Eu havia acabado de chegar ao Brasil, depois de dois anos estudando a Bíblia em meio às Montanhas Rochosas, quando deparei com um dos maiores desafios da minha vida: encarar a dura realidade de ver minha mãe com metástase e meu avô com Alzheimer. Minha conversão a Cristo havia ocorrido pouco mais de dois anos antes e, só mais tarde, eu entenderia que a imersão nas Escrituras, longe de tudo o que me era familiar, foi crucial para me ajudar a enfrentar esses tempos difíceis — como a morte de pessoas a quem eu muito amava.
Foi durante um dia de saudade da minha mãe, então recém-falecida, que me lembrei de pessoas que também estariam sentindo sua falta. Sem saber o motivo, recordei-me de um dos amigos da família — o cabeleireiro que, havia muitos anos, a atendia e que conheceu a mim e meus irmãos ainda pequenos. Notei que ele estivera no velório dela e, então, resolvi fazer-lhe uma visita.
Encurtando uma longa história, dessa visita, surgiu uma boa amizade para ambos. Afinal, companhia agradável e respeitosa em momentos bons e maus é uma dádiva! E, em uma de nossas conversas, fui surpreendida por uma fala dele: “Quero te falar uma coisa e te dar o direito de encerrar nossa amizade aqui”. Assustei-me e ele prosseguiu: “Estou muito feliz com nossa amizade. Eu era amigo da sua mãe, e contar com sua companhia me faz muito bem. Mas preciso te dizer que, apesar de passarmos bons momentos juntos, depois que eu te deixo em casa, Andréa, saio com homens. Todo mundo na cidade sabe disso, mas você é crente, tem um testemunho a zelar, e ninguém vai entender o que você faz aparecendo nos lugares com um cara como eu. Além disso, se falarem qualquer coisa sobre você, vou ‘virar muito macho’ para te defender. Então, quero que esteja livre para encerrar nossa amizade, e eu vou entender”.
Ao ouvir essas palavras, quem não entendeu nada fui eu! Sondei meu coração, tentando discernir algum mal em nossa amizade. Não identifiquei nada que pudesse desonrar a Deus, seus princípios, minha família ou igreja. Aliás, nossas conversas sempre giravam em torno de assuntos que nos edificavam bastante. O respeito dele por mim era tanto que, em situação alguma, colocava minha fé e conduta sob ameaça. Foi, então, que descartei a possibilidade de encerrar nossa amizade e lhe disse: “Agora, quem quer compreender o que você vive sou eu!”. E me coloquei à sua disposição, pois me dei conta de que a vida dele era marcada por uma dualidade que o angustiava brutalmente. Fiquei sem entender…
Se eu disser que, em resposta à minha solicitação, ele me contou detalhes de seus encontros, estaria mentindo.
Sua consideração por mim era tanta que ele não tinha coragem de compartilhar nada sobre o que vivenciava nos envolvimentos, mas eu observava o saldo dessa situação: a “ressaca moral” e o vazio interior drenando a vitalidade dele. O curioso é que não era nada vindo de fora que o incomodava — como muitos enfrentam, em relação a preconceito e outras expressões de violência. Ele era muito amado pela família, repleto de amigos e altamente respeitado como profissional. No entanto, vivia uma tensão interna que o fazia oscilar como um barco sem rumo em meio a um mar revolto.
Testemunhar seu sofrimento cortava minha alma… Antes de eu conhecer Cristo, ele o conheceu. Antes de eu meditar na Bíblia, ele o fez. Antes de eu ir ao campo missionário, ele foi. Mas, naquele momento, ele estava definhando bem diante de mim — sem paz, sem igreja, sem pastor e sem direção. Em suas palavras: “Não piso mais na igreja… Cansei de ser metralhado pelos crentes!”. Mesmo assim, continuava lendo a Bíblia, falando com Deus e recebendo a visita das “irmãs do coque”, que oravam com e por ele.
Na tentativa de ajudar, fiz uma varredura em tudo o que havia estudado sobre sexualidade ou temas afins — seja na igreja, no seminário, na faculdade ou na vida. Para minha surpresa, não me recordei de nenhum conteúdo que pudesse elucidar o dilema que ele vivia. Não quero dizer com isso que não houvesse material ou ministério abordando a temática. Eu é que não os conhecia e, então, passei a orar a Deus pedindo que o ajudasse — e que, se quisesse, poderia me usar, embora eu não soubesse como.
Em um dado momento, ele desapareceu! Foram dias sem notícias, e seu súbito sumiço preocupou a todos que o amavam.
Que angústia… Felizmente, depois de um tempo que parecia sem fim, ele atendeu minha ligação. Quase não reconheci sua voz, tamanha a tristeza contida nela, e me disse: “Estou dentro de um ônibus, mudando de estado. Acordei de mais uma tentativa frustrada de suicídio. Nem para morrer, eu presto!”. A ligação precisou ser encerrada, pois estava na estrada. Depois disso, fazer o quê?!
Orei. Eram tantos os questionamentos sobre Deus, fé e sexualidade encharcando meu coração que foi uma oração curta, sem firula alguma para tentar impressionar a Deus: “Senhor, das duas possibilidades, uma é a verdade: ou o Senhor mentiu sobre Jesus dar conta do recado sobre nós, e não dá, ou nós não entendemos o recado!”. Então, parei e pensei: “‘Deus não é homem, para que minta; nem filho de homem, para que se arrependa’ (Nm 23.19). Além disso, não tenho fé para crer que o sangue de Jesus não dê conta de nós, porque ele garantiu, na cruz, que tudo ‘está consumado’ (Jo 19.30). Então, só me resta concluir que não entendemos como aplicar o que Jesus conquistou na cruz na área da sexualidade”.
