quinta-feira, 26 de dezembro
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Intimidade, não religiosidade

Chamados a um relacionamento pessoal com Deus

A doutrina da criação também implica que somos chamados a um relacionamento de intimidade com Deus, não baseado em mera religiosidade. Pessoalmente, tenho muita dificuldade em tratar o cristianismo como religião. Religião pressupõe sistema. Religião pressupõe fazer algo. Até a própria palavra tem a conotação de se religar com o sagrado, de se religar com Deus. Mas cristianismo não é religião (Karl Barth; Dietrich Bonhoeffer). No passado, na Idade Média e na Renascença, religião era sinônimo de cristianismo. O islã era o inimigo, a potência expansionista, imperialista. A única religião reconhecida era cristianismo, uma religião europeia. Mas hoje tudo mudou. Hoje vivemos numa sociedade altamente plural e antagônica à fé cristã.

Hoje temos cultos dos mais diversos tipos, e todos eles pressupõem que o ser humano pode construir a sua Torre de Babel, pode chegar à divindade por suas próprias capacidades. Mas qual é o final do esforço religioso da Torre de Babel? Confusão. Bagunça. Deus precisa descer, e Deus de fato desce. Em Gênesis 11.1-9, seres humanos arrogantes estavam construindo uma escada para os céus: “Vinde, edifiquemos para nós uma cidade e uma torre cujo tope chegue até aos céus e tornemos célebre o nosso nome, para que não sejamos espalhados por toda a terra”. Deus desceu e confundiu estas pretensões idolátricas: “Vinde, desçamos e confundamos ali a sua linguagem, para que um não entenda a linguagem de outro. Destarte, o Senhor os dispersou dali pela superfície da terra; e cessaram de edificar a cidade”. Aquele zigurate, um tipo de templo construído na forma de pirâmides terraplanadas, foi abandonado, um monumento patético à pretensão religiosa.

Em Gênesis 28.10-22 Deus faz uma escada: “Eis posta na terra uma escada cujo topo atingia o céu; e os anjos de Deus subiam e desciam por ela. Perto dele estava o Senhor e lhe disse: Eu sou o SEnhOR, Deus de Abraão, teu pai, e Deus de Isaque. A terra em que agora estás deitado, eu ta darei, a ti e à tua descendência”. Jacó simplesmente se deitou, dormiu e não fez nada. Colocou a cabeça na pedra, como um tipo de travesseiro e, enquanto dormia, Deus por meio de uma escada desce a ele – dois tipos de escada, duas imagens que distinguem as falsas pretensões religiosas da fé pactual. Cristianismo não é esforço religioso. Cristianismo não é tentativa de agradar a Deus por meio de religião. Nós cremos em Deus “Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra”. Cristianismo é intimidade, é amizade com Deus. Cristianismo é relacionamento pessoal com o Deus vivo.

Deus não lida conosco de forma impessoal. O Deus que cremos e confessamos é o Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra, que nos trata como pessoas. Ele chama cada um de nós por nome. E Deus usa nossa história pessoal como a massa de onde ele moldará aquilo ao qual ele nos chama a ser: “nova criação” (2Co 5.17,  A21).

Se nos reunirmos com um grupo de cristãos, e gastarmos um tempo falando sobre nossa conversão, contando nossos testemunhos de conversão pessoal, vários nesta reunião teriam uma surpresa bonita. Não há uma experiência de conversão que seja igual à outra. A noção popular, conectada com a heresia pelagiana, de “aceitar Jesus”, é uma simplificação do drama da conversão – e que não tem respaldo bíblico. Deus nos chama pelo nome. Cada um de nós é chamado pelo nome. Deus nos trata como pessoas, como homens e mulheres criados à sua imagem e semelhança. “Creio em Deus, Pai Todo-Poderoso, criador do céu e da terra”. Esse Deus não se satisfaz com mais religião. Antes, a religião é idolátrica. Deus vem a nós chamando-nos, a cada um de nós, pelo nome. Por isso, nenhum de nós precisa se envergonhar da sua história pessoal. Nenhum de nós precisa tentar apagar detalhes da sua história pessoal. Muitos entre nós já caíram em pecado, já sofreram muito, perderam entes queridos, ficaram sem chão em algum momento da sua vida, fizeram escolhas equivocadas, traíram, foram traídos – já semearam o erro na igreja, dividiram-na, traíram a confiança dos membros da igreja. Nossa tendência é passar a borracha e fingir que tal lembrança dolorosa, vergonhosa ou desagradável nunca aconteceu. Não precisamos fazer isso. Mesmo as nossas escolhas equivocadas ou pecaminosas são o campo onde Deus atua. É o barro que Deus está trabalhando. Que lembremos: Deus é pai dos que creem nele, portanto nosso relacionamento com ele não é baseado em religiosidade, mas em um relacionamento pessoal.

