sexta-feira, 13 de dezembro
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A vontade de Deus, a vontade do homem e o livre-arbítrio

Um assunto muito importante mas negligenciado na igreja moderna é o livre-arbítrio. É vital compreender em que sentido a vontade é livre e reconhecer a importância deste assunto para a fé cristã.

Será que a salvação depende da disposição do homem para ser salvo, independentemente de uma obra prévia do Espírito Santo? Ninguém é salvo contra sua própria vontade; entretanto, Deus transforma o pecador de maneira a torná-lo desejoso. O assunto do livre-arbítrio está no cerne do cristianismo e tem um profundo efeito em nossa mensagem e em nosso método de evangelização. Ao mesmo tempo que é verdade: “Quem quiser, venha”, a Bíblia ensina que a salvação depende não da disposição do homem, e sim da disposição, da graça e do poder de Deus. Além do mais, se Deus não tivesse poder sobre a vontade humana, o mundo inteiro iria para o inferno. Deus não exclui ninguém de seu convite; entretanto, os próprios pecadores excluem a si mesmos.

Philip P. Bliss escreveu um hino que traduzido no português se chama “Quem Quiser”.

Quem ouvir as novas, vá proclamar:

Salvação de graça, vinde desfrutar!

Oh! Que o mundo inteiro ouça a anunciar: Quem quiser, venha!

Quem quiser agora, venha aceitar;

Eis a porta aberta, já podeis entrar;

É Jesus caminho para ao céu chegar;

Quem quiser, venha!

Que fiel promessa tens, pecador!

Queres tu a vida? Vem ao Salvador!

Ele a todos fala com mui terno amor:

Quem quiser, venha!

Todo o que quiser, venha receber!

Possamos todos essa boa-nova ouvir.

É o Pai celeste que convida assim:

Quem quiser, venha!

Se você não pode cantar esse hino do fundo do seu coração, então, não compreende o ensino bíblico sobre o livre-arbítrio. O escritor foi muito prudente e sábio quando escreveu “quem quiser, venha”. Ele não disse “quem quiser,pode vir”.

Uma das primeiras perguntas que encaramos em um estudo sério, quanto à liberdade da vontade, é se existe poder na vontade para obedecer a Deus e para fazer o que é espiritualmente bom. Esta pergunta está intimamente ligada ao assunto da condição espiritual do homem diante de Deus. Precisamos começar considerando o modo como o homem foi criado e o seu estado como um ser não-regenerado.

Também é necessário conhecermos a capacidade que o homem possuía antes da Queda e a capacidade que ele perdeu por causa da Queda. A doutrina do livre-arbítrio nos leva a algumas considerações, não sobre a capacidade do homem, e sim sobre a sua fraqueza, miséria e incapacidade para fazer aquilo que é espiritualmente bom.

Nenhum homem é salvo contra a sua vontade. Nenhum homem é perdoado, enquanto odeia o simples pensar no perdão. Nenhum homem terá alegria no Senhor, se disser: “Eu não quero me regozijar no Senhor”. Não pense, por um só instante, que os anjos haverão de empurrar pessoas através dos portais do céu. Nós não somos salvos contra a nossa vontade; nem a nossa vontade é arrancada de nós, mas o agir (a operação) do Espírito de Deus se realiza no sentido de transformar a vontade humana e, assim, fazer com que alguns homens estejam dispostos no dia do poder de Deus (Sl 110.3), efetuando neles tanto o seu querer como o realizar, segundo sua boa vontade (Fp 2.13). “O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo o que é nascido do Espírito” (Jo 3.8). O Espírito vivifica a alma e lhe faz tais revelações da verdade, capacitando-a a enxergar as coisas por um prisma diferente do que jamais enxergou. A vontade alegremente curva sua cerviz, que um dia foi tão dura quanto o ferro, e se dispõe a vestir o jugo que um dia desprezou, usando-o com alegria. O homem não é como a máquina que meramente obedece a comandos; ele não é polido como um pedaço de mármore. Ele não é lixado como um pedaço de madeira, mas sobre a sua mente age o Espírito da vida. O homem é tornado uma nova criatura em Cristo, pela vontade de Deus, e a sua própria vontade é levada a ceder, com alegria e doçura. Se você está disposto, pode ter certeza de que foi Deus que o tornou disposto. Se você tem uma faísca de amor por Ele, essa faísca vem do fogo do amor de Deus por você. “Nós amamos porque ele nos amou primeiro” (1 Jo 4.19).Trazemos a coroa e dizemos: “Em que cabeça devemos colocá-la?” Todo o filho de Deus haverá de dizer: “Coroai-o, Ele é digno, Ele nos fez diferentes”. “Pois quem é que te faz sobressair? E que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te vanglorias, como se o não tiveras recebido?” (1 Co 4.7). O assunto da vontade do homem não é novo no debate da igreja cristã, entre os teólogos e os filósofos. Durante centenas de anos, tem havido sérios e firmes debates e discussões sobre o assunto da liberdade da vontade humana. Durante o século V, um de nossos heróis, Agostinho, debateu com Pelágio sobre este assunto. Foi também um dos assuntos-chave da Reforma.

