sexta-feira, 3 de maio

Vulnerabilidade – evidências de desespero

Vulnerabilidade é algo que precisamos falar. Nem todos sentem que as responsabilidades do autopertencimento colocam um peso insuportável sobre nós. Talvez você tenha lido a seção anterior e sentido como se estivesse lendo a respeito de uma cultura alienígena.

Reconheço que nem todos usamos esses mecanismos de enfrentamento de maneira consciente para conseguir terminar o dia. Porém, também penso que é correto descrever nossa dependência coletiva da automedicação como uma doença social. O fato de que muitas pessoas conseguem passar os dias sem sucumbirem à pressão poderia ser interpretado como evidência de que nossa sociedade contemporânea está funcionando muito bem para nós. Podemos citar também os diversos avanços tecnológicos e médicos que fazem nossas vidas serem mais fáceis e seguras. Para estudiosos como Steven Pinker, essas vantagens, juntamente com o aumento mensurável da expectativa e qualidade de vida, são sinais objetivos do sucesso do projeto Iluminista. E é verdade que os seres humanos realizaram grandes feitos nos últimos três séculos.

Então, como eu poderia alegar seriamente que os americanos, em 2021, “lutam para encarar o dia”, quando nossas tarefas diárias exigem menos esforço do que nunca? Lavar a roupa, verificar o tempo lá fora, deslocar-se até o trabalho e preparar refeições dá muito menos trabalho e leva muito menos tempo hoje do que no passado. Ainda assim, os americanos estão deprimidos. Pinker, baseada em razões psicológicas e sociológicas, culpa nosso pessimismo, nossa incapacidade de ver quão maravilhosa nossas vidas são. Nós costumamos ser ingratos. Focamos nos negativos. A mídia e os críticos culturais assumem uma postura crítica contra o progresso, e é por isso que eles não conseguem admitir que a vida está ficando melhor — pelo menos, é o que Pinker argumenta. Mas esse argumento não leva em conta a incrível complexidade da vida.

Não é apenas possível, mas é comum que um avanço em uma área da cultura traga efeitos negativos não previstos em outra. Isso não significa que o progresso nunca seja bom, mas que é possível que as duas coisas sejam verdade ao mesmo tempo: as tarefas banais que ocupavam a maior parte do nosso dia estão mais fáceis, rápidas e baratas, e as estruturas de nosso mundo contemporâneo colocam sobre nós fardos novos e desumanos. Para carregar esses fardos, apelamos para atividades que preenchem o tempo que ganhamos em decorrência de tecnologias que facilitaram o trabalho.

Apesar de precisarmos de muito menos tempo para cumprir tarefas diárias, a maioria das pessoas tem o dia cheio. Em vez de ser direcionado para o lazer, esse tempo extra é usado na melhoria da produtividade ou em alguma maneira de automedicação. Então, sim, de muitas maneiras, nossas vidas estão mais fáceis. Porém, de outras, nós carregamos fardos que conduzem ao vício, à violência e à depressão. A realidade do progresso em algumas áreas da sociedade não nos absolve da responsabilidade de observar e corrigir a desor dem que há em outras áreas, mesmo que a desordem seja causada pelo progresso. O progresso que fizemos nos deslocamentos, por exemplo, não nos dá o direito de ignorarmos os custos ambientais e sociais desse avanço.

* * *

Outra razão pela qual você pode achar que estou exagerando o desespero contemporâneo é que nós somos muito bons em esconder nosso sofrimento. Nossas comunidades raramente requerem que sejamos vulneráveis. Quando você vive em uma comunidade próxima e tem obrigações diante dos outros que transcendem suas preferências e emoções pessoais, eventualmente, você terá que ser vulnerável e falar a respeito das suas dificuldades para a comunidade. Isso não significa que você precisa abrir-se com todo o mundo que conhece acerca de todos os problemas pessoais que você tem. É saudável e apropriado discernir a quem confiar sua vida pessoal. Mas, se nós estivéssemos realmente vivendo em comunidades que incluíssem responsabilidades mútuas, eventualmente teríamos que dizer algo a alguém quando estivéssemos deprimidos, ansiosos, viciados etc. O ambiente faria da vulnerabilidade uma necessidade, e não uma opção.

