“Tendes a experiência de que o Senhor é bondoso.”
Um chamado para a vida
Tenho passado quase toda a minha vida adulta incentivando pessoas a buscarem suprema satisfação em Deus.[i] Tenho argumentado que a fé salvadora em Jesus Cristo não produz somente o fruto de alegria, mas também é, ainda mais profundamente, ela mesma uma espécie de alegria. A fé salvadora significa ser satisfeito com tudo que Deus é por nós em Jesus.[ii] Tenho apreciado a maneira como George Müller[iii] – o grande soldado de oração e protetor de órfãos – disse que se aproximava da Bíblia: “Percebi mais claramente do que antes que o primeiro e fundamental negócio ao qual eu deveria atender cada dia era ter a minha alma feliz no Senhor”.[iv] Embora fosse um homem completamente conhecedor das dou-trinas e tivesse um forte compromisso com a teologia reformada,[v] Müller nunca se contentava em achar doutrina na Bíblia. A menos que algum obstáculo incomum o impedisse, ele não se levantaria de seus joelhos enquanto ver não se tornasse desfrutar.
Verdadeira iluminação antes de afeições apropriadas
Sem dúvida, Müller concordava com seu contemporâneo e amigo Charles Spurgeon em que o ver precede o desfrutar. E devemos ler a Bíblia com uma busca diligente do entendimento correto antes que existam emoções corretas.
Certamente, o benefício de ler tem de vir à alma pelo caminho do entendimento… A mente precisa ter iluminação antes que as afeições possam se levantar apropriadamente em direção a seu objeto divino… Tem de haver conhecimento de Deus antes que possa haver amor a Deus. Tem de haver um conhecimento das coisas divinas, conforme elas são reveladas, antes que possa haver um gozo delas.6
Sim, a iluminação precede, fundamenta e molda as afeições. Entretanto, George Müller concordava também com John Owen em que as “fascinantes alegrias e exultações do espírito que inúmeros mártires fiéis do passado” provaram, vieram “por meio de visão da glória de Cristo”.[vi] Portanto, nem Owen, nem Spurgeon, nem Müller eram satisfeitos com “meras noções” sobre a glória de Cristo. Eles liam sua Bíblia não somente para ver, mas também para desfrutar. Owen disse o seguinte:
Se nos satisfazemos em meras noções e especulações sobre a glória de Cristo revelada doutrinariamente para nós, não acharemos nenhum poder transformador ou eficácia comunicada a nós por tais doutrinas… Onde a luz deixa as afeições para trás, ela termina em ateísmo e formalidade; e, onde as afeições excedem a luz, elas afundam no nevoeiro de superstição, deleitando-se em imagens, figuras ou coisas semelhantes.[vii]
Os perigos de intelectualismo e emocionalismo
Estes homens entenderam – e devemos entender – os perigos de intelectualismo e emocionalismo. O intelectualismo enfatiza o uso do intelecto e suas descobertas sem o correspondente despertamento de todas as emoções que essas descobertas tencionam desencadear. O emocionalismo enfatiza o estímulo vigoroso das emoções que estão desligadas da verdade como seu fundamento e guia. John Owen nos dá conselho sábio a respeito de como as emoções do coração devem ser arraigadas em e moldadas pela verdade que a mente vê na Escritura.
Quando o coração é lançado realmente no molde da doutrina que a mente abraça; quando a evidência e a necessidade da verdade permanecem em nós; quando não somente o sentido das palavras ficam em nossa mente, mas também o sentido das coisas permanece em nosso coração; quando temos comunhão com Deus na doutrina pela qual contendemos, então somos protegidos pela graça de Deus contra todos os ataques dos homens.[viii]
Eu amo esta visão de como buscamos e contendemos pela verdade. “Ter comunhão com Deus na doutrina pela qual contendemos” não é uma linda perspectiva?” Quão diferentes seriam a nossa leitura da Bíblia e nossas discussões, se nos recusássemos a falar de nossos discernimentos até que fossem adocicados pela comunhão de nossa alma com Deus.
O alvo deste capítulo: a busca do desfrutar
O objetivo deste capítulo é que, em todo o nosso esforço para ver mais e mais da glória de Deus, estejamos sempre almejando, por meio desse ver, o desfrutar o Deus que vemos. Ou seja, estamos sempre almejando experimentar em nosso coração afeições espirituais despertadas pela visão espiritual da verdade em nossa mente. Adotamos para a nossa leitura da Bíblia o mesmo alvo que Jonathan Edwards tinham para a sua pregação, quando disse:
Acho que tenho o dever de elevar as afeições de meus ouvintes tão altamente quanto eu puder, contanto que não sejam afetados com nada menos do que a verdade e com afeições que não sejam discordes à natureza daquilo com que são afetados.[ix]
Lemos nossa Bíblia para “elevar as afeições”. Sim, mas almejamos ser afetados pela verdade. E almejamos que nossas afeições se harmonizem com a natureza da verdade que vemos.
