Artigo adaptado do livro Deus controla tudo?, de R. C. Sproul — série Questões Cruciais.
Um dia, enquanto eu assistia a um programa de notícias, apareceu um anúncio sobre uma série de livros a respeito de problemas da vida no passado. Uma das imagens do comercial mostrava um soldado confederado, da Guerra Civil, deitado numa maca, recebendo cuidados de uma enfermeira e de um médico da linha de batalha. Em seguida, o narrador me informou que a leitura daquele livro me ajudaria a entender o que significava ficar doente, em meados do século XIX. Aquilo atraiu minha atenção, porque muitas pessoas do século XXI são tão fortemente presas ao seu tempo, que raramente pensam em como as pessoas levavam a vida em épocas e gerações anteriores.
Esta é uma das áreas em que me vejo fora de harmonia com os meus contemporâneos. Penso, com muita frequência, na vida das gerações anteriores, porque tenho o hábito de ler obras escritas por pessoas que, em muitos casos, viveram muito antes do século XXI. Gosto de ler, especialmente, autores dos séculos XVI, XVII e XVIII.
Nos escritos desses autores, constantemente, observo um senso agudo da presença de Deus. Esses homens tinham um senso de uma providência que envolvia tudo. Vemos uma indicação deste senso de que toda a vida está sob a direção e o governo do Deus todo-poderoso, no fato de que uma das primeiras cidades, no que é agora os Estados Unidos da América, foi Providence, em Rhode Island, fundada em 1636. De modo semelhante, a correspondência pessoal de homens de séculos anteriores, como Benjamim Franklin e John Adams, é entremeada com a palavra providência. As pessoas falavam sobre uma “Providência benevolente” ou uma “Providência irada”, mas havia, frequentemente, um senso de que Deus estava envolvido de maneira direta na vida diária das pessoas.
A situação é muito diferente em nossos dias. Meu falecido amigo James Montgomery Boice costumava contar uma história engraçada, que ilustrava apropriadamente a mentalidade contemporânea com respeito a Deus e ao seu envolvimento no mundo. Houve um alpinista que escorregou numa saliência e estava prestes a mergulhar centenas de metros para a sua morte, mas, enquanto caía, ele se agarrou num galho de uma árvore minúscula e desajeitada que crescia numa fresta, na face do despenhadeiro. Quando ele se agarrou no galho, as raízes da árvore começaram a afrouxar, e o alpinista contemplava a morte certa. Naquele momento, ele clamou aos céus: “Há alguém aí em cima, que possa me ajudar?” Em resposta ele ouviu uma voz forte, do céu, que dizia: “Sim, eu estou aqui e posso ajudá-lo. Solte o galho e confie em mim”. O homem olhou para o céu e, em seguida, olhou para baixo, para o abismo. Por fim, ele levantou a voz novamente e disse: “Há alguém mais por aí que possa me ajudar?”
Gosto dessa história, porque ela tipifica a mentalidade cultural de nossos dias. Primeiramente, o alpinista pergunta: “Há alguém aí em cima?” A maioria das pessoas do século XVIII admitiam que havia Alguém lá. Em sua mente, havia pouca dúvida de que um Criador todo-poderoso governava os afazeres do universo. Entretanto, vivemos numa época de incredulidade sem precedente, quanto à própria existência de Deus. Sim, pesquisas de opinião pública nos dizem, regularmente, que entre 98% e 99% das pessoas nos Estados Unidos creem em algum tipo de deus ou poder superior. Suponho que isso pode ser explicado, em parte, pelo impacto da tradição; ideias que têm sido preciosas para as pessoas, durante várias gerações, são difíceis de serem renunciadas, e, em nossa cultura, certo estigma social ainda está vinculado ao ateísmo irrestrito. Além disso, acho que não podemos escapar da lógica de supor que tem de haver algum tipo de causa fundamental e última para este mundo, à medida que o experimentamos. Todavia, quando confrontamos as pessoas e falamos com elas sobre a sua ideia de um “poder superior” ou de um “ser supremo”, fica evidente que se referem a um conceito neutro – um tipo de energia ou uma força indefinida – e não a Deus. Essa foi a razão por que o alpinista perguntou: “Há alguém aí em cima?” Naquele momento de crise, ele reconheceu sua necessidade de um ser pessoal, que estava no controle do universo.
Há outro aspecto dessa anedota que considero importante. Quando o alpinista estava prestes a cair na morte, ele não disse apenas: “Há alguém aí em cima?” Ele especificou: “Há alguém aí em cima, que possa me ajudar?” Esta é a pergunta do homem moderno. Ele quer saber se há alguém, fora da esfera da vida diária, que é capaz de lhe prestar assistência. Mas eu acho que o alpinista estava fazendo uma pergunta muito mais fundamental. Ele queria saber, não somente se havia alguém que poderia ajudá-lo, mas também se havia alguém que estava disposto a ajudá-lo. Esta é a pergunta que está em primeiro lugar, na mente dos homens e das mulheres contemporâneos. Em outras palavras, eles querem saber não somente se há providência, mas também se ela é fria, insensível ou compassiva.
