É impossível todos os leitores da Bíblia serem filosoficamente sofisticados. Alguns devem ser. Essa é sua vocação dada por Deus. Mas, para milhões de outros, isso é algo irrealista e indesejável. Somente alguns tipos de corações e mentes podem transitar com segurança pelas complexidades da filosofia (Cl 2.8). Como, então, esses milhões de leitores comuns que desejam conhecer a verdade, aceitá-la e viver por ela chegarão a convicções razoáveis e justificadas sobre a extensão e a natureza da providência de Deus? Por meio da leitura de toda a Bíblia — de uma leitura humilde, cuidadosa e ampla, em dependência do Espírito. Ou, se eles não têm acesso a toda a Bíblia, de tanto quanto dispuserem dela.
Há convicções por trás dessa resposta que expliquei e defendi no livro Uma glória peculiar.[i] Elas me levam à posição de que Deus tenciona que os cristãos fiéis e comuns sejam capazes de discernir, em sua palavra, com confiança, a verdade de sua providência. Ao ler e ouvir regularmente toda a palavra de Deus, o cristão pode assimilar a realidade da providência de Deus, de modo que ela se torna um tesouro que satisfaz a alma e expande a adoração, uma energia que fortalece o amor para sustentar os sacrifícios e um lastro perfeitamente equilibrado na alma para impedir o barco de virar sob as ondas fustigantes da vida.
“O lugar em que estás é santo”
Portanto, a principal função da Parte 3 deste livro é ouvir o que Deus fala sobre sua providência e atrair a atenção do leitor para isso. Os interesses deste capítulo podem ser resumidos por uma história na vida de Josué:
Estando Josué ao pé de Jericó, levantou os olhos e olhou; eis que se achava em pé diante dele um homem que trazia na mão uma espada nua; chegou-se Josué a ele e disse-lhe: És tu dos nossos ou dos nossos adversários? Respondeu ele: Não; sou príncipe do exército do SENHOR e acabo de chegar. Então, Josué se prostrou com o rosto em terra, e o adorou, e disse-lhe: Que diz meu senhor ao seu servo? Respondeu o príncipe do exército do SENHOR a Josué: Descalça as sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é santo. E fez Josué assim (Js 5.13-15).
Se eu me aproximo da palavra de Deus e digo: “É para mim ou para meus adversários teológicos?” Posso esperar ouvir Deus dizer: “Não; sou príncipe”. Em outras palavras, Deus não nos encontra em sua palavra como um advogado faccioso, mas como um príncipe. Ele não é governado por nossas pressuposições facciosas. Ele é quem ele é. E revela o que quer revelar. Nosso dever é ouvir, curvar-nos em adoração confiante e obedecer. Nosso chamado, quando nos aproximamos da palavra de Deus, é receber o tesouro, a energia e o lastro da realidade da providência. Retiramos as sandálias dos pés — símbolo de nossa autossuficiência para trilhar as alturas dos mistérios da providência — e dizemos: “Fala, SENHOR, porque o teu servo ouve” (1Sm 3.9).
Para onde vamos a partir daqui?
A Parte 3 deste livro tem o alvo de responder à pergunta sobre a natureza e a extensão da providência em atingir o objetivo supremo descrito na Parte 2. Ou seja, quão extensivamente Deus governa o mundo? Que tipo de governo ele exerce, por exemplo, sobre a natureza, a vida, a morte e, em especial, sobre as vontades de Satanás, dos incrédulos e daqueles a quem salva? Esse governo que abrange tudo é importante para o objetivo supremo de Deus. Esse alvo é ter um povo transformado, centrado em Deus, exaltador de Cristo, capacitado pelo Espírito, cheio de amor e exultante, um povo que magnifica as riquezas da graça de Deus em um novo mundo que foi renovado, em perfeita harmonia com esses santos glorificados. Portanto, a Parte 3 se move em direção à obra da providência em criar esse novo povo e esse novo mundo.
Mas não segue imediatamente para lá. Ao longo do caminho para nosso foco na criação e na transformação de um novo povo, focalizamos a terra, a água, o vento, as plantas, os animais, Satanás, os demônios, os reis, as nações, o nascimento, a vida, a morte e o pecado. A razão para essa abordagem mais ampla da providência, antes de chegarmos à sua obra mais crucial em salvar, santificar e glorificar a noiva de Cristo, é tripla.
Em primeiro lugar, essa providência mais ampla permeia a palavra de Deus. E nosso alvo é ver o que Deus falou sobre sua providência. Em segundo lugar, este é o mundo, e esses são os poderes pecaminosos, de que o povo de Deus será salvo. Este mundo e esses poderes — ao nosso redor e, infelizmente, ainda muito arraigados em nós — são os campos de batalha em que a providência realiza sua obra salvadora, santificadora e glorificadora. Tudo depende de a providência manter o controle sobre este mundo — o mundo da natureza, das nações, de Satanás e do pecado. Não somos salvos e tirados imediatamente deste mundo. Somos salvos e transformados nele e por meio dele. E esses poderes são de tal natureza que não seremos salvos se a providência de Deus não exercer controle sobre eles. Portanto, ver essa providência na Bíblia é importante.
Em terceiro lugar, este vasto mundo de terra, água, vento, plantas, animais, Satanás, demônios, reis, nações, nascimento, vida, morte e pecado é não somente um campo de batalha, mas também um teatro para a glória da providência de Deus. É aqui que vemos a mão de Deus. E, se a providência de Deus guia o mais diminuto grão de poeira que flutua no ar, isso será uma ocasião de adoração nesta vida e para sempre. Como Jonathan Edwards escreveu:
Cada átomo no universo é governado por Cristo, de modo que contribua para o bem do cristão, cada partícula de ar e cada raio do sol; para que, no outro mundo, quando ele vier para vê-lo, possa sentar-se e desfrutar toda essa vasta herança com alegria extasiante e admirável.[ii]
Este mundo de natureza e beleza, de pecado e tristeza, é o teatro no qual Deus mesmo entra na história em Jesus Cristo. É o teatro no qual experimentamos os triunfos de nossa própria salvação. Saber se e como a providência de Deus exerce controle neste mundo — o mundo inteiro — é mais importante para nossa perseverança do que muitos cristãos imaginam.
Portanto, a fim de nos dar coragem e competência para a batalha, bem como olhos para esse teatro, voltemo-nos agora para a natureza e a extensão da providência de Deus.
[i]John Piper, A Peculiar Glory: How the Christian Scriptures Reveal Their Complete Truthfulness (Whea- ton, IL: Crossway, 2016) [edição em português: Uma glória peculiar (São José dos Campos: Fiel, 2019).
[ii]Jonathan Edwards, The “Miscellanies”: (Entry Nos. A-z, Aa-zz, 1-500), ed. Thomas A. Schafer e Harry S. Stout, vol. 13, The Works of Jonathan Edwards (New Haven, CT: Yale University Press, 2002), 184.
Por: John Piper. ©️ Ministério Fiel. Website: ministeriofiel.com.br. Todos os direitos reservados. Editor e revisor: Renata Gandolfo.