segunda-feira, 23 de dezembro
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Lucas-Atos

Lucas-Atos ou Lucas e Atos?

É canonicamente legítimo separar ambos?

Dado que todos reconhecem que o mesmo autor escreveu Lucas e Atos, devemos considerar que esses dois livros têm propósitos, temas e ênfases diferentes ou iguais? Ou seja, os dois livros devem ser considerados de forma separada, como Lucas e Atos? Ou devem ser vistos como um só livro, Lucas-Atos? Existem outras opções que combinem essas duas alternativas?

No mundo acadêmico, há uma ênfase significativa em vê-los como um livro, Lucas-Atos. Portanto, avaliar Lucas separadamente de Lucas-Atos, como faço neste capítulo, seria impróprio. Essa tese de Lucas-Atos começou para valer com H. J. Cadbury, em 1927.[1] Um dos principais argumentos é que Lucas-Atos foi originalmente escrito como uma obra de dois volumes e só foi separado por razões pragmáticas — um rolo não poderia conter todo o trabalho. Essa visão foi confirmada na década de 1950 com o movimento, especialmente no estudo crítico, de ver o autor/editor de Lucas-Atos como um “teólogo”, em oposição a um historiador inconsistente.[2] A tese de Lucas-Atos foi ainda confirmada na década de 1980 pela ênfase acadêmica na “crítica narrativa”, que explorou as muitas conexões entre os dois livros, resultando na interpretação de Lucas-Atos como uma narrativa contínua.[3] Muitos estudiosos conservadores concordam com a tese de Lucas-Atos.[4]

No entanto, tem havido resistência a isso no mundo acadêmico crítico. Mikeal Parsons e Richard Pervo argumentam que “Atos é mais bem entendido como uma sequência, em vez de um segundo capítulo ou uma simples continuação”.[5] Eles recomendam a terminologia “Lucas e Atos” e querem que os estudiosos considerem os dois livros como tendo “duas narrativas muito distintas, as quais incorporam diferentes dispositivos literários, convenções genéricas e talvez até preocupações teológicas”.[6] Parsons e Pervo reconhecem que, no nível da “história”, há uma unidade significativa, mas reclamam que, ao contrário deles, outros estudiosos também veem unidade no nível do “discurso” (quanto ao modo e aos artifícios literários para se contar a história).[7] Além disso, eles observam, em Atos, diferenças teológicas, como a concessão de menos perdão.[8] Um estudo de 2003 de Andrew Gregory observou que a Igreja Primitiva, antes de Irineu, raramente lia Lucas e Atos como uma obra de dois volumes.[9] Alguns usaram isso para apoiar Parsons e Pervo, embora o próprio Gregory não os apoie.[10]

Acredito que o Evangelho de Lucas foi originalmente um livro separado, escrito vários meses ou anos antes de Atos. O Evangelho foi planejado inicialmente para circular sozinho. Além disso, ele claramente tem conexões de gênero com os outros três Evangelhos e enfatiza a pessoa e a obra de Jesus enquanto este esteve na terra. Portanto, é apropriado separar o Evangelho de Lucas de Atos na determinação de propósitos, gênero, ênfases e assim por diante. Desse modo, o status canônico de Lucas como um livro separado é legítimo.

Uma vantagem da separação é que as ênfases de apenas um dos livros talvez tendam a ser silenciadas caso alguém insista em todos os elementos da tese de Lucas-Atos. Por exemplo, o Evangelho de Lucas tem uma preocupação significativa com os desfavorecidos, mas essa preocupação é reduzida em Atos — pelo menos, estatisticamente. Se Lucas-Atos for considerado um, isso não reduziria nosso interesse nessa ênfase e afetaria nossas conclusões sobre ela?[11] Por outro lado, dentro da tese de Lucas-Atos, pode-se ter uma tendência a enfatizar excessivamente um tema porque ele aparece em ambos os livros. Tenho a propensão para acreditar que isso ocorre com estudiosos que enfatizam demais o tema do plano de Deus em Lucas-Atos, ao passo que subestimam levemente a pessoa e obra de Jesus.[12]

Por outro lado, Atos foi escrito para Teófilo e explicitamente faz referência a Lucas (At 1.1). Portanto, embora o livro de Atos possa ser lido isoladamente, devemos lê-lo com uma consciência muito real do Evangelho de Lucas. Além disso, uma vez que Atos foi escrito, o Evangelho de Lucas precisava ser lido em estreita associação com Atos, embora Atos potencialmente tivesse seus propósitos específicos e assim por diante. D. A. Carson e Douglas Moo observam bem: “O resultado é que, provavelmente, deveríamos considerar Lucas e Atos como dois livros separados que estão em estreita relação um com o outro […], além de considerar cada um por si, no que diz respeito à questão de gênero, estrutura, propósito e, até certo ponto, teologia.”[13]

Em suma, estou no campo de “Lucas e Atos”, mas um campo que vê conexões muito fortes e, ao mesmo tempo, nenhuma contradição entre os dois livros. Além disso, concluo que é canonicamente legítimo separar ambos. Se alguém afirma a inspiração divina das Escrituras, o “calor” gerado por esse tópico é um pouco atenuado. Cada livro da Bíblia tem o mesmo autor divino e é útil para interpretar todos os outros livros. Ou seja, quer se considere Lucas sozinho, quer se tome Lucas-Atos como um único livro, quer se estime Lucas como fortemente conectado aos outros três Evangelhos, quer se repute Atos como fortemente conectado às Epístolas Paulinas, todas essas alternativas são pouco importantes do ponto de vista hermenêutico, caso, em última análise, uma pessoa afirme que a Bíblia é um todo coerente escrito por um autor divino.

