Isso é abuso?
Nada há encoberto que não venha a ser revelado; e oculto que não venha a ser conhecido. (Lc 12.2)
Andreia era uma assídua frequentadora dos estudos bíblicos e dos eventos sociais para mulheres na igreja. Deus lhe dera o dom da hospitalidade, e ela possuía uma profunda fome por Jesus e sua Palavra. No entanto, depois que seu primeiro filho nasceu, seu envolvimento nas atividades do ministério de mulheres diminuiu — e depois parou completamente.
Numa manhã de domingo, consegui segurar Andreia por alguns minutos e perguntei como ela estava se adaptando à maternidade. Quando eu disse que sentia saudades de vê-la, ela fez uma piada sobre quanto tempo levaria para ela voltar ao estudo bíblico. Embora eu talvez pudesse desconsiderar aquilo como sendo os efeitos colaterais dos sentimentos normais de uma nova mãe, algo no que ela disse me chamou a atenção. Perguntei se ela dizia aquilo por estar sobrecarregada ou se alguém a havia machucado. Seus olhos se encheram de lágrimas. “É apenas que as coisas estão difíceis em casa, e eu tenho que fazer do meu casamento minha prioridade”.
Aquela afirmação podia significar qualquer coisa. Mas os olhos cheios de lágrimas de Andreia entregaram a intensidade de sua emoção. Seu marido veio até ela, e eles rapidamente deixaram o local.
Ao ver a angústia de Andreia, eu naturalmente quis procurá-la novamente; mas nas semanas seguintes, sua família sempre ia embora assim que o culto terminava, não me deixando nenhuma oportunidade de falar com ela. Perguntei se podíamos nos encontrar para conversar, mas Andreia disse que as coisas estavam apertadas financeiramente e que ela não conseguiria sair. Muitos meses se passaram durante os quais trocamos apenas simples saudações.
Cerca de um ano depois, Andreia veio até mim e perguntou se poderia me fazer uma pergunta pessoal. “Seu marido já teve ciúmes de seus filhos?” Alguns anos antes, talvez eu tivesse dito que não, e feito uma piada sobre meu marido gostar de como a casa era mais limpa antes das crianças. Mas minhas prévias interações com mulheres oprimidas me levaram a responder com muito mais cuidado. Aprendi que mulheres abusadas tendem a fazer perguntas um tanto veladas, para tentar descobrir se o que elas estão vivenciando é normal e se você é uma pessoa segura para se conversar. Meus ouvidos se aguçaram com a pergunta dela. “Por que quer saber?”, eu disse. “Você acha que seu marido está com ciúmes? O que ele faz para fazer você pensar isso?”
E as histórias começaram a fluir. Andreia compartilhou comigo como seu marido ficava bravo se ela acalentasse seu filho em prantos enquanto eles estavam conversando. Ele ficava em silêncio por dias se ela mostrasse afeição pela criança. Ele dizia com frequência: “Desde que o bebê nasceu, você tem um coração de pedra para mim! Você só se casou comigo porque queria filhos”. Ele ficava tão incomodado com o tempo que ela gastava para cuidar de uma criança pequena que não permitia que ela fosse ao nosso estudo bíblico ou visitasse sua família. Se ela tivesse alguma energia ou tempo extra, tinha de ser para ele. Ela tinha uma dívida para com ele, e ele deixava bem claro o que queria que ela fizesse.
A teoria de Andreia era que ele estava com ciúmes do prazer que ela tinha em seu filho, mas ela não conseguia entender o porquê. Ela se questionava se amava seu o marido o suficiente. Por que amar o filho deles o deixava com tanta raiva? Isso era normal? O que ela estava fazendo de errado? Mas a pergunta que eu me fazia era: “Isso é abuso?”
O projeto de Deus para o casamento
As páginas iniciais das Escrituras nos dizem que Deus sabia que não era bom que o homem estivesse sozinho; então, ele criou Eva para ter intimidade espiritual, emocional e física com Adão. Isso nos diz que o companheirismo era parte integrante do projeto de Deus para o casamento, desde o início. Ele criou o casamento para ser um meio de o marido e a mulher ajudarem um ao outro a se tornarem as pessoas que Deus as projetara para ser. Mais do que isso, nossa aliança com nosso cônjuge deve ser um reflexo glorioso da aliança de Cristo com sua noiva, a igreja (cf. Efésios 5).