Depois dessa, surgiu a segunda oração — e, depois dela, minha vida não foi mais a mesma: “Deus, peço que me ensine sobre sexualidade, porque não me conformo em perder meus amigos que buscam a igreja para saber como viver e não encontram direção. Não me conformo que o diabo tenha a satisfação de ver a igreja de Jesus sem sabedoria na área da sexualidade para aqueles que a procuram”.
Agora, cá estamos nós, mais de vinte anos depois, e esta é a primeira vez que escrevo sobre esse episódio. Revisitar essa história, ainda hoje, faz meu coração se encher de temor e tremor. Somos todos muito frágeis e, por isso, moldados por muitas mãos. Antes de todas as mãos que possam ter ajudado ou ferido você, ensinado ou confundido, alimentado ou se alimentado de você, havia Jesus! Lembre-se: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez. A vida estava nele e a vida era a luz dos homens. A lua resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela” (Jo 1.1-5). Antes do mal, havia Jesus — e ele é bom!
Tenho aprendido que os episódios que vivemos desde o dia em que nascemos, embora necessários para nossa compreensão, não dizem tudo sobre quem somos. Antes de nascermos, já havia uma grande história em curso: a história de Deus e da humanidade. A realidade não surgiu do acaso, nem é destituída de propósito. Por trás dos céus e da terra, existe Deus, soberano sobre tudo. Ele não só existe, como é o Criador — e se envolve com sua criação.
Por essa razão, considero crucial que a abordagem cristã sobre sexualidade seja fundamentada nos relatos da Criação (Gn 1 e 2), da Queda (Gn 3.1-7), da Redenção (Gn 3.8-24) e da Consumação (Ap 21.1-5). É nessa história maior que encontramos o eixo definidor para a interpretação e a condução das histórias de cada um de nós. Sem ela, tenderemos a hiperfocar em fragmentos da verdade — fragmentos insuficientes para nortear a verdade sobre nós mesmos.
A urgência por autoconhecimento não deve atropelar Deus. Se o fizermos, perderemos a chance de desfrutar a pessoa chamada Caminho, Verdade e Vida (Jo 14.6) e de responder bem a uma das perguntas mais importantes para cada um de nós: “Quem sou eu?”. Quem se atreve a mergulhar dentro de si e/ou do outro em busca de autoconhecimento acaba sendo atropelado pela inconstância dessas fontes, sobretudo quando comparadas à inerrância, à suficiência e à superioridade do conhecimento do Alto.
Quando leio Êxodo 3, que nos remete ao deserto no qual Moisés pastoreava o rebanho de seu sogro, percebo que Deus chamou Moisés pelo nome, sabia tudo sobre ele e seu povo, e tinha direção — em escala individual e coletiva — rumo à Terra Prometida. Quem sabia de tudo era Deus, e não Moisés. Aliás, ao ouvir a ordem divina para libertar o povo do Egito e prestar culto a Deus no deserto, a dúvida que surgiu em Moisés foi sobre sua própria competência para executar a tarefa. Sua pergunta foi direta: “Quem sou eu…?” (Êx 3.11). Mas a resposta de Deus foi surpreendente: “Eu serei contigo…” (Êx 3.12). Ao perguntar sobre si, Moisés ouve sobre Deus! Encontramos aí uma aplicação do princípio bíblico que nos ensina: o autoconhecimento é resultado do conhecimento do Alto.
Tenho notado que algumas pessoas relutam em reconhecer que o autor de sua identidade é Deus e se apegam, com devoção, às concepções que têm sobre si mesmas, baseadas em suas próprias interpretações. Porém, acredito que a conduta bíblica recomendada para nos aproximarmos de assuntos de ordem criacional (como é o caso da identidade e da sexualidade) deve ser como a de Moisés: ele cobriu o rosto em temor, “porque temeu olhar para Deus” (Êx 3.6). Não se engane! Não devemos nos achegar ao que Deus criou de qualquer forma, mas, sim, nos termos de Deus. Que nos aproximemos, então, por meio do Caminho — que é Cristo — certos de que não existe verdade absoluta sobre identidade e sexualidade à parte de Deus, mas somente a partir dele.
A importância de abordar a questão da identidade em um livro sobre “vida dupla” reside no fato de que, se não soubermos, verdadeira e consistentemente, quem somos, não saberemos quanto valemos, nem teremos condições de estabelecer alvos e limites saudáveis nos relacionamentos e nas demais áreas da vida. Ou seja, quem não conhece a Deus intimamente não tem referência para se conhecer de forma honesta e profunda, e tende a se procurar nos outros. O agravante é que, em um mundo erotizado como o nosso, há grandes chances de confundirmos a fome por identidade em Deus com o êxtase proveniente de experiências de ordem afetiva e sensorial. A “vida dupla” é o resultado de quem se afastou da pessoa chamada Vida.

Este artigo é um trecho adaptado e retirado com permissão do livro Vida Dupla: descendo aos porões da intimidade sexual, de Andréia Vargas, Editora Fiel (em breve).