O trecho abaixo foi extraído com permissão do livro Santificação profunda, de Dane C. Ortlund, Editora Fiel.
O contraste supremo
Ficamos face a face com nossa pecaminosidade não, primariamente, por nos sentarmos e refletirmos, olhando para nosso interior, ponderando sobre nosso coração. Precisamos fazer isso, mas, em nosso mundo de ritmo aceleradíssimo, muitos de nós nunca paramos para refletir sobre o que está acontecendo em nosso interior. Contudo, a reflexão pessoal nos conduz apenas até aí. A escuridão de nosso interior torna-se bem visível quando a vemos em contraste com o brilho translúcido do próprio Deus. Em seu caderno particular no qual registrava suas reflexões teológicas, Jonathan Edwards anotou:
Se pudéssemos contemplar a fonte infinita de pureza e santidade, e fôssemos capazes de ver a chama infinitamente pura que ela é e o brilho puro com que resplandece, de tal modo que os céus parecessem impuros em comparação a ela; e, depois, se contemplássemos um pouco da infinitamente odiosa e detestável impureza trazida e colocada em sua presença, não seria natural esperar que uma oposição inefavelmente vigorosa se levantasse contra ela? E a falta dessa oposição não seria indecente e chocante?[1]
Sentimos quão desesperada é nossa condição somente quando ela é comparada com a infinita beleza do próprio Deus. Quando uma pesca extraordinária de peixes levou Pedro a compreender que a pessoa que estava no barco era a Divindade santa encarnada, não deu um tapa nas costas de Jesus e lhe agradeceu pela boa pesca do dia. Pedro caiu com o rosto em terra. Suas palavras são impressionantes:
“Senhor, retira-te de mim, porque sou pecador” (Lc 5.8).
Você já vivenciou isso? Sabe o que significa ver a si mesmo como impuro e vulnerável na presença da própria Santidade? Não cresceremos — pelo menos, não de forma profunda — a menos que passemos pela dolorosa morte de sermos honestos a respeito de nossa própria falência espiritual. Na presença de um Deus cuja infinita beleza e perfeição expõem nossa pecaminosidade, temos de ver e sentir nosso vazio completo, bem como nossa rebelião e resistência inatas.
O grande pré-requisito
Se você se sente paralisado, vencido por velhos padrões de pecado, use esse desespero para alavancar um senso saudável de futilidade pessoal, que é a porta pela qual você tem de passar, se quiser obter impulso espiritual. Permita que seu vazio o humilhe. Permita que o leve para baixo — não, porém, para você ficar lá, afundando-se em autopiedade, mas para perder o otimismo medíocre que nós, tão naturalmente, nutrimos em relação a nós mesmos.
Nos capítulos posteriores, chegaremos às contrapartes positivas para essa morte. Mas não podemos ignorar essa etapa. Esse é o grande pré-requisito para tudo o mais. O padrão da vida cristã não é uma linha direta para a vida ressurreta, mas uma curva que desce até a morte e, de lá, sobe até a vida ressurreta.[2] E isso significa que vivemos continuamente com um senso cada vez mais profundo de quão repreensíveis somos em nós mesmos. Foi perto do fim de sua vida que Paulo se identificou como o pecador mais premiado que conhecia (1Tm 1.15). Os octogenários mais piedosos que conheço são aqueles que veem a si mesmos como mais pecaminosos agora do que em qualquer outro momento. Eles conhecem o padrão saudável de verem a si mesmos como indivíduos desprovidos de esperança. Qual de nós seria capaz de se identificar com o que o pastor e compositor de hinos John Newton escreveu em uma carta de 1776 (aos 51 anos): “A vida de fé parece, em tese, tão simples e fácil que eu poderia recomendá-la aos outros em poucas palavras; mas, na prática, ela é muito difícil, e meu avanços são tão lentos que, de modo algum, eu ousaria afirmar que avancei”.[3]
Você já foi levado a não ter esperança no que é capaz de realizar em sua santificação? Em caso negativo, tenha coragem de olhar para si mesmo no espelho. Arrependa-se. Veja sua carência profunda. Peça ao Senhor que lhe perdoe a arrogância. À medida que você desce à morte, ao reconhecimento da futilidade da mudança interior que é capaz de realizar por seus próprios esforços, lá, lá mesmo, você descobrirá, em seu desânimo e em seu vazio, que Deus vive. É lá, naquele deserto, que Deus ama fazer as águas brotarem e as árvores florescerem. Sua desesperança é tudo de que ele precisa para operar em seu espírito. “Tão somente reconhece a tua iniquidade” (Jr 3.13). O que arruinará seu crescimento é você olhar de outra maneira, é evitar o olhar perscrutador da própria Pureza, é cobrir sua pecaminosidade e seu vazio com sorrisos e brincadeiras e, depois, avaliar novamente seus recursos pessoais, ignorando o que você sabe nas profundezas de seu coração: que você é ímpio.
