J.C. Ryle uma vez comentou que “a ausência de definições precisas é o sangue da controvérsia religiosa”. Isso é especialmente verdade quando se trata da doutrina da expiação limitada. O adjetivo “limitado” por seu próprio nome cria um problema. Na história da redenção, a expiação de Cristo é o clímax da tão aguardada salvação de Deus, então porque alguém iria querer limitá-la?
É claro que, em um nível, todos limitam a expiação de Cristo: alguns limitam seu escopo (é somente para os eleitos de Deus); outros limitam sua eficácia (ela não salva todos a que se destina). Portanto, a questão não é se alguém limitará a expiação de Cristo, mas como o fará. Por essa razão, eu proponho um termo mais positivo e menos ambíguo: expiação definida.
A doutrina da expiação definida afirma que, na morte de Jesus Cristo, o Deus triúno teve a intenção de realizar a redenção de cada pessoa dada ao Filho pelo Pai na eternidade passada e aplicar as conquistas do seu sacrifício a cada uma delas pelo Espírito Santo. Em poucas palavras: a morte de Cristo tinha a intenção de ganhar a salvação do povo de Deus somente; e não apenas teve a intenção de realiza-la, mas também será alcançada. A esse respeito, o adjetivo definido cumpre duas funções: ele denota a intenção da morte de Cristo (apenas para seus eleitos) e denota a eficácia da morte de Cristo (ele realmente salvará seus eleitos, garantindo sua fé no evangelho). Jesus será fiel ao seu nome: “Ele salvará o seu povo dos pecados deles” (Mt 1.21).
Desde a articulação madura da doutrina no Sínodo de Dort (1618–1619), a doutrina da expiação definida recebeu sua parcela de criticismo. No século XVIII, John Wesley pregou que a doutrina era contrária “a todo o teor do Novo Testamento”. No século XIX, John McLeod Campbell, ministro da Igreja da Escócia, argumentou que a doutrina roubava o crente da segurança pessoal de que Cristo “me amou e a si mesmo se entregou por mim” (Gl 2.20). No século XX, Karl Barth reclamou que a “doutrina sinistra” era uma dedução lógica da visão equivocada de João Calvino sobre a dupla predestinação. Outros questionaram que a expiação definida serve como um calcanhar de Aquiles da teologia Reformada, uma fraqueza que destrói evangelismo e missões.
Contudo, apesar dessas críticas, quero propor que devemos (re)afirmar a doutrina da expiação definida por pelo menos três razões.
Sua base bíblica
Diversos trechos do Novo Testamento falam do amor de Deus, ou da morte de Cristo, por “muitos” (Rm 5.15, 19), por “todos” (Rm 11.32; 2 Co 5.14–15; Cl 1.20; 1 Tm 2.6; 4.10; Tt 2.11) e pelo “mundo” (Jo 3.16; 2 Co 5.19; 1 Jo 2.2). Esses textos são frequentemente empregados por quem deseja defender uma expiação universal. Por outro lado, há vários textos do Novo Testamento que falam do amor de Deus e da morte de Cristo para um grupo particular de pessoas: por “mim” (Gl 2.20), pela “igreja” (At 20.28; Ef 5.25), pelo “seu povo” (Tt 2.14), e por “nós” crentes (Rm 5.8; 8.32; 1 Co 5.7; Gl 3.13; Ef 5.2; 1 Ts 5.10; Tt 2.14). Quando os textos universalistas e particularistas são lidos juntos, parece que o ônus de explicar por que o Novo Testamento pode falar do amor de Deus, ou da morte de Cristo, em termos limitados recai sobre os proponentes de uma expiação universal, uma vez que, na realidade, não há tal limitação.
Contudo, prover um conjunto de “textos de prova” particularistas não prova a doutrina de expiação definida mais do que “textos de prova” provam a Trindade ou a deidade de Cristo. Tais doutrinas não são alcançadas pelo simples acúmulo de textos bíblicos que as suportem; elas também envolvem a sintetização de doutrinas internamente relacionadas que afetam uma doutrina particular em questão. A síntese teológica é uma parte importante de qualquer construção doutrinária.
