quarta-feira, 30 de outubro
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O sabá luterano

De início, eu tenho de reconhecer que as questões de quando e como se deve observar o sabá não têm despertado muita atenção dos luteranos ao longo dos anos. Até o presente, os luteranos são em grande parte guiados pelo modo como Martinho Lutero, o reformador protestante do século XVI, interpretou o mandamento do sabá em seus Catecismos Breve e Maior.

No Breve Catecismo, Lutero traduz o texto bíblico assim: “Santificarás o dia do descanso” (para os textos dos catecismos de Lutero, ver o Livro de concórdia: as confissões da igreja evangélica luterana [N.T.: publicado em português pela Editora Sinodal em conjunto com a Editora Concórdia e a Editora da Ulbra]). Como você pode ver, ele aparece um pouco diferente de como talvez estejamos acostumados a ler. A fim de melhor compreender a visão luterana do dia do sabá, precisamos considerar tanto a sua história como o seu entendimento atual.

O evangelho e o sabá

Toda tradição é moldada pela era formativa na qual emergiu. Isso também é verdade quanto ao luteranismo. Quando Lutero redescobriu o evangelho, ele arrancou, uma por uma, as camadas encrustadas de regulações legalistas que obrigavam os cristãos a alcançarem a sua justiça por seus próprios méritos. Do século XVI em diante, a preocupação central e primordial dos luteranos era, como é, o evangelho de Jesus Cristo. Este evangelho anuncia que Deus nos considera justos, pela graça, em virtude de Jesus Cristo, pela fé somente. Este evangelho dá toda a glória a Cristo e traz pleno conforto aos pecadores aflitos. A fim de preservar a história do evangelho enquanto história do evangelho, os luteranos foram, e continuam a ser, vigilantes em se opor a qualquer coisa que possa apontar na direção do legalismo e de uma justiça meritória, na medida que essas coisas solapam o evangelho.

Assim, Lutero traduziu o mandamento do sabá de modo a rejeitar as interpretações legalistas que eram tão comuns em seu tempo. Inicialmente, ele teve de lutar com o legalismo, encontrado na igreja medieval, concernente a diversas regulações que a igreja estabelecera sobre como o dia deveria ser observado. Depois, ele também reputou necessário rejeitar as tentativas de restabelecer o sabá do sétimo dia como algo “legalmente” obrigatório aos cristãos na era do Novo Testamento.

Os paralelos entre o legalismo que Jesus encontrou entre os líderes religiosos de seu tempo e aquele que Lutero encontrou em seus dias são claros. Em várias ocasiões, os evangelhos relatam como Jesus resistiu às exigências quanto ao sabá feitas por seus oponentes. O sabá foi feito para o homem, não o homem para o sabá. “De sorte que o Filho do Homem é senhor também do sábado” (Marcos 2.23-28). Em outro lugar, Jesus acrescentou que ele e o seu pai continuavam a trabalhar até aquele dia (João 5.10-17). Paulo desenvolve esse ponto ao sustentar que Jesus é o cumprimento da lei da antiga aliança e, assim, o fim dessa lei (Romanos 10.4).

Outra passagem central para o entendimento luterano acerca da aplicabilidade continuada das exigências do Antigo Testamento é Colossenses 2.16-23:

Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados, porque tudo isso tem sido sombra das coisas que haviam de vir; porém o corpo é de Cristo. […] Se morrestes com Cristo para os rudimentos do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, vos sujeitais a ordenanças: não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro, segundo os preceitos e doutrinas dos homens? Pois que todas estas coisas, com o uso, se destroem. Tais coisas, com efeito, têm aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético; todavia, não têm valor algum contra a sensualidade.

Isso significa que nenhuma das leis da antiga aliança dadas distintamente a Israel são obrigatórias aos cristãos. Os luteranos creem que as leis da antiga aliança permanecem válidas para os cristãos na medida que elas concordem com a lei natural, isto é, estejam entrelaçadas no tecido da criação e escritas em nossos corações (para uma boa introdução a este assunto, ver J. Budziszewski, Written on the heart: the case for natural law [Downers Grove, Illinois, EUA: IVP Academic, 1997] [N.T.: Escrita no coração: em defesa da lei natural, sem tradução em português]). Todas as outras podem ser apropriadas na medida que sejam úteis e sirvam a um bom propósito, mas não podem ser tidas por obrigatórias.

A versão de Lutero

Contra esse pano de fundo, podemos considerar as explicações de Lutero acerca do mandamento do sabá tal como encontrado em Êxodo 20.9-11. O texto completo diz o seguinte:

Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra. Mas o sétimo dia é o sábado do SENHOR, teu Deus; não farás nenhum trabalho, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o forasteiro das tuas portas para dentro; porque, em seis dias, fez o SENHOR os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso, o SENHOR abençoou o dia de sábado e o santificou.

Lutero encontrou a sua pista para a interpretação no versículo 11. Ao fazê-lo, ele concentrou-se no “descanso” e na palavra divina de “benção”.

Primeiro, Lutero traduz a palavra sabbath como “dia do descanso”. Deus descansou e “tomou alento” no sétimo dia (Êxodo 31.17). A igreja medieval havia frequentemente interpretado sabbath com o significado de “dias de festa” ou “dias santos”. Esses eram os dias designados pela igreja como dias santos ou separados para especial observância. Obviamente, isso incluía os domingos, mas não exclusivamente. Então, uma série de regulações era imposta, as quais tornavam a observância do mandamento mais um fardo do que uma bênção. Em um sermão pregado em dezembro de 1528, Lutero observou que os homens e os animais necessitam, igualmente, de um tempo para descansarem e tomarem alento. Uma pessoa não pode trabalhar 24 horas por dia, 7 dias por semana, 365 dias por ano, sem parar. O fato de se descansar é mais importante do que quando se descansa. Então, se não pode ser no domingo, então descanse em algum outro dia.