Martinho Lutero começou a Reforma com uma negação do livre- arbítrio. Isto era, e continua sendo, fundamental para a doutrina bíblica da justificação somente pela fé.

No final da Reforma, Erasmo, um erudito brilhante, escreveu uma diatribe chamada Discussão Acerca da Liberdade da Vontade, defendendo a doutrina católica romana. Em resposta a diatribe de Erasmo, Lutero escreveu A Escravidão da Vontade1 (todo o pastor deveria ler este clássico).

Quando a maioria dos cristãos pensa na Reforma, a primeira coisa que lhes vem à mente é a justificação somente pela fé. Há uma boa razão para isso:Justificação pela Fé Somente foi a doutrina-chave que saiu da Reforma; não se tratava, entretanto, de uma questão-chave no início da Reforma. Um estudo cuidadoso dos fatos históricos mostrará claramente que o assunto da vontade humana estava no cerne da diferença teológica entre Martinho Lutero e a Igreja Católica Romana.

Para enfatizar a importância deste assunto, talvez seja apropriado e proveitoso citar o Dr. J. I. Packer e O. R. Johnston em sua introdução histórica e teológica à obra prima de Lutero. O Dr. Packer e O. R. Johnston traduziram A Escravidão da Vontade do alemão e do latim para o inglês:

A Escravidão da Vontade é o escrito teológico mais precioso que surgiu da caneta de Lutero. Esta era a sua própria opinião. Escrevendo a Capito, no dia 9 de julho de 1537, a respeito de uma sugerida edição completa de suas obras, Lutero afirmou categoricamente que nenhuma delas merecia ser preservada, exceto estas: O Pequeno Catecismo para Crianças e A Escravidão da Vontade, pois apenas estas duas obras, em seus respectivos âmbitos, eram “justas” (justum). Outros têm concordado com Lutero, ao darem a esse tratado um lugar de destaque entre as suas produções teológicas. B. B. Warfield, por exemplo, ao endossar a descrição de A Escravidão da Vontadecomo “obra prima dialética e polêmica”, classifica-a, quanto ao estilo, como sendo “a corporificação dos conceitos da Reforma de Lutero, a coisa mais próxima de uma afirmação sistemática de todos os conceitos que ele já proferiu… é… no sentido mais verdadeiro, o manifesto da Reforma”. E o professor Rupp cita com aprovação a descrição do livro como “o melhor e mais poderoso Soli Deo Gloria cantado durante o período da Reforma”. Em sua fertilidade de pensamento, seu vigor de linguagem, sua percepção teológica profunda, sua força de argumento muito bem sustentada e na excepcionalidade de sua exposição, este tratado permanece não-superado entre os escritos de Lutero. É o representante mais digno de seu pensa- mento maduro, deixado para nós; é um memorial muito mais refinado de sua perícia teológica do que os pequenos folhetos de anos anteriores, que são bem mais conhecidos.

