O novo ambiente cultural e moral do Ocidente não emergiu de um vácuo. Mudanças intelectuais maciças moldaram e remodelaram a cultura ocidental desde o alvorecer do Iluminismo. No coração dessa grande mudança intelectual está a secularização.
Secular, em termos de conversação sociológica e intelectual contemporânea, refere-se à ausência de qualquer vínculo em relação à crença ou à autoridade de Deus. É tanto uma ideologia, conhecida como secularismo, como um resultado. A secularização, por outro lado, não é uma ideologia; é um conceito e um processo sociológico pelo qual as sociedades se tornam menos teístas à medida que se tornam mais modernas. À medida que as sociedades se movem, progressivamente, em direção às condições de modernidade mais profundas, elas se afastam de situações em que há essa forte ligação à crença religiosa e à crença teísta em particular. Essas sociedades movem-se para circunstâncias onde a crença, em Deus e na sua autoridade intrínseca, vão diminuindo a cada dia, até que dificilmente exista uma lembrança de que tal autoridade tenha existido.
A agenda de secularização da Europa durou cerca de 150 anos, acelerada em certos pontos por eventos como a Revolução Francesa e as duas Guerras Mundiais, mas por muitas razões, a America[i] não acompanhou a secularização da Europa. Por pelo menos um século, a América foi exceção à secularização na sociedade ocidental. Enquanto em alguns países escandinavos, menos de 2% das pessoas frequentam a igreja regularmente, estima-se que 40% dos americanos afirmam ser frequentadores regulares da igreja. A grande maioria dos americanos diz pelo menos acreditar em Deus. Essas estatísticas levam muitos cristãos a acreditar que a maioria dos americanos compartilham de uma mesma crença comum a respeito de Deus.
No entanto, há um setor da vida pública americana que acompanhou a secularização da Europa: as universidades americanas. Se a secularização trata, em última análise, da pulverização de qualquer vínculo com a crença religiosa e autoridade divina, então, certamente, essa situação prevaleceu na cultura universitária americana. Quanto mais aproximamo-nos da maioria das faculdades ou universidades americanas mais aproximamo-nos de um espaço público secular – um lugar intelectualmente secular. Como Peter Berger, um dos pais da moderna teoria da secularização nos lembra que, aqueles que estão vendo essas coisas acontecerem, devem entender que os propulsores da transformação da cultura são os “criativos culturais”, as elites intelectuais. E onde é que eles estão reunidos, de forma tão concentrada, ao ponto de poder otimizar ao máximo a influência sobre os jovens? Nos campi das faculdades e universidades. A secularização, que a América em grande parte evitou no passado, está viva em suas instituições de ensino superior e tem disseminada através de muitos estudantes que tiveram sua visão de mundo moldada pelas elites intelectuais seculares. Assim, as condições intelectuais da América são quantitativa e qualitativamente diferentes daquelas que prevaleciam na cultura há apenas quinze anos.
Mas por que a secularização não aconteceu, na mesma proporção, em outras comunidades nos Estados Unidos, como nos campi universitários americanos ou na Europa? Essa questão tem gerado muita discussão por parte dos sociólogos durante quase três décadas. No entanto, a resposta mais esclarecedora vem de Berger, onde ele argumenta que a secularização, na verdade, aconteceu tanto na sociedade dos Estados Unidos quanto nos campi universitários americanos e na Europa, só que a secularização simplesmente “pareceu” muito diferente. Berger argumenta que a América era e é muito mais secular do que parece. Ainda que a América não seja caracterizada pelo secularismo “linha-dura” nem pela religião e o teísmo ridiculamente abertos, que frequentemente caracterizam a cultura nas nações europeias, os Estados Unidos são, certamente, amplamente secularizados.
Como Berger explica, na América do século XX, o cristianismo e a religião em geral foram transformados em algo não-cognitivo e opcional. Como resultado, a autoridade inerente da tradição moral cristã ou de qualquer tradição religiosa foi perdida. Consequentemente, muitos de nossos amigos e vizinhos continuaram a professar fé em Deus, mas uma fé desprovida de qualquer autoridade moral ou conteúdo cognitivo. Olhando de fora para dentro, os Estados Unidos não pareciam estar secularizando-se no mesmo ritmo que o continente europeu. Na realidade, porém, a fé professada em Deus, tinha pouco conteúdo teológico ou espiritual.
Berger previu que esse colapso dos compromissos religiosos cognitivos, juntamente com o colapso da autoridade inerente, levaria ao fato de que, diante da oposição cultural, aqueles que acreditavam em Deus ou em princípios religiosos rapidamente dariam lugar à agenda secular – que é exatamente o que aconteceu. Apenas dez anos atrás, as pesquisas mostravam que a maioria dos americanos se opunha ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. No entanto, em nossos dias, a maioria das mesmas pessoas pesquisadas a uma década apresentou um julgamento moral oposto sobre o mesmo assunto. Assim, como Berger explica, quando a maré cultural se voltou contra os compromissos religiosos vazios de nossa sociedade, as pessoas ficaram felizes em abandonar seu julgamento moral sobre a homossexualidade para manter seu capital social.
