O texto abaixo foi extraído do livro Vocábulos de Deus, de J I Packer, da Editora Fiel, reedição 2017
Nosso inimigo
Precisamos conhecer o nosso inimigo. O ponto de partida para a mortificação consiste em reconhecermos que estamos combatendo não apenas contra pecados, mas contra o pecado. Conforme verificamos nos estudos anteriores, a Bíblia retrata o pecado como “um princípio positivo e destrutivo, endêmico no homem” (A. M. Hunter): um impulso hereditário, profundamente arraigado em nossa natureza, que nos impele permanentemente a uma cega oposição a Deus. A mente dominada por esse princípio é simplesmente “inimizade contra Deus, pois não está sujeito [a] à lei de Deus, nem mesmo pode estar” (Rm 8.7). O pecado é um intenso desejo por autoafirmação, em oposição a Deus; a própria ideia de dependência consciente, de adoração grata e de comunhão obediente com o Criador é algo inteiramente abominável à mente controlada pelo pecado. O pecado é a raiz de todos os pecados praticados; e, portanto, a raiz da semelhança familiar com o homem caído (cf. Jo 8.44; 1Jo 3.8-12). Cristo nos fornece uma lista dos frutos mediante os quais podemos conhecer o pecado (Mc 7.21, 22). Paulo nos dá duas dessas listas (Gl 5.19-21 e Cl 3.5,8). O pecado é a energia inata que dá origem a essas coisas.
O pecado escraviza inteiramente o incrédulo (cf. Rm 6.16-23). Ele está em paz com o pecado, porque seu coração foi conquistado pelo pecado. A pessoa convertida, porém, toma Cristo como seu Senhor e modelo, e resolve que não mais será aquela pessoa que resistia a Deus e que se autoafirmava.
Essa é uma “mudança de mente” (que é, de fato, o significado da palavra metanóia, a palavra grega para “arrependimento”). Mediante essa mudança mental, o crente se despoja do “velho homem, que se corrompe segundo as concupiscências do engano” e se reveste do novo homem (Ef 4.22-24). Ele renuncia ao pecado; deseja que o pecado morra nele; e, assim, em intenção, ele crucifica “a carne, com as suas paixões e concupiscências” (Gl 5.24).
Mas, nem por isso o pecado morre. Pelo contrário, o pecado assume uma vida toda própria; o crente descobre que o pecado está ativo no seu interior, como uma espécie de diabólico alter ego, uma sombra do seu próprio “eu”, opondo-se, resistindo e distorcendo, em menor ou maior grau, todas as suas tentativas de fazer a vontade de Deus. Escreveu Owen: “O pecado pode ser comparado a uma pessoa, uma pessoa viva, chamada de ‘velho homem’, com suas faculdades e propriedades, com sua sabedoria, sua astúcia, sua sutileza e sua força”.
Assim, o crente se vê em conflito com uma parte de si mesmo: “A carne milita contra o Espírito, e o Espírito contra a carne… para que não façais o que porventura seja do vosso querer” (Gl 5.17). O crente quer ser perfeito, mas nunca atinge a perfeição, e a cada fase de sua vida ele se vê forçado a confessar juntamente com Paulo: “Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço… já não sou eu quem o faz, e, sim, o pecado que habita em mim” (Rm 7.19,20). O pecado está sempre em rebelião contra a lei da mente do crente (Rm 7.23; cf. v. 25). Escreveu John Owen: “Não é fácil expressarmos com que vigor e variedade o pecado se manifesta nesta questão. Às vezes, o pecado propõe diversões, às vezes causa exaustão, às vezes descobre empecilhos, às vezes desperta afetos contrários, às vezes gera preconceitos e, de uma maneira ou de outra, embaraça a alma, de tal modo a jamais permitir que a graça obtenha um absoluto e total sucesso, na realização de qualquer dever”. O pecado está em guerra contra nós (Rm 7.23; 1Pe 2.11) e busca a nossa ruína. A única maneira de nos preservarmos é lutando contra o pecado. Fazemos isso por meio da mortificação.