Se você descender apenas um pouco na desesperança de si mesmo, ascenderá somente um pouco na escada do jubiloso crescimento em Cristo. “O índice de salubridade da fé de um homem em Cristo”, escreveu J. I. Packer, “é a genuinidade do desespero pessoal que ela produz”.[4] Não somente admita que sua condição é desesperadamente horrível. Sinta-a você mesmo. Reflita, calmamente, sobre quão vil você, quando entregue a si mesmo. Em seu hino de 1799, “Pedi ao Senhor que eu cresça”, Newton expressou com exatidão o modo como o crescimento espiritual vem por meio do desespero, e não quando o evitamos:
Pedi ao Senhor que eu cresça Em fé, em amor e em toda graça; Conheça mais de sua salvação
E busque solenemente a sua face.
Foi ele quem me ensinou a orar, E, creio, ele tem respondido!
Mas tem sido de uma maneira tal Que quase me levou ao desespero.
Esperava que, em alguma hora favorável, Ele respondesse, de pronto, ao meu pedido; E, pelo poder do seu amor constrangedor,
Subjugasse meu pecado, e me desse descanso.
Em vez disso, ele me fez sentir Os males ocultos de meu coração
E deixou que os furiosos poderes do inferno Assaltassem a cada parte de minha alma.
Além disso, com sua própria mão, parece Que ele tencionou agravar minha aflição; Anulou todos os desígnios justos que planejei Destruiu meus recursos e me rebaixou.
“Senhor, por que é assim”, clamei em tremor? “Perseguirás o teu verme até à morte?”
“É dessa maneira”, respondeu o Senhor, “que respondo à oração por graça e fé.”
“Emprego essas provações interiores Para te libertar do ego e do orgulho
E quebrar os teus planos de gozo terreno, A fim de que aches o teu tudo em mim”.
Trilhe o caminho do verdadeiro crescimento com um desespero honesto, saudável e profundo.
Desmorone
Então, depois de haver perdido a esperança quanto à sua própria capacidade de produzir crescimento, o que fazer? Vez ou outra, durante a nossa vida — até mesmo hoje —, quando nos acomodamos de novo à nossa pecaminosidade, o que devemos fazer?
Não há nada nobre em permanecer num abismo de desespero. Temos de passar por essa experiência, mas não devemos permanecer lá. O desespero saudável é uma interseção, e não uma rodovia expressa; uma passagem, e não uma traje- tória. Precisamos entrar lá, mas não ousamos lá permanecer.
Em vez disso, a Bíblia ensina que cada experiência de desespero deve levar-nos de novo à comunhão mais profunda com Jesus. É como pular em um trampolim: devemos descer sentindo novamente o nosso vazio, mas, em seguida, permitir que isso nos impulsione para cima, a novas alturas com Jesus. A Bíblia chama esse movimento de dois passos de arrependimento e fé.