Portanto, a questão referente à providência que pretendo considerar nestes artigos é, não meramente, se há alguém lá, mas se esse alguém é capaz e disposto a fazer alguma coisa no mundo em que vivemos.
Um universo mecânico e fechado
Entre as ideias que têm moldado a cultura ocidental, uma das mais significativas é a ideia de um universo mecânico e fechado. Esta opinião sobre o mundo tem persistido por centenas de anos, e exercido influência tremenda em moldar a maneira como as pessoas entendem a forma como a vida é vivida. Eu diria que, no mundo secular, a ideia predominante é a de que vivemos num universo que é fechado para qualquer tipo de intrusão de fora, um universo que funciona puramente por forças e causas mecânicas. Em palavras simples, a questão crucial para o homem moderno é a causalidade.
Parece haver um clamor crescente sobre a influência negativa da religião na cultura americana. Afirma-se que a religião é a força que mantém as pessoas presas na era das trevas de superstição, mantém a sua mente fechada para qualquer entendimento das realidades do mundo que a ciência tem descoberto. Cada vez mais, a religião parece ser considerada o polo oposto da ciência e da razão. É como se a ciência fosse algo para a mente, a pesquisa e a inteligência, enquanto a religião fosse algo para as emoções e os sentimentos.
Apesar disso, ainda há uma tolerância para a religião. A ideia frequentemente expressa, nos meios de comunicação noticiosos, é que todos têm um direito de crer no que escolhe crer; o mais importante é crer em algo. Não importa se você é judeu, mulçumano, budista ou cristão.
Quando ouço comentários como esse, quero exclamar: a verdade é realmente importante? Em minha humilde opinião, a coisa principal é crer na verdade. Não estou satisfeito em crer, simplesmente por crer. Se aquilo em que creio não é verdadeiro – se é supersticioso ou falácia – quero ser libertado disso. Mas a mentalidade de nossos dias parece ser a de que, nas questões de religião, a verdade é insignificante. Aprendemos a verdade da ciência e obtemos bons sentimentos da religião.
Às vezes, expõe-se a ideia altamente simplista de que a superstição religiosa reinou supremamente no passado, e, por isso, Deus era visto como a causa de tudo. Se alguém ficava doente, a doença era atribuída a Deus. Agora, é claro, somos informados de que a doença resulta de micro-organismos que invadem nosso corpo, e aqueles organismos minúsculos operam de acordo com sua natureza, fazendo aquilo para o que eles evoluíram e podem fazer. De modo semelhante, enquanto, nos dias anteriores, as pessoas acreditavam que um terremoto ou um temporal era causado pelas mãos de Deus, hoje somos assegurados de que há razões naturais para esses eventos. Eles acontecem por causa de forças que são parte da ordem natural das coisas.
No século XVIII, Adam Smith escreveu um livro que se tornou o clássico da teoria econômica do Ocidente – A Riqueza das Nações. Neste livro, Smith tentou aplicar o método científico ao campo da economia, num esforço para descobrir o que causa certas reações e contrarreações econômicas no mercado. Smith queria ir além da questão da especulação e identificar as causas básicas que produziam efeitos previsíveis. Mas, embora estivesse aplicando a inquirição científica à rede de ações e reações econômicas, ele falou da “mão invisível”. Em outras palavras, Smith estava dizendo: “Sim, há causas e efeitos se movendo neste mundo, mas temos de reconhecer, acima de tudo, que tem de haver um poder causal último ou, do contrário, não haveria poderes causais inferiores. Portanto, todo o universo é orquestrado pela mão invisível de Deus”. Em nossos dias, porém, temos nos focalizado tão intencionalmente na atividade imediata de causa e efeito, que, na maior parte, temos ignorado ou negado o poder causal que abrange tudo e está por trás de toda a vida. O homem moderno não tem, basicamente, nenhum conceito de providência.
O Deus que vê
A doutrina da providência é uma das mais fascinantes, importantes e difíceis na fé cristã. Ela lida com questões difíceis, como: “Como o poder causal e a autoridade de Deus interagem conosco? Como o governo soberano de Deus se relaciona com as nossas escolhas espontâneas? Como o governo de Deus está relacionado com o mal e o sofrimento neste mundo? E como a oração tem alguma influência sobre as decisões providenciais de Deus?” Em outras palavras, como devemos levar nossa vida à luz da mão invisível de Deus?