No mundo moderno, a vulnerabilidade pública é sempre uma escolha e, portanto, assume uma qualidade basicamente performática. O que quero dizer com isso? Quando comunidades (como igrejas, vizinhanças, clubes etc.) são voluntárias e “líquidas”, elas tornam-se lugares que visitamos, e não que habitamos. Então, quando a comunidade de uma igreja, um grupo de amigos ou vizinhos exercem alguma pressão para sermos vulneráveis, podemos nos retirar para nossas casas ou para nossos smartphones. Você não precisa ficar ali e compartilhar seus fardos com alguém. Um dia, você talvez sucumba ou seja descoberto, mas você não precisa compartilhar.

O resultado é que nossos momentos de vulnerabilidade costumam ser cuidadosamente cultivados e preparados para consumo público, a fim de maximizar a atenção e desenvolver nossa imagem. Considere a diferença entre um amigo próximo que lhe pergunta sobre uma mudança brusca em seu comportamento e uma postagem no Instagram anunciando que você foi diagnosticado com uma doença mental. Se a amizade for sólida, será difícil esconder o seu sofrimento. Em algum momento, aqueles que estão perto de você precisarão reconhecer que algo está errado e intervir. No entanto, se nossas amizades e comunidades são altamente condicionadas e, como Bauman as descreve, funcionam com base no “até novo aviso”, não é difícil evitar uma vulnerabilidade desconfortável. Quando estamos vulneráveis em nosso sofrimento, a vulnerabilidade tende a ser uma performance pública calculada e autoconsciente.

Quando é necessário ou vantajoso para nós tornar público nosso sofrimento, você pode anunciar o que está acontecendo em suas próprias palavras e administrar a sua imagem. Mesmo que você escolha estar em um relacionamento com alguém que possa perguntar honestamente: “como você está?” e a quem você deva uma resposta igualmente honesta, ainda há muitas maneiras de administrar seu sofrimento, para que os outros continuem sem saber de nada. A sociedade fornece técnicas de enfrentamento, tais como medicação psiquiátrica, terapia, meditação, exercícios, técnicas de respiração, maneiras de otimizar a produtividade em casa e assim por diante. Cada uma dessas técnicas tem seu valor, mas elas também podem ser usadas para nos proteger de sermos vulneráveis com aqueles que estão mais próximos de nós.

Dada a facilidade com que é possível evitar vulnerabilidade no mundo contemporâneo, não podemos supor que, simplesmente porque as pessoas ao nosso redor não compartilharam nenhum trauma e sofrimento, elas estejam bem. É melhor assumir que todas as pessoas que você encontra carregam algum fardo silencioso.

 


O trecho acima foi retirado com permissão do livro Humanidade me crise, de Allan Noble, Editora Fiel (em breve).


Autor: Alan Noble

Alan Noble (PhD, Baylor University) é professor associado de Inglês na Oklahoma Baptist University, cofundador e editor-chefe da revista online Christ and Pop Culture e consultor da organização AND Campaign. Ele escreveu artigos para os portais Atlantic, Vox, BuzzFeed, The Gospel Coalition, Christianity Today e First Things. Ele é autor de Disruptive Witness.

Ministério: Editora Fiel

Editora Fiel
A Editora Fiel tem como missão publicar livros comprometidos com a sã doutrina bíblica, visando a edificação da igreja de fala portuguesa ao redor do mundo. Atualmente, o catálogo da Fiel possui títulos de autores clássicos da literatura reformada, como João Calvino, Charles Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, bem como escritores contemporâneos, como John MacArthur, R.C. Sproul e John Piper.

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