Para entendermos como Deus chama os cônjuges para se relacionarem mutuamente, devemos observar como Cristo ama a igreja. Seu amor por sua igreja é abnegado, fiel, purificador, honesto e santificador. Ele a trata com honra e a serviu com um alto custo pessoal. De fato, seu amor por ela é caracterizado por humildade e serviço.
Paulo diz que devemos ter esse mesmo tipo de mentalidade humilde e sacrificial:
Nada façais por partidarismo ou vanglória, mas por humildade, considerando cada um os outros superiores a si mesmo. Não tenha cada um em vista o que é propriamente seu, senão também cada qual o que é dos outros. Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. (Fp 2.3–7)
Tim Keller lembra aos maridos e esposas que “não devemos viver para nós mesmos, mas para o outro. Esse é o propósito mais difícil e, no entanto, mais importante de cada um dos cônjuges”. Deus nos chama a amar nosso cônjuge para o bem dele e para a glória de Deus. Afinal, foi assim que Jesus amou a nós, sua noiva.
Isso é difícil de fazer. Mesmo com a ajuda santificadora do Espírito Santo, agimos egoisticamente. No entanto, somos santificados em nosso casamento quando procuramos destacar o amor sacrificial de Jesus por nosso cônjuge. Muito poderia ser dito aqui sobre como ajudar e fortalecer um bom casamento — e até mesmo um nem tão bom assim. Mas já existe um mar de materiais valiosos à disposição dos cristãos. Meu foco aqui é como o abuso em particular corrompe a aliança do casamento. Certamente, todos nós precisamos ser continuamente lembrados de que o casamento não é um lugar onde buscamos realizar nossos próprios desejos (sejam emocionais, físicos ou espirituais), mas um relacionamento no qual somos chamados a amar e servir nosso cônjuge para que ambos ajudem um ao outro a amar melhor e a espelhar mais a imagem de Deus. Mas os opressores, como aprenderemos, se especializam em quebrar a aliança do casamento junto a essas dimensões egoístas, o que causa um tremendo estrago a seus casamentos e suas vítimas.
O que é abuso doméstico?
Conhecer a intenção de Deus para o casamento nos permite ver o quanto ela se corrompe quando a opressão está presente. A opressão é o oposto do propósito de Deus para o casamento. O abuso ocorre em um casamento quando um dos cônjuges persegue seus próprios interesses, procurando controlar e dominar o outro por meio de um padrão de comportamentos coercitivos, controladores e punitivos. Esse padrão de comportamento controlador é comumente chamado de abuso doméstico ou violência doméstica. Gosto de usar o termo opressão, pois ele fornece para tal comportamento uma moldura que é abordada nas Escrituras e captura a dominação que ele envolve. Não importa que forma a opressão assuma, o resultado pretendido é o mesmo: punir e ferir a vítima para que o opressor molde seu mundo conforme seu desejo. O comportamento do opressor diz: “Sirva-me ou sofra as consequências!”. Podemos perceber que a opressão contrasta fortemente com o amor abnegado de Jesus.
O abuso existe em um espectro. Embora a atitude fundamental de todos os opressores seja a mesma, nenhum caso de opressão é igual ao outro. Alguns opressores se deleitam em causar danos, enquanto outros permanecem inconscientes de sua sufocante presunção. Toda opressão é um pecado grave; algumas táticas abusivas podem ser mais ou menos severas do que outras, mas todas são destrutivas e desonrosas para com as vítimas e para com Deus. Não há lugar para opressão em um casamento.
Trecho adaptado com permissão do livro Desmascarando o Abuso, de Derby Strickland, Editora Fiel.
Por: Derby Strickland. © Ministério Fiel. Website: ministeriofiel.com.br. Todos os direitos reservados. Editor: Renata Gandolfo.