segunda-feira, 23 de dezembro
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A natureza da vontade humana

O que determina a vontade?

O que é a vontade? Respondemos que a vontade é a faculdade de escolha, a causa imediata de todas as ações. Escolher necessariamente implica em recusar uma coisa e aceitar outra. O lado positivo e o negativo precisam estar presentes na mente, antes que possa haver escolha. Em cada ato da vontade há uma preferência — o desejar uma coisa e não outra. Quando não há preferência, mas completa indiferença, não há volição. Querer é escolher, e escolher é decidir entre alternativas. Mas há algo que influencia a escolha, algo que determina a decisão. A vontade, pois, não pode ser soberana, porque é escrava desse algo que a influencia e determina. A vontade não pode ser soberana e serva ao mesmo tempo. Ela não pode ser tanto a causa como o efeito, porque, como dissemos, algo a induz a fazer uma escolha; portanto, esse algo tem de ser o agente causal. A própria escolha é afetada por certas considerações, é determinada por várias influências que operam sobre o próprio indivíduo. Assim, a volição é o efeito dessas considerações e influências; e, se é o efeito, logo deve ser-lhes serva. Ora, se a vontade é serva de tais considerações e influências, já não é soberana. E se a vontade não é soberana, não lhe podemos atribuir “liberdade” absoluta. Os atos da vontade não se produzem por si mesmos; dizer que podem é postular um efeito sem causa. “Ex nihilo nihil fit” — do nada, nada se faz.

Em todos os tempos, porém, tem havido os que sustentam a absoluta liberdade ou soberania da vontade humana. Argumentam que a vontade tem um poder autodeterminativo. Como exemplo, dizem que posso voltar os olhos para cima ou para baixo; a mente é indiferente quanto ao que faço; a vontade é que tem de decidir. Porém, isso é uma contradição de termos. Pressupõe-se que eu escolho uma coisa em preferência à outra, quando estou em um estado de completa indiferença. É óbvio que ambas não podem ser verdadeiras. Pode-se replicar que a mente permaneceu indiferente até que demonstrou uma preferência. Exatamente nessa ocasião, a vontade também permanecia quiescente! Porém, logo que desapareceu a indiferença, foi feita a escolha, e o fato de ter a indiferença cedido lugar à preferência derruba o argumento de que a vontade tem a capacidade de escolher entre duas coisas. Conforme dissemos, escolher pressupõe aceitar uma alternativa e rejeitar outra ou outras. Sempre há algo que leva a vontade a fazer uma escolha. E, se a vontade é determinada, então há algo que a determina. O que determina a vontade? Respondemos que é uma poderosa força motivadora que se faz sentir sobre ela. A natureza dessa força é diferente, nos diversos casos. Em uma pessoa, pode tratar-se da lógica do raciocínio; em outra, pode ser o impulso das emoções; em outra, a voz da consciência; em outra, o sussurro do tentador; em outra, o poder do Espírito Santo. Qualquer dessas forças motivadoras que exerça a influência maior e que seja mais poderosa sobre o próprio indivíduo é a que impulsiona a vontade à ação. Em outras palavras, a operação da vontade é determinada por aquela condição mental (por sua vez influenciada pelo mundo, pela carne, pelo diabo ou pelo Senhor Deus) que possui o maior grau de tendência a excitar a vontade. Ilustrando o que acabamos de dizer, analisemos um exemplo simples: Numa tarde de domingo, um amigo nosso estava com forte dor de cabeça. Visitas deveriam ser feitas a enfermos, e ele não queria faltar; temia, porém, que o esforço lhe agravasse o estado, ao ponto de não poder pregar o evangelho naquela noite. Defrontava-se com duas alternativas: visitar os doentes e arriscar-se a adoecer ou descansar naquela tarde (e visitar os doentes no dia seguinte), havendo a probabilidade de levantar-se com novas forças e em condições de participar do culto noturno. Ora, o que ajudou nosso amigo em sua escolha entre as duas alternativas? A vontade? De modo nenhum. É verdade que, finalmente, a vontade fez uma escolha, mas a própria vontade foi motivada a fazer tal escolha. No caso de nosso amigo, certas considerações apresentaram fortes motivos em favor da seleção de uma ou outra alternativa; esses motivos foram confrontados entre si, pelo próprio indivíduo, isto é, pelo seu coração e pela sua mente; e foi estabelecida a alternativa que teve o apoio de motivos mais poderosos. A decisão adequada foi tomada, e, então, a vontade passou a agir. Por um lado, nosso amigo sentiu-se impulsionado, pelo senso do dever, a ir visitar os enfermos; a compaixão o movia a agir assim, e esse foi um forte motivo que se lhe apresentou à mente. Por outro lado, seu bom senso fê-lo lembrar que ele mesmo estava longe de sentir-se bem, que necessitava urgentemente de um bom descanso e que, se visitasse os enfermos naquele estado, provavelmente pioraria, ficando impedido de pregar o evangelho naquela noite. Outrossim, sabia que, no dia seguinte, permitindo-o Deus, poderia visitar os enfermos e, sendo assim, concluiu que deveria descansar naquela tarde. Dois grupos de alternativas se apresentaram a nosso irmão: de um lado, seu senso de dever mais a sua própria simpatia; de outro lado, o reconhecimento de sua própria necessidade mais a preocupação pela glória de Deus, pois sentia que devia pregar o evangelho naquela noite. A última alternativa foi que prevaleceu. Considerações espirituais sobrepujaram o senso de dever. Tomada a decisão, a vontade agiu nesse sentido, e ele foi descansar. Uma análise deste caso evidencia que a mente, a capacidade de raciocinar, foram dirigidas por considerações espirituais; e, a mente, por sua vez, regulou e controlou a vontade. Por isso dizemos que, se a vontade é controlada, ela não é soberana nem livre, sendo apenas uma serva da mente.