Arrependimento é abandonar o ego; fé, por sua vez, é voltar-se para Jesus. Não podemos ter um sem o outro. O arrependimento que não se volta para Jesus não é um arrependimento verdadeiro; a fé que não abandona o ego antes de tudo não é fé verdadeira. Se estamos viajando na direção errada, a situação é corrigida quando fazemos uma conversão e, ao mesmo tempo, começamos a caminhar na direção certa. Esses movimentos acontecem simultaneamente.
Alguns cristãos, aparentemente, acreditam que a vida cristã é iniciada por um ato decisivo de arrependimento e, depois, dali em diante, nutrida pela fé. Mas, como ensinou Lutero, a vida inteira é arrependimento. A primeira de suas 95 teses diz: “Quando nosso Senhor e Mestre, Jesus Cristo, disse: ‘Arrependei-vos’ (Mt 4.17), ele queria que toda a vida dos crentes fosse uma vida de arrependimento”. A vida cristã consiste em nos arrependermos dos caminhos que ainda seguiremos. De modo semelhante, vivemos toda a nossa vida pela fé.
Paulo não disse: “Fui convertido pela fé”, mas: “Vivo pela fé” (Gl 2.20). Não começamos simplesmente a vida cristã pela fé; progredimos pela fé. É nosso novo normal. Processamos a vida e atravessamos essa existência mortal ao nos voltarmos, a cada instante, para Deus com confiança e esperança, em cada situação, em cada decisão, a cada hora que passa. Nós “andamos por fé e não pelo que vemos” (2Co 5.7). Ou seja, movemo-nos ao longo da vida com os olhos fitos sempre no alto. Nossa postura é a de esperar capacitação do alto.
Arrependimento e fé. Em uma palavra: desmorone. Contudo, tanto o arrependimento como a fé nunca devem ser isolados do próprio Jesus. Ambos nos conectam a Cristo. Não são a “nossa contribuição”, mas apenas os meios pelos quais chegamos à cura genuína: o próprio Cristo. Como Jack Miller disse sabiamente em uma carta que enviou em 1983 a um jovem amigo:
Quando você se volta para Cristo, não tem um arrependimento separado de Cristo; você tem apenas Cristo. Portanto, não busque o arrependimento ou a fé por si mesmos; busque Cristo. Quando você tem Cristo, tem arrependimento e fé. Acautele-se de buscar uma experiência de arrependimento; busque apenas a experiência de Cristo.
O diabo pode ser bem ardiloso. Ele não se importa com que você pense muito em arrependimento e fé, se não pensa muito em Jesus Cristo […] Busque Cristo e se relacione com Cristo como um Salvador e Senhor amoroso que deseja convidá-lo a conhecê-lo.[5]
À medida que você desespera de si mesmo — em agonia por causa da desolação causada por seus fracassos, fraquezas e inadequações —, permita que esse desespero o leve a se aprofundar bastante em honestidade quanto a si mesmo; porque ali você encontrará um amigo, o próprio Senhor Jesus, que o deixará admirado e o surpreenderá com sua bondade gentil, quando, em arrependimento, você abandona o ego e, em fé, confia em Cristo de novo.
[1] Jonathan Edwards, “Miscellany 779”, em The works of Jonathan Edwards, vol. 18, The “miscellanies”, 501-832, ed. Ava Chamberlain (New Haven, CT: Yale University Press, 2000), p. 438.
[2] Veja Paul E. Miller, J-Curve: dying and rising with Jesus in everyday life (Wheaton, IL: Crossway, 2019).
[3] Letters of John Newton (Edinburgh: Banner of Truth, 2007), p. 184; de modo semelhante, p. 212-13. De fato, esse é um tema repetido em todas as cartas de Newton.
[4] J. I. Packer, A quest for godliness: the Puritan vision of the Christian life (1990; repr., Wheaton, IL: Crossway, 2010), p. 170.
[5] Em Barbara Miller Juliani, The heart of a servant leader: letters from Jack Miller (Phillipsburg, NJ: P&R, 2004), p. 244-45.