O texto abaixo foi retirado com permissão do livro Providência, de John Piper, Editora Fiel
O que é a providência divina?
A razão pela qual este livro é a respeito da providência de Deus, e não da soberania de Deus, é que a palavra soberania não contém a ideia de ação intencional, mas a palavra providência, sim. Soberania enfatiza o direito e o poder que Deus tem para fazer tudo o que quer, mas, em si mesma, não expressa propósito ou objetivo.
Sem dúvida, a soberania de Deus é intencional, tem propósito e busca um objetivo. No entanto, sabemos isso não simplesmente porque Deus é soberano, mas também porque é sábio e porque a Bíblia o retrata como tendo propósitos em tudo que faz. “O meu conselho permanecerá de pé, farei toda a minha vontade” (Is 46.10).
O foco deste livro está na soberania de Deus considerada não simplesmente como poderosa, mas também como intencional. Historicamente, o termo providência tem sido usado como uma forma abreviada de referência a esse foco mais específico.
Os 5 elementos de formação da palavra providência
Por que escolhi a palavra providência para expressar esse ensino bíblico? Em relação a Deus, o termo não ocorre na maior parte das Bíblias.
É difícil estarmos certos da história de uma palavra e porque ela chegou a ter o presente significado. Eis a minha sugestão.
A palavra providência tem origem nos termos em latim pro (“adiante”, “em favor de”) e vide (“ver”). Assim, você chegaria aos significados “ver adiante” ou “prever”. Mas não. Significa “suprir o que é necessário”, “dar sustento ou apoio”. Portanto, em referência a Deus, o substantivo providência chegou a significar “o ato de prover intencionalmente o necessário, sustentar ou governar o mundo”.
Por que isso acontece? Existem duas razões interessantes. Uma baseada na própria etimologia e a outra baseada numa história bíblica.
Deus “cuida para que aconteça”
Em língua inglesa, temos uma expressão idiomática que diz “I’ll see to it”. Como todas as expressões idiomáticas, essa significa mais do que as palavras tomadas individualmente parecem significar. “I’ll see to it” significa, em inglês, “Eu cuidarei disso”. Eu proverei as coisas necessárias para isso. Eu cuidarei (ou garantirei) que isso aconteça. Então, talvez a colocação do latim vide (“ver”) ao lado do latim pro (“para”, “em direção a”), resultando no termo provide, em língua inglesa, tenha produzido “ver para” e tenha chegado a significar mais do que “pre-ver”, ou seja, tenha chegado a significar “ver isso”, no sentido de “cuidar disso” ou “cuidar para que isso aconteça”. Isso resumiria o que queremos dizer ao falar da providência de Deus: ele cuida para que as coisas aconteçam de certa maneira.
Providência no Monte Moriá
Em seguida, e de forma mais interessante, há a história bíblica de Abraão oferecendo seu filho Isaque. Antes de subirem ao monte Moriá, Isaque disse a seu pai: “Onde está o cordeiro para o holocausto?” (Gn 22.7). Abraão respondeu: “Deus proverá para si, meu filho, o cordeiro para o holocausto” (22.8). E, quando Deus mostrou a Abraão um carneiro preso nos arbustos, “pôs Abraão por nome àquele lugar — O SENHOR proverá” (22.14).
O que impressiona é que, sempre que a palavra prover ocorre em Gênesis 22, a palavra hebraica é simplesmente “ver”. Abraão, de uma forma bem simples, disse a Isaque: “Deus verá para si mesmo o cordeiro” (22.8). De modo semelhante, no versículo 14: “O SENHOR Proverá. Daí dizer-se até os dias de hoje: “No monte do SENHOR se proverá”.
No que diz respeito à doutrina da providência, a pergunta é esta: por que o ver de Deus em Gênesis 22 refere-se realmente a seu prover — à sua providência?
Minha sugestão de resposta é que, na mente de Moisés e de outros autores da Escritura, Deus não se limita a ver como um espectador passivo. Como Deus, ele nunca é simplesmente um observador. Ele não é um observador passivo do mundo, nem um profetizador passivo do futuro. Para onde quer que Deus esteja olhando, ele está agindo. Em outras palavras, há uma profunda razão teológica para a providência de Deus não significar apenas seu ver, mas, em vez disso, seu agir. Quando Deus vê algo, ele faz isso. Evidentemente, quando Moisés escreveu Gênesis 22, o engajamento intencional de Deus com Abraão era tão óbvio que Moisés pôde apenas referir-se ao perfeito ver de Deus como subentendendo o fazer intencional de Deus. Seu ver foi seu fazer. Sua percepção subentendia sua provisão — sua providência.
O dilema de escrever um livro como esse
Estas são minhas sugestões a respeito de como a palavra providência chegou a significar “o ato de Deus prover o necessário ou sustentar e governar o mundo”. Sem dúvida, é menos importante saber se estou certo a respeito disso. No que diz respeito a palavras, o importante não é sabermos de onde vêm ou como adquiriram determinado significado. O importante é que compreendamos verdadeiramente o que um escritor ou um falante tenciona comunicar com elas.
Então, tem início a tarefa real: o que um autor tenciona comunicar com palavras se conforma à realidade? A concepção de providência que um autor descreve é verdadeira? Ou, no caso deste livro, visto que adoto a Bíblia como o fundamento da verdade: conseguimos compreender verdadeiramente o que a Bíblia ensina a respeito da providência de Deus?