Frequentemente ensina-se que a vontade governa o homem; mas a Palavra de Deus afirma que o coração é o centro dominante do ser. Muitos trechos bíblicos poderiam ser citados em abono deste fato. “Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o teu coração, porque dele procedem as fontes da vida” (Pv 4.23). “Porque de dentro, do coração dos homens, é que procedem os maus desígnios, a prostituição, os furtos, os homicídios, os adultérios” (Mc 7.21). Aqui, nosso Senhor traça esses atos pecaminosos até sua fonte original e declara que remontam ao “coração” e não à vontade! E lê-se, também: “Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Mt 15.8). Se fosse necessário apresentar mais provas, poderíamos chamar a atenção para o fato de que a palavra “coração” ocorre na Bíblia três vezes mais do que a palavra “vontade”, embora tenhamos de levar em conta que aproximadamente metade das referências à palavra “vontade” tem em vista a vontade de Deus!

Quando afirmamos que é o coração e não a vontade que governa o homem, não estamos apenas debatendo palavras; insistimos numa importantíssima e vital distinção. Diante de uma pessoa há duas alternativas; qual das duas haverá ela de escolher? Respondemos que é aquela que lhe parecer mais agradável, ou seja, ao seu “coração” — o âmago do seu ser. Perante o pecador se contrapõem, de um lado, uma vida virtuosa e piedosa; de outro, uma vida de prazeres pecaminosos — qual dessas alternativas ele escolherá? A segunda alternativa. Por quê? Porque essa foi a sua escolha. Mas isto comprova que a vontade é soberana? De modo nenhum. Procedamos do efeito para a causa. Por que o pecador escolhe a vida de prazeres pecaminosos? Porque a prefere — e a prefere mesmo, apesar de todos os argumentos em contrário, e de, naturalmente, não apreciar os efeitos dessa maneira de viver. Mas, por que a prefere? Porque o seu coração é pecaminoso. Idênticas alternativas se apresentam ao crente, o qual busca e esforça-se por uma vida de piedade e virtude. Por quê? Porque Deus lhe proporcionou um novo coração, uma nova natureza. Dizemos, por conseguinte, que não é a vontade que ensurdece o pecador a todos os apelos para que este abandone o seu mau caminho; é o seu coração corrupto e pecaminoso. Não quer vir a Cristo, porque isso não lhe apraz; e não lhe apraz porque o seu coração odeia a Cristo e ama o pecado (Jr 17.9)!(1)

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O artigo acima é um trecho adaptado e retirado com permissão do livro Deus é soberano, de A.W. Pink, Editora Fiel.

 


 

(1) Pode surgir a pergunta: Por que, se essa é a verdadeira condição do homem, as Escrituras se dirigem à vontade do homem? Não está escrito: “E quem quiser receba de graça a água da vida” (Ap 22.17)? Reconhecemos, sem restrições, esse fato. Tais exortações demonstram que o homem tem a responsabilidade de se arrepender, crer e receber a Cristo; e todos esses deveres envolvem a reação da vontade. Porém, como o demonstram outras passagens bíblicas, se os homens reagirão dessa forma ou não, depende do estado da natureza humana, da qual a vontade é a expressão. A vontade é a causa imediata das ações e não a causa primária.

Supõe-se constantemente que o homem não pode ser responsabilizado por sua resposta ao evangelho, a não ser que tenha a capacidade de escolher a Cristo; assim, geralmente tem-se admitido que o “livre-arbítrio” e a responsabilidade humana são sinônimos e que não se pode negar um sem negar o outro. É nessa confusa base que frequentemente se levanta a acusação de que a Fé Reformada não dá o devido valor à responsabilidade do homem, porque nega o seu “livre-arbítrio”. (Veja “Nota sobre a Responsabilidade”, p. 119-120)

O ponto de vista bíblico e reformado a respeito da responsabilidade do homem é, de fato, muito mais profundo que o popular conceito arminiano. O homem é responsável não só por sua vontade, mas também por toda a sua natureza; e, enquanto essa natureza permanece na condição em que o pecado (e não Deus) a deixou, ela “não aceita as coisas do Espírito de Deus” (1Co 2.14) e não quer vir a Cristo para ter vida (Jo 5.40). Consequentemente, embora todos tenham o dever de receber a Cristo, só a vontade daquele cuja natureza tenha sido renovada pelo Espírito Santo é a que responde ao evangelho. (Nota de The Banner of Truth.)


Autor: A. W. Pink

Arthur W. Pink (1886-1952) foi um dos autores evangélicos mais influentes da segunda metade do século XX. Erudito bíblico de persuasão reformada e puritana, Pink escreveu várias obras literárias e pastoreou diversas igrejas nos EUA, além de ter servido como ministro na Inglaterra e Austrália.

Ministério: Editora Fiel

Editora Fiel
A Editora Fiel tem como missão publicar livros comprometidos com a sã doutrina bíblica, visando a edificação da igreja de fala portuguesa ao redor do mundo. Atualmente, o catálogo da Fiel possui títulos de autores clássicos da literatura reformada, como João Calvino, Charles Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, bem como escritores contemporâneos, como John MacArthur, R.C. Sproul e John Piper.

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