O artigo acima é um trecho retirado e adaptado com permissão do livro Introdução bíblico-teológica ao Novo Testamento, Robert J. Cara, editado por Michael J. Kruger, Editora Fiel (em breve).

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[1] H. J. Cadbury, The Making of Luke-Acts (Londres: Macmillan, 1927).

[2] O artigo de W. C. van Unnik é comumente citado a esse respeito, “Luke-Acts, A Storm Center in Contemporary Scholarship”, em Keck & Martyn, Studies in Luke-Acts, p. 15-32. Hans Conzelmann é normalmente citado como o principal estudioso desse assunto; veja seu The Theology of St. Luke (Londres: Faber & Faber, 1960). De uma perspectiva conservadora, I. Howard Marshall respondeu à suposição crítica e afirmou a visão tradicional de que Lucas, o autor, é tanto um historiador quanto um teólogo. Veja Luke: Historian and Theologian, ed. rev. (Grand Rapids: Zondervan, 1989).

[3] O líder dessa ênfase é Robert C. Tannehill, The Narrative Unity of Luke-Acts: A Literary Interpretation, 2 vols. (Filadélfia: Fortress, 1986-1990).

[4] Um proeminente defensor desta ideia seria Joel B. Green. Veja o seu The Gospel of Luke, NICNT (Grand Rapids: Eerdmans, 1997); e The Theology of the Gospel of Luke, NTT (Cambridge: Cambridge University Press, 1995).

[5] Mikeal C. Parsons & Richard I. Pervo, Rethinking the Unity of Luke and Acts (Mineápolis: Fortress, 1993), p. 123, ênfase deles. Veja também Richard I. Pervo, “Fourteen Years After: Revisiting Rethinking the Unity of Luke and Acts” e Mikeal C. Parsons, “Hearing Acts as Sequel to a Multiform Gospel: Historical and Hermeneutical Reflections on Acts, Luke, and the ΠΟΛΛΟΙ”, ambos em Rethinking the Unity and Reception of Luke and Acts, ed. Andrew F. Gregory & C. Kavin Rowe (Columbia: University of South Carolina Press, 2010), p. 23-40, p. 128-52, respectivamente.

[6] Parsons & Pervo, Rethinking the Unity of Luke and Acts, p. 18.

[7] Ibid., p. 77-83.

[8] Ibid., p. 38-39. Eu não aceito isso como uma verdadeira diferença.

[9] Andrew F. Gregory, The Reception of Luke and Acts in the Period before Irenaeus: Looking for Luke in the Second Century, WUNT 169 (Tübingen: Mohr Siebeck, 2003).

[10] A favor de Parsons e Pervo está C. Kavin Rowe, “History, Hermeneutics, and the Unity of Luke-Acts”, em Gregory & Rowe, Rethinking the Unity and Reception of Luke and Acts, p. 43-65. Andrew F. Gregory, “The Reception of Luke and Acts and the Unity of Luke-Acts”, em Gregory & Rowe, Rethinking the Unity and Reception of Luke and Acts, p. 82-93.

[11] Dentro de uma visão da unidade de Lucas-Atos, S. John Roth tenta responder por que a ênfase na preocupação com os desfavorecidos é “tão proeminente no Evangelho de Lucas e quase ausente nos Atos dos Apóstolos”. Sua conclusão é que “a função cristológica desses tipos de caráter no Evangelho não se encaixa no status de Jesus em Atos” (The Blind, the Lame, and the Poor: Character Types in Luke-Acts, JSNTSup 144. (Sheffield: Sheffield Academic, 1997), p. 11, p. 220).

[12] Por exemplo, Green afirma: “A agenda de Lucas não é escrever a história de Jesus, seguida pela história da igreja primitiva. Em vez disso, seu projeto é escrever uma história da continuação e cumprimento do projeto de Deus – uma história que abrange tanto a obra de Jesus quanto os seguidores de Jesus após sua ascensão. Do início ao fim, Lucas-Atos traz à tona um objetivo narrativo, o único objetivo de Deus” (Theology of the Gospel of Luke, p. 47).

[13] Carson & Moo, Introduction to the New Testament, p. 203.


Autor: Robert Cara

Dr. Robert J. Cara é diretor acadêmico e professor de Novo Testamento no Reformed Theological Seminary. Robert também é pastor na Associate Reformed Presbyterian Church.

Ministério: Editora Fiel

Editora Fiel
A Editora Fiel tem como missão publicar livros comprometidos com a sã doutrina bíblica, visando a edificação da igreja de fala portuguesa ao redor do mundo. Atualmente, o catálogo da Fiel possui títulos de autores clássicos da literatura reformada, como João Calvino, Charles Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, bem como escritores contemporâneos, como John MacArthur, R.C. Sproul e John Piper.

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