Segundo, como alguém santifica (torna santo) o dia do descanso? Aqui Lutero toma o tema de Êxodo 20.11, que diz: “o SENHOR abençoou o dia de sábado e o santificou”. Em outras palavras, a palavra de bênção proferida por Deus tornou o dia santo. Novamente, isso contrastava com a tendência da igreja medieval de considerar santo o espaço de uma igreja pelo fato de, abaixo do altar, estarem enterrados os restos mortais de algum santo. Contra esse pano de fundo, Lutero reivindicava que apenas a Palavra de Deus torna todas as coisas santas. A Palavra realiza aquilo que ela diz. Quando Deus diz: “haja luz”, há luz. Quando Deus diz: “eu o perdoo”, você está perdoado. Então como nós tornamos santo o dia de descanso? Atendendo à Palavra de Deus. A Palavra tornou o dia santo, assim como nos tornou santos. Não se pode fazer nada melhor do que separar algum tempo e ocupar-se com a Palavra de Jesus Cristo.

E hoje?

Toda tradição é moldada pela época que deu origem à sua história e aos seus valores. Isso certamente é verdade com respeito à minha própria tradição luterana. A redescoberta do evangelho por Lutero e sua desavergonhada rejeição das amarras do legalismo continua a moldar a abordagem da minha tradição quanto à lei e às regulações humanas. Há mais a ser dito? Certamente. Em particular, penso que o relato do sétimo dia da criação em Gênesis provê algumas proveitosas diretrizes sobre como nós pensamos acerca de nós mesmos, de nosso lugar na narrativa da criação e da renovação final da criação em Jesus Cristo.

De várias maneiras, o sétimo dia marca o término e a culminação da criação. Todas as coisas conduzem a ele. Deus gostou do que havia feito e se deleitou na criação (ver o útil trabalho de Norman Wirzbs, Living the Sabbath [Grand Rapids: Brazos Press, 2006] [N.T.: Vivendo o sábado, sem tradução em português]). Ele nos convida, nós que fomos feitos à sua imagem, a fazermos o mesmo. Como é óbvio, em Adão nós bagunçamos as coisas. Deus prometeu restaurar o seu povo e a sua criação. Jesus veio endireitar as coisas. Ele veio reivindicar e restaurar a sua criação. Ao morrer, ele suportou a maldição. Ao ressuscitar, a nova criação irrompeu do meio da primeira criação.

Não é de admirar, então, que a igreja primitiva tenha considerado o domingo – o dia da ressurreição de Jesus – como o oitavo dia da criação. A ressurreição de Cristo não deixa para trás a primeira criação e, com ela, o sétimo dia do descanso. Em vez disso, a primeira criação e o seu sabá são, agora, alcançados na ressurreição de Cristo e encontram o seu cumprimento na nova criação. Assim como Deus nos convocou a compartilhar do seu deleite sobre a criação original, ele agora nos convoca a compartilhar do seu deleite sobre a nova criação que se revelará, de modo completo e definitivo, quando Cristo retornar em glória. Naquele dia, nós entraremos no eterno descanso sabático (ver Hebreus 4.4-11), no qual haveremos de nos alegrar por tudo o que Deus fez.

Nesse meio tempo, precisamos redescobrir a importância e o valor do descanso sabático. Temos separado tempo para descansar nosso corpo e nossa mente? Temos separado tempo para nos deleitarmos e satisfazermos na feitura de Deus? Com muita frequência, em nossa sociedade viciada em trabalho, nós corremos pela vida cegos para as muitas maravilhas da criação divina. Falhamos em observar tudo o que Deus fez. A redenção nos restaura para Deus, uns para os outros e para a criação. O sabá nos convida ao deleite em tudo o que Deus fez (a criação e a sua renovação) e, assim, a tomarmos alento.

Nota:

[1] N.E.: Sabá é a transliteração em português do termo em hebraico. Alguns textos usam sábado ou sabbath (transliteração em inglês). Optamos por sabá por ser um termo em português e distinto do dia da semana. Contudo, não se deve confundir com a rainha de Sabá de 1 Reis 10:4.

Observação:

Este artigo é parte da série “Sabá: O Debate Incansável”, na qual serão publicados artigos defendendo diferentes posições para que nosso leitor tenha uma compreensão mais abrangente sobre o assunto. Sendo assim, a postagem de uma posição específica não indica o posicionamento oficial deste ministério. Veja a lista de artigos sobre o assunto:

1) Sabá: Definindo o Debate
2) O Sabá do Sétimo Dia
3) O Sabá Puritano
4) O Sabá Luterano
4) O Sabá Realizado
5) Sabá: um Chamado para Descansar em Cristo


Autor: Charles P. Arand

Dr. Charles P. Arand é professor e catedrático do Departamento de Teologia Sistemática no Concordia Seminary em Saint Louis, Missouri, EUA. Ele é coautor do livro The Genius of Luther’s Theology: A Wittenberg Way of Thinking for the Contemporary Church [N.T.: O gênio da teologia de Lutero: o modo Wittenberg de pensar para a igreja contemporânea, sem tradução em português].

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