Sua síntese teológica
A doutrina da expiação definida não existe em um vácuo; em vez disso, está conectada a muitas outras doutrinas que também colidem com ela. Isso pode ser demonstrado a partir de Efésios 1.3–14. Nesse grande parágrafo de uma sentença só (no grego), onde Paulo discrimina as bênçãos que temos em Cristo, o apóstolo fala da obra salvífica de Deus de três maneiras.
Primeiro, a obra salvífica de Deus é indivisível. Paulo apresenta a obra salvífica de Deus em um quadro temporal que vai da eternidade passada à eternidade futura. Ela consiste em quatro momentos distintos da salvação: redenção predestinada, quando Deus nos escolheu antes da fundação do mundo (vv. 4–5); redenção realizada, quando Cristo nos redimiu pelo seu sangue (v. 7); redenção aplicada, quando Deus selou sua palavra em nossos corações pelo seu Espírito (v. 13); e redenção consumada, quando recebermos nossa herança futura concedida pelo Espírito (v. 14). Estes quatro momentos da obra salvífica de Deus são indivisíveis; isto é, eles são momentos distintos, porém inseparáveis, de um ato de salvação de Deus. Isto significa que a expiação definida de Cristo (redenção realizada) nunca pode ser separada do eterno decreto de Deus (redenção predestinada) ou da obra santificadora de Deus por meio de seu Espírito (redenção aplicada), que está conectada a nossa glorificação no último dia (redenção consumada).
Segundo, a indivisível obra salvífica de Deus é trinitária. Nessa passagem, Paulo se refere a cada membro da Trindade e a seus respectivos papéis na obra da salvação. O Pai nos elege e predestina (vv. 4–5); o Filho nos redime pelo seu sangue, provendo perdão para nossos pecados (v. 7); e o Espírito sela a Palavra de Deus em nossos corações (v. 13) enquanto também serve de garantia da nossa futura herança (vv. 13–14). Todas as três pessoas da Trindade operam juntas para realizar um ato de salvação, da eternidade passada à eternidade futura. Portanto, quando se trata da intenção da expiação de Cristo, as pessoas da Trindade não têm propósitos contrários; em vez disso, operam juntas e em harmonia para realizar a salvação.
Terceiro, a indivisível e trinitária obra salvífica de Deus é realizada em Cristo. Muitas vezes nesse parágrafo, Paulo usa a frase preposicional “em Cristo” ou “nele.” A expressão fala da união do crente com Cristo, que atravessa quatro momentos da salvação: fomos escolhidos “nele” antes da fundação do mundo (v. 4; redenção predestinada); “nele” nós temos redenção por meio de seu sangue (v; 7; redenção realizada); “nele” somos selados com o Espírito Santo (v. 13; redenção aplicada); “nele” obtemos uma herança futura (v. 11; redenção consumada). Portanto, não há um momento da nossa salvação que não venha da esfera de união com Cristo. Isso garante que, embora os momentos de redenção sejam distintos, eles são inseparáveis.
Seu ímpeto pastoral
Dois estímulos pastorais surgem da doutrina da expiação definida baseada na Bíblia e teologicamente sintetizada. Primeiro, apesar dos protestos da oposição, a expiação definida não rouba a segurança pessoal do crente; em vez disso, ela a fundamenta. Quando Jesus morreu na cruz, nós estávamos em sua mente. Como Martinho Lutero comentou, “a doçura do evangelho é encontrada nos pronomes pessoais: ‘o Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim’ (Gl 2.20)”. Segundo, ao contrário do que algumas pessoas argumentam, a expiação definida não acaba com o desejo pelo evangelismo e por missões; em vez disso, ela o fornece. Se é verdade que Cristo morreu por todas as pessoas sem distinção — que ele fez expiação por todo tipo de pessoa: rico, pobre, homem, mulher, asiático, africano, europeu, etc. — como a fé reformada sempre sustentou, então as missões se tornam um empreendimento emocionante e recompensador. Já que Cristo definitivamente resgatou pessoas para Deus de toda tribo, língua, povo e nação, alguns de cada um destes certamente crerá no evangelho (Ap 5.9). Expiação definida, portanto, não é um obstáculo para evangelismo e missões; se é algo, com certeza é um impulso.
Publicado originalmente em Ligonier Ministries.
Tradução: Alex Motta. Revisão: Renan A. Monteiro.