Tenho proposto que nosso alvo supremo em ler a Bíblia – de acordo com a própria Bíblia – é que a dignidade e a beleza infinitas de Deus sejam exaltadas através da adoração fervorosa e eterna da noiva de Cristo, comprada por sangue, formada de pessoas procedentes de todo povo, língua, tribo e nação. Para explicar e testar esta proposta pela Escritura, estamos focalizando seis de suas implicações (ver o quadro no começo do capítulo). O foco deste capítulo e do seguinte é a quarta implicação: em todo o nosso ver, nosso alvo deve ser desfrutar a excelência de Deus acima de todas as coisas. O ensino desta quarta implicação é que ver a glória de Deus, quando lemos a Bíblia, nunca deveria ser um fim em si mesmo. Lemos para ver, e vemos para desfrutar. Buscamos discernimento a fim de gozar. Buscamos conhecimento a fim de amar. Buscamos doutrina para termos deleite. Os olhos do coração servem às afeições do coração.
Desfrutar o amargo com o doce
Uma correção é necessária imediatamente para esclarecer o significado de desfrutar. Tenho tratado desfrutar como se fosse algo totalmente positivo – gozar, amar e deleitar. A razão é que esta é a maneira como a glória peculiar de Deus faz a sua obra transformadora mais profunda. Nós a vemos. Ficamos profundamente satisfeitos com ela. E, por esta satisfação, somos mudados na raiz de nosso ser.
Mas também é claro, com base na Escritura, que Deus usa não somente emoções prazerosas em resposta a vermos a sua glória, mas também emoções dolorosas. Estas procedem também de vermos a glória de Deus na Escritura. E têm igualmente o propósito de transformar, à sua própria maneira. São destinadas a realizar mudança de uma maneira mais indireta, afastando-nos de pecados destrutivos, na esperança de que sejamos atraídos positivamente pela satisfação superior da santidade de Deus.
Deus não cessa de ser glorioso quando disciplina seus filhos. No entanto, esta glória nos leva primeiramente à tristeza. E, depois, por meio de tristeza e arrependimento, a alegria.
O Senhor corrige a quem ama e açoita a todo filho a quem recebe… Toda disciplina, com efeito, no momento não parece ser motivo de alegria, mas de tristeza; ao depois, entretanto, produz fruto pacífico aos que têm sido por ela exercitados, fruto de justiça (Hb 12.6, 11).
O alvo de Deus é o “fruto pacífico de justiça” e não tristeza. Entretanto, ele pode causar tristeza por causa da prazerosa experiência de paz.
Deus não cessa de ser glorioso quando diz àqueles que estão enredados no pecado: “Afligi-vos, lamentai e chorai. Converta-se o vosso riso em pranto, e a vossa alegria, em tristeza. Humilhai-vos na presença do Senhor, e ele vos exaltará” (Tg 4.9-10). O alvo de Deus é que desfrutemos da experiência de “ele vos exaltará”. Mas, no caminho para isso, a estratégia de Deus pode ser repreensão. É conveniente. Juntamente com todos os caminhos e propósitos de Deus, isso também faz parte da sua glória peculiar. Pode exceder a nossa compreensão, mas isto é algo que também devemos “desfrutar”. “Tende por motivo de toda alegria o passardes por várias provações, sabendo que a provação da vossa fé, uma vez confirmada, produz perseverança” (Tg 1.2-3). Há comidas que misturam de tal maneira o amargor e a doçura que tornam a doçura mais rica.
O que isto significa para a nossa leitura das Escrituras é que ver a glória de Deus pode não despertar, a princípio, a doçura de seu valor e beleza. Pode despertar as tristezas de pecado não esquecido e da corrupção remanescente em nosso coração.“Desfrutar” esta verdade dolorosa significa aceitá-la, em vez de negá-la ou distorcê-la. Significa ser grato e permitir que a repreensão e a correção tenham seu efeito completo em contrição e humildade. Significa também permitir que nos levem às misericórdias de Deus e ao doce alívio que vem de sua graça salvadora em Cristo.
Este artigo é um trecho adaptado com permissão do livro Lendo a Bíblia de modo sobrenatural, de John Piper, Editora fiel.
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[i] Ver esp. John Piper, Desiring God: Meditations of a Christian Hedonist, rev. ed. (Colorado Springs: Multnomah, 2011).
[ii] John Piper, Future Grace: The Purifying Power of the Promises of God (Colorado Springs: Multnomah, 2012). Quanto a um breve argumento sobre este ponto, ver http://desiringgod.org/ articles/love-is-the-main-thing-in-saving-faith (acesso em 1o de março de 2016).
[iii] Quanto à minha análise e apreciação da vida e ministério de Müller, ver John Piper, A Camaraderie of Confidence: The Fruit of Unfailing Faith in the Lives of Charles Spurgeon, George Müller, and Hudson Taylor (Wheaton, IL: Crossway, 2016), 63-83.
[iv] George Müller, Autobiography of George Müller: A Million and a Half in Answer to Prayer
(London: J. Nisbet, 1914), 152.
[v] George Müller, A Narrative of Some of the Lord’s Dealings with George Müller, vol. 1 (London: J. Nisbet, 1860), 45-48.
[vi] John Owen, The Works of John Owen, ed. William H. Goold, vol. 1 (Edinburgh: T&T Clark, n.d.), 399.
[vii] Ibid., 400-401.
[viii] C. H. Spurgeon, The Metropolitan Tabernacle Pulpit Sermons, vol. 25 (London: Passmore & Alabaster, 1879), 627.
[ix] Jonathan Edwards, The Great Awakening, rev. ed., ed. Harry S. Stout e C. C. Goen, vol. 4, The Works of Jonathan Edwards (New Haven, CT; Yale University Press, 2009), 387.