O filósofo canadense Charles Taylor também rastreou com cuidado a influência e os efeitos da secularização no mundo ocidental. Como ele explica em seu importante livro “Uma Era Secular”, a forma como as pessoas mantêm convicções teológicas e princípios religiosos na era moderna é fundamentalmente diferente de como as pessoas as mantinham no passado. A modernidade tornou a crença religiosa provisória, opcional e muito menos urgente do que era no mundo pré-moderno. Como Taylor observa, deste lado da modernidade, quando as pessoas acreditam, elas creem que estão fazendo uma escolha que as gerações anteriores não puderam fazer. A crença é agora nada mais que um exercício de autonomia pessoal.
Taylor também mostra, de forma muito útil, que a história ocidental pode ser definida por três épocas intelectuais: a impossibilidade pré-iluminista da incredulidade; a possibilidade pós-iluminista de descrença; e a impossibilidade moderna da crença. Na era pré-iluminista, era impossível não acreditar, simplesmente não era possível explicar o mundo sem algum apelo à Bíblia ou a alguma outra forma de sobrenaturalismo. Nenhuma outra cosmovisão estava disponível para os membros da sociedade a não ser a cosmovisão sobrenatural, particularmente a cosmovisão cristã do Ocidente. Embora na sociedade houvessem hereges, não havia ateus entre eles. Todos acreditavam em alguma forma de teísmo, mesmo que fosse politeísmo.
Tudo isso mudou com o Iluminismo e a disponibilidade de cosmovisões alternativas de mundo. Essas cosmovisões alternativas permitiram que os membros da sociedade rejeitassem o sobrenaturalismo do cristianismo, ou outros sistemas teístas, para abraçar a cosmovisão naturalista. A partir desse ponto, tornou-se possível não acreditar. No entanto, mesmo nesse clima intelectual, ainda era improvável que as pessoas rejeitassem a cosmovisão cristã, porque as explicações teístas para a vida eram simplesmente mais contundentes, coerentes e persuasivas do que visões de mundo não teístas.
O terceiro cenário de condições intelectuais é identificado com a modernidade tardia de nossa própria época intelectual. Para a maioria das pessoas que vivem no contexto autoconsciente da modernidade tardia, é impossível acreditar. Isso se refere, especialmente, às elites intelectuais e aos setores formadores da cultura da sociedade, o teísmo não é mais uma cosmovisão disponível – ainda que se não pessoalmente, pelo menos culturalmente.
Significativamente, Taylor aponta essa incredulidade como uma falta de compromisso cognitivo com um Deus auto existente e auto revelador. A secularização não se trata de rejeitar totalmente a religião. Taylor observa que as pessoas, na atual cultura hipersecularizada na América, frequentemente se consideram religiosas ou espirituais. A secularização, de acordo com Taylor, se encontra na rejeição à crença em um Deus pessoal, alguém que detém e exerce autoridade. Taylor descreve a era secular como profundamente “pressionada” em sua experiência pessoal de religião e rejeição da autoridade pessoal de Deus. A questão é a autoridade inerente à Deus.
Nessas condições culturais, os cristãos são os foragidos intelectuais. Entrar numa discussão com base em uma reivindicação teísta ou teológica é quebrar uma regra fundamental da modernidade tardia, movendo-se de uma proposição ou questão para uma imposição, ou passando de um “ser” para um “deve ser”. Alguns “deve ser” ainda permanecem, mas a linguagem de comando, lei e autoridade foi explicitamente secularizada e cuidadosamente reduzida no seu significado. A secularização, na América, foi apoiada por uma revolução moral sem precedentes e que ainda não fez sua “última jogada”. Os propulsores culturais do progresso que conduzem à autonomia pessoal e à realização não cessarão até que o ser humano seja completamente redefinido. Este progresso requer a rejeição explícita da moralidade cristã em favor do projeto de “libertação humana”.
A história da ascensão do secularismo é uma impressionante revolução intelectual e moral. Isso desafia até mesmo o maior dos exageros. Devemos reconhecer que é muito mais penetrante do que poderíamos acreditar, pois essa revolução intelectual mudou a cosmovisão até mesmo daqueles que acreditam que se opõem a ela. Sem nada mais, muitos crentes religiosos da sociedade moderna agem, agora, como consumidores teológicos e ideológicos, constantemente comprando novas roupas intelectuais, mesmo quando eles acreditam que ainda são crentes tradicionais.
Ministros, teólogos e pensadores cristãos, que se mantêm firmes sob a autoridade bíblica, ousam quebrar as regras, atraindo a cultura para a cosmovisão cristã baseada na auto revelação de um Deus auto existente, com autoridade moral soberana para exigir de suas criaturas o cumprimento de deveres e obrigações, e que finalmente exercerá juízo de acordo com suas próprias leis e domínio. Essa cultura se torna mais e mais resistente a um Deus – qualquer deus – que nos fala com palavras como “Tu farás” e “Tu Não farás”. O fato é que, os cristãos não podem entrar em uma conversa, como crentes no Senhor Jesus Cristo, “balizados” pela revelação bíblica, sem quebrar as “novas regras” da sociedade. E devemos lembrar que aqueles que quebram as regras não são bem-vindos por aqueles que fazem as regras.
Tradução: Paulo Reiss Junior.
Revisão: Filipe Castelo Branco.
Fonte: The Advance of Secularism.