Comecemos com uma definição simples. A palavra providência tem um prefixo, pro, que significa “antes” ou “em frente de”. A raiz vem do verbo latino videre, que significa “ver”; é desta palavra que temos a nossa palavra vídeo. Portanto, a palavra providência significa, literalmente, “ver de antemão”. A providência de Deus se refere ao seu “ver algo de antemão”, com respeito ao tempo.
A providência não é a mesma coisa que a presciência ou o conhecimento antecipado de Deus. A presciência é a habilidade de Deus de olhar para os corredores do tempo e saber o resultado de uma atividade antes que ela aconteça. No entanto, é apropriado usarmos a palavra providência com referência ao governo ativo de Deus quanto ao universo, porque ele é, de fato, um Deus que vê. Ele vê tudo que acontece no universo. Tudo está na visão plena de seus olhos.
Este pode ser um dos pensamentos mais terríveis que um ser humano pode ter – o de que há alguém que é, como Jean-Paul Sartre lamentou, um espreitador cósmico supremo, que olha através do buraco de fechadura do universo e observa cada ação de cada ser humano. Se há algo a respeito do caráter de Deus que repele dele as pessoas mais do que a sua santidade, esse algo é a sua onisciência. Cada um de nós tem um desejo intenso por um senso de privacidade que ninguém possa invadir, para intrometer-se nas coisas secretas de nossa vida.
No tempo da primeira transgressão, quando o pecado entrou no mundo, Adão e Eva experimentaram, imediatamente, um senso de nudez e vergonha (Gn 3.7). Eles reagiram por tentarem esconder-se de Deus (v. 8). Experimentaram o olhar do Deus da providência. Como o alpinista em minha anedota anterior, queremos que Deus olhe para nós quando precisamos de ajuda. Entretanto, na maior parte do tempo, queremos que ele nos ignore, porque queremos privacidade.
Numa ocasião memorável durante o ministério de nosso Senhor, os escribas e fariseus trouxeram à presença de Jesus uma mulher que eles apanharam em adultério. E lembraram a Jesus que a lei de Deus exigia que ela fosse apedrejada, mas, na verdade, queriam saber o que ele faria. Mas, quando falaram, Jesus se inclinou e escreveu algo no chão. Essa é a única vez que a Bíblia registra que Jesus escreveu, e não sabemos o que ele escreveu. Mas o relato nos informa que Jesus se levantou e disse: “Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra” (Jo 8.7). Depois, ele começou a escrever novamente no chão. Com isso, os escribas e fariseus começaram a ir embora, um por um.
Estou especulando aqui, mas pergunto se Jesus escreveu alguns dos pecados secretos que aqueles homens se mostravam zelosos em manter ocultos. Talvez Jesus escreveu “adultério”, e um dos homens, que era infiel à sua esposa, o leu e foi embora de mansinho. Talvez ele escreveu “evasão de imposto”, e um dos fariseus, que falhava em pagar impostos a César, decidiu tomar o rumo de casa. Em sua natureza divina, Jesus tinha a capacidade de ver, de maneira penetrante, por trás das máscaras que as pessoas usavam, ver as coisas secretas em que eles eram mais vulneráveis. Isso faz parte do conceito de providência divina. Significa que Deus sabe todas as coisas a nosso respeito.
Como já comentei, frequentemente achamos esta visão divina inquietante, mas o conceito da visão de Deus, de Deus nos ver, deveria ser reconfortante para nós. Jesus disse: “Não se vendem dois pardais por um asse? E nenhum deles cairá em terra sem o consentimento de vosso Pai” (Mt 10.29). Este ensino inspirou a canção popular “Deus Cuida dos Pardais”. Você lembra a letra: “Deus cuida dos pardais, e sei que ele cuida de mim”?[1] Creio que o autor desta canção entendeu o que Jesus estava dizendo – que Deus sabe cada vez que um pequeno pássaro cai no chão. Deus não ignora nem mesmo os menores detalhes no universo. Pelo contrário, ele governa o universo com total conhecimento de tudo o que está acontecendo nele.
Sim, este tipo de conhecimento íntimo pode ser amedrontador. Mas, porque sabemos que Deus é benevolente e cuidadoso, seu conhecimento abrangente é um consolo. Deus sabe o que precisamos, antes que lhe peçamos. E, quando as nossas necessidades surgem, ele tanto pode como está disposto a ajudar-nos. Para mim, não há nada mais reconfortante do que saber que há um Deus de providência, que está ciente não apenas de cada uma de minhas transgressões, mas também de cada uma de minhas dores e de cada um de meus temores.
[1] Da canção “His Eye is on the Sparrow”, por Civila D. Marin e Charles H. Gabriel, 1905.