Portanto, ao esclarecer mais especificamente o que pretendo dizer com providência de Deus, devo ser claro em dizer que me encontro em uma espécie de dilema. Por um lado, devo, em primeiro lugar, apresentar minha evidência a partir da Bíblia, a fim de apoiar meu entendimento da providência de Deus. Por outro lado, tenho de usar a palavra providência quando exponho essa evidência, e a palavra deve ter um significado claro para meus leitores — significado que só pode vir dessa evidência. Não posso lhe atribuir um sentido claro do que estou querendo dizer com providência se antes não lhe dou a evidência disso; de outro modo, posso usar, de forma ambígua, a palavra providência em todo o livro e esperar por uma concepção clara até o final do livro.
Não gosto de ambiguidade. Acho que é fonte de muita confusão e de muito erro. Por isso, escolho a primeira opção. Aqui no começo, vou lhe dar uma concepção tão clara quanto posso lhe dar sobre o que pretendo dizer com a palavra providência, reconhecendo que essa definição se baseia em evidência ainda não provada. Depois, você pode entender o restante do livro como apoio, explicação, aplicação e celebração bíblica dessa concepção de providência.
Meu objetivo, neste livro, não é desenvolver um novo significado de providência que a igreja não tenha adotado em suas confissões históricas de fé. Em vez disso, tenciono reunir das Escrituras alguns velhos gravetos de verdade, amontoá-los de forma visível e pôr fogo neles. Faço isso não por querer consumi-los, mas porque desejo liberar suas propriedades incendiárias, com vistas a intensificar a adoração, solidificar a convicção hesitante, fortalecer a fé assolada, enrijecer a coragem jubilosa e avançar na missão de Deus no mundo.
Alguns artigos e bons pontos de vista sobre a providência
Vamos retornar alguns séculos para encontrarmos algumas definições de providência com que me sinto muito feliz, porque acho que elas expressam a verdade bíblica.
Catecismo de Heidelberg (1563)
Questão 27: O que é a providência de Deus?
Resposta: É o poder onipotente e onipresente de Deus, pelo qual, como que por sua mão, ele sustenta o céu e a terra, com todas as criaturas, e os governa de tal modo que ervas e plantas, chuva e seca, anos frutíferos e estéreis, comida e bebida, saúde e doença, riqueza e pobreza, todas as coisas não nos vêm por acaso, mas de sua mão paternal.
Em quase todas as confissões, a providência divina significa um “poder onipotente e onipresente de Deus”. Esse poder “sustenta” e “governa” todas as coisas. Mas o que confere a essa definição sua inclinação em direção à providência (e não apenas à soberania) é a expressão “de sua mão paternal”. Isso tem grandes implicações quanto ao desígnio do governo de Deus sobre todas as coisas. Significa que todas as coisas no universo são governadas tendo em vista o bem dos filhos de Deus! Mas nós temos de esperar para ver isso mais plenamente.
A Confissão Belga (1561)
Artigo 13. A doutrina da providência de Deus
Cremos que este bom Deus, depois de haver criado todas as coisas, não as abandonou ao destino ou ao acaso, mas, segundo a sua santa vontade, ele as dirige e governa de tal modo que neste mundo nada acontece sem o arranjo ordeiro de Deus.
Outra vez, Deus “dirige e governa” todas as coisas, de modo que nada é deixado ao “destino ou ao acaso”. E, outra vez, o que a doutrina sobre a providência enfatiza não é apenas soberania, mas o fato de que “nada acontece sem o arranjo ordeiro de Deus”. É claro que isso exige uma explicação da palavra ordeiro. Ordem sugere desígnio e propósito. Ordem com que finalidade? Isso é o que destacaremos na Parte 2 deste livro.
Catecismo Maior de Westminster (1648)
Questão 18. Quais são as obras da providência?
Resposta: As obras da providência de Deus são a sua mais santa, mais sábia e mais poderosa preservação e governo de todas as suas criaturas, ordenando-as e todas as ações delas para a sua glória.
A providência de Deus não somente “preserva” e sustenta a existência de “todas as suas criaturas”, como também “[ordena] todas as ações delas”. O propósito de toda essa preservação e de todo esse ordenamento é mostrado com clareza: “para a sua glória”. Isso é soberania intencional, que chamamos providência.
Confissão de Fé de Westminster (1646)
Capítulo 5. Da providência
5.1. Deus, o grande Criador de todas as coisas, sustenta, dirige, dispõe e governa todas as criaturas, ações e coisas, desde a maior até à menor, por meio de sua providência sábia e santa, de acordo com sua presciência infalível e o soberano e imutável conselho de sua própria vontade, para o louvor da glória de sua sabedoria, poder, justiça, bondade e misericórdia.
Essa é a definição mais completa que vimos até agora. Deus sustenta, dirige, dispõe e governa “todas as criaturas, ações e coisas”. Isso é soberania pervasiva. Depois, vêm as cores providenciais: soberania governada por sabedoria e santidade — e tudo “para o louvor da glória de sua sabedoria, poder, justiça, bondade e misericórdia”.
Essa maneira de expressar o objetivo da providência de Deus será crucial, por ser fiel à Escritura. Alguns pontos de vista sobre a providência ressaltam tanto o alvo de Deus em manifestar misericórdia que o restante de sua glória é obscurecido. Acredito que a resistência da Confissão de Westminster a essa redução é sábia e bíblica. O alvo da providência de Deus, diz a Confissão, é “o louvor” da glória de Deus — não somente um aspecto ou uma faceta de sua glória (como amor, graça ou misericórdia), mas toda ela: “a glória de sua sabedoria, poder, justiça, bondade e misericórdia”.
Por: John Piper. ©️ Ministério Fiel. Website: ministeriofiel.com.br. Todos os direitos reservados. Editor e revisor: Renata Gandolfo.