E a narrativa do Êxodo
Muitos dos incidentes relatados no livro de Êxodo e, em particular, na vida de Moisés refletem temas de enredo comuns no Antigo Oriente Próximo. Por exemplo, um desses temas encontrados em várias culturas da região, incluindo o Egito, é uma narrativa de nascimento onde o bebê enfrenta ameaça de morte, mas sobrevive e cresce para se tornar um líder/libertador do seu povo. No Antigo Oriente Próximo, esse enredo é antigo e familiar. Ele aparece na Mesopotâmia, no Egito e em Hati. Sua primeira aparição ocorre no final do terceiro milênio a.C. Como veremos, essas histórias contêm paralelos impressionantes com a narrativa de nascimento de Moisés relatada em Êxodo 2.1-10. A questão é: como entendemos o relacionamento entre os dois relatos? “Há alguma dependência entre eles? O autor bíblico não estaria apenas tomando emprestado da literatura um tema bem conhecido nas culturas vizinhas e empregando-o para os seus próprios propósitos? O conteúdo bíblico seria lenda, mito ou história?”
Muitos estudiosos acreditam que o relato do nascimento de Moisés está claramente relacionado à Lenda de Sargão, proveniente da Mesopotâmia. Embora os dois relatos compartilhem alguns paralelos, estes, na verdade, parecem ser bem gerais e fracos. Em vez disso, dever-se-ia procurar por conexões com a literatura do Egito, já que a narrativa bíblica do nascimento de Moisés acontece lá. Gary Rendsburg afirma corretamente: “a natureza da literatura bíblica sugere que não deveríamos olhar para a Mesopotâmia para explicar uma característica de uma história ambientada no Egito, e sim para o próprio Egito”. De fato, arqueólogos descobriram um texto no Egito, comumente conhecido como o Mito de Hórus, que contém o tema de enredo da “criança desprotegida”.
A história é um conto que acontece no domínio dos deuses. O deus Set, divindade do caos e da guerra, assassina Osíris, deus que governa o mundo inferior. Ísis, esposa de Osíris, responde ressuscitando Osíris dos mortos e engravidando dele. Ela dá à luz um filho chamado Hórus “nos pântanos de Akhmim”. Essa é uma situação perigosa, porque, se Set ouvisse falar do nascimento de Hórus, mataria a criança. Ísis e a criança conseguem escapar de Set e se escondem nos pântanos do Delta. Lá, Ísis esconde Hórus em moitas de papiro, colocando-o em um cesto de papiro. Set tenta matar a criança, mas Hórus sobrevive, cresce e, no fim do texto, está pronto para lutar com Set, tornando-se o líder dos deuses.
O relato bíblico do nascimento de Moisés ecoa a narrativa da história do nascimento de Hórus.
O relato do nascimento de Moisés reflete os costumes e crenças egípcios. Ele inclui até mesmo o vocabulário egípcio. Por exemplo, Joquebede coloca Moisés em “um cesto de junco” (Êx 2.3), uma designação egípcia que identifica o utensílio de papiro. O relato simplesmente tem o Egito gravado por todas as suas partes.
Gary Rendsburg acertadamente afirma que “o resumo da evidência é claro: não é surpresa que uma história bíblica ambientada no Egito ecoe um mito bem conhecido e popular do Egito”. A conexão entre as duas histórias é inegável, mas a questão é: como os dois relatos se relacionam entre si? Por que o autor bíblico traçaria um paralelo proposital entre os dois? Ele pode ter empregado conscientemente esse eco de um mito egípcio bem conhecido para gerar polêmica. O que não passava de um mito no Egito aconteceu de verdade para Israel no Egito. Em outras palavras, o autor pega um mito pagão famoso e o vira de cabeça para baixo, a fim de ridicularizar o Egito, escarnecer dele e, então, destacar a verdade da história bíblica.
Outro exemplo é a separação das águas do Mar Vermelho narrada em Êxodo 14.13-31. Os antigos egípcios tinham sua própria história de como um sacerdote dividiu uma grande massa de água. O conto é parte do Papiro Westcar, que descreve uma série de milagres de vários magos durante a terceira e a quarta dinastia do Antigo Egito (ca. de 2649–2465 a.C.).22 O texto foi escrito mais tarde, entretanto, e talvez sua real datação remonte ao século XX a.C. De qualquer forma, ele precede o evento do êxodo em centenas de anos. O papiro conta a história de um entediado Faraó Seneferu, o qual, então, convoca um de seus sumos sacerdotes chamado Djadjaemonkh para aconselhá-lo sobre como encontrar algum prazer. Djadjaemonkh sugere que o rei saia em um passeio de barco em um lago acompanhado por muitas mulheres bonitas e nuas, as quais remariam. O Faraó concorda e fica feliz com a expedição, até que uma das mulheres deixa cair no lago seu amuleto em formato de peixe. A mulher não aceita um substituto, e, então, Faraó chama Djadjaemonkh para resolver o problema com suas artes ocultas. O sacerdote pronuncia alguns encantamentos e, assim, divide o lago, colocando um lado em cima do outro. Ele encontra o amuleto em cima de um fragmento de cerâmica e o recupera para a mulher. Finalmente, ele conjura mais encantamentos e coloca a água do lago de volta em sua posição original.
A narrativa bíblica da separação do Mar Vermelho tem resquícios dessa história egípcia. Contudo, por que o autor bíblico traçaria um paralelo entre os dois contos? Talvez ele critique os magos egípcios e seus encantamentos. Embora o sacerdote-mor egípcio que lê os encantamentos possa ter separado as águas de um lago para recuperar um amuleto valioso, Deus, por intermédio de Moisés, separa todo o Mar Vermelho para libertar seu povo da escravidão no Egito. Quem demonstra poder maior?
- O termo “tema de enredo” é tomado de Thomas L. Thompson e Dorothy Irvin, “The Joseph and Moses Narratives”, em Israelite and Judaean History, ed. John H. Hayes e J. Maxwell Miller (Filadélfia: Westminster, 1977), p. 183; eles definem o termo como “um elemento de enredo que move a história um passo adiante”.
- John D. Currid, Against the Gods: The Polemical Theology of the Old Testament (Wheaton: Crossway, 2013), p. 75.
- A literatura sobre essa conexão é vasta. Veja, e.g., Brevard S. Childs, “The Birth of Moses”, JBL 84, n. 2 (1965): 109-22; e Benjamin R. Foster, “The Birth Legend of Sargon of Akkad”, em COS, 1.461.
- Gary A. Rendsburg, “Moses as Equal to Pharaoh”, em Text, Artifact, and Image: Revealing Ancient Israelite Religion, ed. Gary M. Beckman e Theodore J. Lewis, BJS 346 (Providence: Brown Judaic Studies, 2006), p. 201-19.
- Donald B. Redford, “The Literary Motif of the Exposed Child”, Numen 14, n. 3 (1967): 209-28.
- Daniel S. Richter, “Plutarch on Isis and Osiris: Text, Cult, and Cultural Appropriation”, TAPA 131 (2001): 191-216. O relato de Plutarco é bem posterior, datando de cerca do final do século I d.C., mas, provavelmente, reflete um conteúdo bem anterior.
- Rendsburg, “Moses as Equal to Pharaoh”, p. 207. Veja Aylward Manley Blackman, The Story of King Kheops and the Magicians (Reading: J. V. Books, 1988); e Miriam Lichtheim, ed. e trad., The Old and Middle Kingdoms, vol. 1 de Ancient Egyptian Literature (Berkeley: University of California Press, 1975), p. 215-22.