel (mesmo sendo possível que alguém tivesse um conhecimento superficial da religião judaica, Paulo não poderia presumir que seus ouvintes de fato tinham esse conhecimento). Até para esse público, Paulo disse que o único Deus verdadeiro, “O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe”, é o Deus que “estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo com justiça, por meio de um varão que destinou e acreditou diante de todos, ressuscitando-o dentre os mortos” (At 17.24, 31). Paulo disse que esses filósofos pagãos seriam julgados por Deus com base no seu padrão moral universal e eterno.
Semelhantemente, em Romanos 1, Paulo ensinou que os gentios (a maioria não tinha qualquer conhecimento sobre o padrão moral de Deus registrado por escrito na Bíblia judaica) serão julgados por Deus, porque eles são “indesculpáveis” quando não honram a Deus como Deus e não lhe rendem graças (vv. 20-21). Paulo diz que esses pecadores gentios conhecem “a sentença de Deus, de que são passíveis de morte os que tais coisas praticam”, mas eles “não somente as fazem, mas também aprovam os que assim procedem” (v. 32). Além disso, eles “conhecem” esse padrão porque “a norma da lei [está] gravada no seu coração” (2.15).
É claro que essas declarações não significam que os incrédulos têm a capacidade de viver à altura do padrão moral de Deus a ponto de merecer a aprovação de Deus na sua vida, “pois todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm. 3.23). O objetivo das declarações que falam sobre a responsabilidade que temos diante das leis morais de Deus é convencer as pessoas a se arrepender de seus pecados e a confiar em Cristo para receber perdão: “Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm. 6.23).
Pedro diz algo parecido ao falar sobre a hostilidade dos incrédulos que estavam ridicularizando e difamando cristãos fiéis:
Por isso, difamando-vos, estranham que não concorrais com eles ao mesmo excesso de devassidão, os quais hão de prestar contas àquele que é competente para julgar vivos e mortos. (1Pe 4.4-5)
A conclusão dessas passagens é que mesmo as pessoas que não creem no Deus da Bíblia ou que não concordam que o padrão moral dele tenha autoridade divina sobre suas vidas serão julgadas pelo Deus de toda a terra. E o padrão moral que servirá de base para julgá-las pode ser encontrado na “lei” de Deus, que é perfeitamente revelada na Escritura e também está perfeitamente revelada nos corações e consciências das pessoas (ainda que elas não consigam enxergar perfeitamente).
Este artigo é um trecho adaptado e retirado com permissão do livro Ética Cristâ, de Wayne Grudem, Editora Fiel (em breve).
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[1] A palavra “bendito” nesses versos traduzem o adjetivo grego makarios, que significa “bendito, feliz” (BDAG, 610-611).
[2] Quando aceitamos a ideia de que o próprio caráter moral de Deus é bom, torna-se mais fácil responder a seguinte questão: “(1) o padrão moral de Deus é justo porque é ordenado por ele, ou (2) o padrão moral de Deus é ordenado por ele porque é justo?”. Quando entendidas corretamente, as duas declarações são verdadeiras. (1) Precisamos ter o cuidado de não imaginar que Deus poderia ordenar aquilo que é contrário ao seu caráter moral. Então, não devemos pensar que Deus poderia arbitrariamente ordenar qualquer coisa que somos capazes de imaginar. Se o caráter moral de Deus é infinitamente bom, ele não pode ordenar nada além daquilo que é justo e bom; e isso significa que tudo o que ele ordena é justo pelo fato de ser ordenado por ele. (2) Devemos ter o cuidado de não imaginar que, fora de Deus, exista algum padrão mais elevado de bondade e de justiça ao qual ele decide se conformar. Se entendermos que o único padrão de bondade e de justiça é o próprio caráter de Deus, também podemos dizer que as coisas que ele ordena, ele as ordena porque são justas (conformam-se ao seu caráter moral).
[3] John Murray, Principles of Conduct: Aspects of Biblical Ethics (Grand Rapids: Eerdmans, 1957), p. 177.