Sem que haja mérito em nós, Deus nos faz seus filhos. E esse é um ponto tão básico na fé cristã que precisamos nos relembrar dele sempre e sempre. Todos somos criaturas, mas aqueles que o receberam, que confessam “creio em Deus Pai Todo-Poderoso, criador do céu e da terra”, esses são tornados filhos, por livre graça. Hoje se convencionou dizer que todo mundo é filho de Deus, e tal linguagem ganhou até mesmo os cristãos. Mas, em oposição aos clichês, nosso Deus tem prazer em tornar pecadores filhos, por pura graça; na verdade, os piores pecadores são agora incluídos nesta comunidade da graça (1Co 1.26-29):

“Irmãos, reparai, pois, na vossa vocação; visto que não foram chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre nascimento; pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são; a fim de que ninguém se vanglorie na presença de Deus.”

Então, se de um lado a fé cristã não é um esforço religioso, mas um relacionamento pessoal mediado por Cristo, nós somos colocados num novo status: Filhos e filhas amados por Deus. Não se conhece uma religião, um sistema político que tenha um ensino similar. O Deus Altíssimo, o Deus Vivo vem a nós e nos torna filhos. Adota-nos como filhos.

O clássico filme Ben-Hur, de 1959, e ambientado por volta do ano 30 da era cristã, tenta ilustrar esta rica realidade. O nobre judeu Ben-Hur é vendido como escravo por causa de uma conspiração ocorrida em Jerusalém. Ele é enviado para ser um remador, numa galé romana, e esta se envolve numa batalha naval contra piratas no Mar Mediterrâneo. Ainda que os romanos vençam, a galé onde Ben-Hur é o remador afunda, mas ele salva o cônsul romano, Quintus Arrius, que, em recompensa, o adota como filho. Este episódio, retirado do filme, é uma tentativa de ilustrar, sem sucesso, o Deus que nos adota como filhos sem mérito algum em nós. Deus nos concede um novo status sem que mereçamos isso. “Creio em Deus, o Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra”.

Relacionamentos marcados por humildade de amor

O ensino da paternidade de Deus coloca todos os cristãos em igualdade. Não há hierarquia entre cristãos. Não há cristãos de primeira categoria e cristãos de segunda categoria, como era o ensino típico da Idade Média, com a distinção entre clero e laicato, e dos movimentos de santidade protestantes, com seu ensino de “crentes carnais” e “crentes espirituais”. Todas as divisões que querem ser impostas aos cristãos são estilhaçadas aqui. Todos somos colocados no mesmo nível. Somos todos irmãos e irmãs. Somos chamados a suportar uns aos outros, sendo pacientes, longânimos, em outras palavras, tolerando uns aos outros. Cristo se torna nosso irmão mais velho, e somos todos irmãos e irmãs. Toda a ideia de orgulho e de soberba é despedaçada aqui. Somos chamados a ser humildes uns com os outros, a amar uns aos outros, a servir uns aos outros, a conceder honra uns aos outros. Não há nenhuma noção aqui de hierarquia, de estrutura ou de sistema. Todas essas noções tão presentes no cristianismo atual são destruídas pelo ensino de Deus como Pai.

Então, aquele que confessa Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra, entra em um relacionamento marcado por amor mútuo e humildade. E um detalhe importante precisa ser destacado: O amor que é exigido dos cristãos, na Escritura, não é mero sentimento. O sentimento é importante; sentirmos a falta de pessoas, querermos passar mais tempo na igreja porque amamos os irmãos e queremos ficar com eles, mas a ideia de amor na Escritura é um amor ativo, um amor que tem alegria em demonstrar de forma concreta e sacrificial esse amor, que deve unir aqueles que confessam Deus, o Pai Todo-Poderoso, criador do céu e da terra.

O artigo acima é um trecho extraído com permissão do livro Credo dos Apóstolos, de Franklin Ferreira, Editora Fiel.

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Autor: Franklin Ferreira

Franklin Ferreira é bacharel em Teologia pela Universidade Mackenzie e mestre em Teologia pelo Seminário Batista do Sul (RJ). Diretor do Seminário Martin Bucer e consultor acadêmico de Edições Vida Nova, Franklin é co-autor do livro “Teologia Sistemática” e autor dos livros “Servos de Deus” (Fiel) e “A Igreja Cristã na História” (Vida Nova).

Ministério: Editora Fiel

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A Editora Fiel tem como missão publicar livros comprometidos com a sã doutrina bíblica, visando a edificação da igreja de fala portuguesa ao redor do mundo. Atualmente, o catálogo da Fiel possui títulos de autores clássicos da literatura reformada, como João Calvino, Charles Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, bem como escritores contemporâneos, como John MacArthur, R.C. Sproul e John Piper.

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