Seu caráter se destaca quando o comparamos com o livrete que ele se propôs a responder. A diatribe de Erasmo foi escrita de forma elegante e graciosa, mas não é, de maneira alguma, quanto ao seu significado, uma produção digna. Há ampla evidência de que Erasmo não tinha o desejo de escrevê-la e nenhum interesse no assunto. Seu livro sugere que esta é a realidade. Ele exibe muita cultura, mas pouco discernimento. A obra deixa claro aquilo que o autor jamais estaria preocupado em negar: Erasmo de Rotterdam, um estudioso da Bíblia bastante versado, não era teólogo. Ele foi breve, superficial e deliberadamente evasivo na questão que abordou. Escreveu acerca do debate sobre “o livre-arbítrio”, conforme ele mesmo nos informa, como um comentador e crítico, não como alguém que prestava contribuição ao assunto. Seu ponto principal é que não se trata de uma questão muito significativa, de uma forma ou de outra; e sua reclamação principal contra Lutero foi simplesmente que este demonstrava um censo defeituoso de proporção, ao colocar tanta ênfase em uma opinião que é extrema e improvável em si mesma e se relaciona a um assunto que tanto é obscuro como insignificante. A Escravidão da Vontade, por outro lado, é um tratado importante sobre o que Lutero viu ser o cerne do evangelho. Não era uma obra de literatura inferior executada com objetivos financeiros. Lutero recebeu, com satisfação, a oportunidade que a aparição da Diatribe lhe ofereceu para uma completa discussão escrita, acerca daquelas porções de seus ensinamentos que para ele realmente importavam; e, dedicando-se, atirou-se ao assunto com gosto. “Somente você”, ele disse a Erasmo, “atacou o que realmente importa, ou seja, a questão central. Você não se preocupou com aquelas questões irrelevantes — acerca do papado, purgatório, indulgências e coisas semelhantes — a respeito das quais até o dia de hoje a minha morte tem sido procurada… Você, e apenas você, enxergou a dobradiça sobre a qual tudo revolve e acertou no ponto nevrálgico. Por isso, agradeço-lhe de todo o coração; pois é mais gratificante para mim lidar com essa questão…” “Livre-arbítrio” não era uma questão acadêmica para Lutero; o evangelho da graça de Deus, ele defendia, estava preso nisso e permaneceria de pé ou cairia de acordo com o que se decidisse a esse respeito em A Escravidão da Vontade. Portanto, Lutero acreditava estar lutando em favor da verdade de Deus, a única esperança para o homem; e sua determinação e seriedade, ao perseguir o argumento, dá testemunho da força de sua convicção de que a fé uma vez entregue aos santos e, por conseqüência, as almas preciosas estão em jogo. “Quanto ao ter-me permitido argumentar um tanto vigorosamente” ele escreveu, “reconheço minha falha, se é uma falha — mas não; sinto tremenda alegria de que este testemunho veio ao mundo a partir da minha conduta na causa de Deus. Que Deus mesmo confirme este testemunho no último dia!” Lutero argumentou que não faz parte da conduta de um verdadeiro teólogo o despreocupar-se, ou o parecer despreocupado, quando o evangelho está correndo o risco de ser mal interpretado. Esta é a explicação que Warfield chama de “o vigor surpreendente” da linguagem de Lutero. O evangelho de Deus estava em risco; as fontes da religião de Lutero foram tocadas; o homem foi movido; o vulcão começou a sua erupção; os argumentos se derramaram de Lutero como lava fervendo. Em nenhum lugar, Lutero chega mais próximo, quer em espírito ou em substância, de Paulo, em Romanos e Gálatas, do que em A Escravidão da Vontade.

Por que Erasmo e Lutero abordaram a questão “do livre arbítrio” com atitudes tão contrastantes em suas mentes? Não é difícil encontrar a resposta. Suas atitudes divergentes brotaram de duas concepções diferentes de cristianismo. Erasmo argumentava que as questões de doutrina eram todas comparativamente irrelevantes e que estar ou não o homem livre era o menos importante de todos os assuntos. Lutero, por outro lado, acreditava que as doutrinas eram essenciais e construtivas à religião cristã e que a doutrina de A Escravidão da Vontade, em especial, era a pedra angular do evangelho da fé…

Esse assunto ressurgiu com intenso vigor no século XVII, durante o Grande Despertamento. O assunto do livre-arbítrio estava na base do erro teológico de Charles Finney e seus métodos evangelísticos e antibíblicos. A batalha ainda existe entre os Reformados e os Fundamentalistas, bem como entre seus respectivos métodos e mensagem do evangelho.

Todo o estudante sério das Escrituras deveria compreender quão vital e importante é este assunto, em relação a outras doutrinas importantes da fé cristã, tais como a depravação total, a eleição e a chamada eficaz. Um ponto de vista correto do livre-arbítrio afeta profundamente nossos métodos de evangelismo.


Autor: Ernest Reisinger

Ernest Reisinger (1919 - 2004), um pastor batista reformado, ajudou a lançar o fundamento do que se tornou o Founders Ministries, ministério que busca trazer os Batistas do Sul de volta a seus princípios reformados. Ele deu início ao Jornal Founders, em 1990, do qual permaneceu como Editor Associado até a morte. Foi convertido aos vinte e poucos anos, fez sua profissão pública de fé em uma reunião do Salvation Army e, em 1943, foi batizado na Southern Baptist Church, em Havre de Grace, Maryland. Apesar de ser um batista, Reisinger teve uma estreita associação com os pedo-batistas, participou de uma Escola Dominical Presbiteriana e tornou-se membro de uma igreja pedo-batista em Carlisle, Pensilvânia, antes de ser batizado. Mais tarde, em 1946, Reisinger foi comissionado pelo Presbitério de Carlisle como um “pregador leigo”. Apesar de sua precoce filiação com o presbiterianismo, na década de 1950, ele ajudou a estabelecer a Grace Baptist Church, em Carlisle, Pensilvânia. Com o passar do tempo, a igreja de Carlisle decidiu que Reisinger deveria ser ordenado a pastor. Em 1971, Reisinger foi ordenado em um culto ministrado pelo popular Dr. Cornelius Van Til, do Seminário Westminster. Reisinger serviu como pastor em Islamorada e Pompano Norte, na Flórida. Estas eram Igrejas Batistas do Sul e, na década de 80, aproximadamente, Reisinger trabalhou na recuperação das doutrinas da graça desta denominação.

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Ministério Fiel: Apoiando a Igreja de Deus.

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