O texto abaixo foi extraído do livro Vocábulos de Deus, de J.I. Packer, da Editora Fiel, reedição 2017.
No Novo Testamento, “graça” é uma palavra de importância central de fato, é a palavra-chave do cristianismo. Graça é aquilo sobre o que o Novo Testamento versa. O Deus exposto ali é “o Deus de toda a graça” (1Pe 5.10); ali, o Espírito Santo é “o Espírito da graça” (Hb 10.29); e, todas as esperanças ali expostas apoiam-se sobre a “graça do Senhor Jesus” (At 15.11), aquele Senhor que sustentou Paulo com esta certeza: “A minha graça te basta” (2Co 12.9). No dizer de João, “a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo” (Jo 1.17); e, as novas acerca de Jesus são chamadas de “o evangelho da graça de Deus” (At 20.24). A crença dos apóstolos na realidade e centralidade da graça era tão forte que os levou a criar um novo estilo de carta. Ao invés do convencional “Salve!”, a saudação inicial de todas as treze cartas de Paulo toma a forma de uma oração por “graça e paz” ou por “graça, misericórdia e paz”, da parte de Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo, invocadas sobre os seus leitores. E, ao invés do usual “adeus”, cada carta termina com outra oração, rogando “a graça do Senhor Jesus Cristo”, ou simplesmente “graça”, sobre cada crente. Tanto as cartas de Pedro como a de Judas e o Apocalipse têm saudações similares (cf. 2Jo 3); e, Hebreus e Apocalipse têm formas semelhantes de encerramento, enquanto que a segunda carta de Pedro termina com um apelo: “Crescei na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (2Pe 3.18). Tudo quanto é dito nessas cartas, entre a saudação e a bênção final, ilustra a verdade que, para os apóstolos, a graça era o fato fundamental da vida cristã.
Com frequência se diz, com toda a razão, que a salvação é o tema do Novo Testamento. Porém, a salvação neotestamentária é pela graça de Deus, do começo ao fim (Ef 2.5, 8); é a graça de Deus que nos dá a salvação (Tt 2.11), e a finalidade da salvação é louvor da glória da graça de Deus (Ef 1.6). Ao que parece, quando corretamente compreendida, essa palavra “graça” contém em si mesma toda a teologia do Novo Testamento. A mensagem do Novo Testamento é simplesmente o anúncio de que a graça veio aos homens através de, e em, Cristo, juntamente com o apelo da parte de Deus para que eles recebam-na (Rm 5.17; 2 Co 6.1), conheçam-na (Cl 1.6) e não a frustrem (Gl 2.21), mas perseverem nela (At 13.43), porquanto “a palavra de sua graça tem poder para vos edificar e dar herança entre todos os que são santificados” (At 20.32). A graça é o sumário e a substância da fé do Novo Testamento.
A ideia da graça, pois, é a chave que abre o Novo Testamento; é a única chave capaz de abri-lo. Sem importar quão bem conheçamos o fraseado do Novo Testamento, não poderemos penetrar em seu significado enquanto não conhecermos algo acerca do que é a graça. Esta é a razão por que tantas pessoas acham que o Novo Testamento é desconcertante e frustrante (especialmente as cartas de Paulo, o grande campeão da graça); e também é o motivo por que tão facilmente o entendem mal. Pessoas, até mesmo religiosas, ignorantes acerca da graça, que tentam ler o Novo Testamento como um livro de máximas morais, ou de aspirações místicas, não podem entendê-lo. Cada livro do Novo Testamento faz parte de uma grande análise sistemática, histórica e teológica acerca do fato da graça, e deve ser lido como tal. Não podemos entendê-lo senão nesses termos.
Infelizmente, porém, o significado da graça não é corretamente apreciado hoje. Nos últimos cem anos ou mais, esse tópico tem sido tão negligenciado por alguns, e mal manuseado por outros, que a clara e profunda compreensão do mesmo, legada pelos reformadores, pelos Puritanos e pelos evangélicos do século XVIII à sua posteridade, quase desapareceu da cena religiosa. A palavra “graça” faz parte integral de nosso vocabulário religioso, e regularmente a ouvimos em orações públicas, como “concede-nos a ajuda da tua graça…”, ou “dá-nos graça, para que possamos…” Para muitos, porém, esse termo sugere apenas noções vagas, como uma celestial recarga de bateria, administrada por meio das ordenanças; e, para a maioria, ele já não significa coisa alguma.
Enquanto isso, muitos praticam, em nome do cristianismo, formas de religião que frustram e negam totalmente a graça de Deus. Tanto o legalismo da doutrina Católica Romana, que faz a salvação depender da lealdade a um sistema eclesiástico, como o moralismo da doutrina protestante liberal, que diz que todos quantos tentarem ser bons, mesmo que pouco, serão salvos, resultam da mesma causa-raiz – a falha em compreender o significado da graça. A necessidade mais urgente da cristandade é a de uma renovada conscientização do que a graça de Deus realmente é. Os crentes anelam ver uma reforma e um avivamento nas igrejas. Hoje, tal como ontem, é somente através da redescoberta da graça que essas bênçãos fluirão.