O trecho abaixo foi extraído com permissão do livro Profetas, de Augustus Nicodemus, Editora Fiel (em breve).
No Novo Testamento, os que viram e ouviram o Deus encarnado e foram enviados por ele para testemunhar a respeito do que os seus olhos e ouvidos haviam tido o privilégio de captar não foram os profetas, mas os apóstolos. Pedro, em nome dos Doze, disse: “[…] não podemos deixar de falar das coisas que vimos e ouvimos” (At 4.20). João, da mesma forma, escreveu: “o que temos visto e ouvido anunciamos também a vós outros […]” (1Jo 1.3). Os apóstolos, portanto, foram os responsáveis por dar continuidade ao ministério dos profetas do Antigo Testamento, e esse ministério, assim como o dos seus predecessores, era revestido de autoridade sobre todo o povo de Deus.
Já que Deus usou os apóstolos como canais para comunicar sua mensagem inspirada e infalível de redenção para o seu povo, eles é que são os sucessores dos profetas do passado. São os apóstolos quem revelam ao povo de Deus as próximas etapas da chamada História da Redenção, a macronarrativa que abrange não apenas a totalidade da história bíblica, mas que abarca toda a história da humanidade, do Éden à Nova Jerusalém, de Gênesis 1.1 a Apocalipse 22.21.
No Novo Testamento, quem relata profeticamente que, um dia, Cristo voltará e que os crentes que já tiverem morrido ressuscitarão e se encontrarão com ele nos ares? É um apóstolo — Paulo (cf. 1Ts 4.13-18). Quem, no livro de Apocalipse, antevê a glória dos santos no estado eterno e a relata para nós? Mais uma vez, é um apóstolo — João. Quem nos antecipa que, por ocasião da vinda do Senhor, os céus e a terra atuais serão desfeitos pelo fogo, aos quais se seguirão novos céus e uma nova terra? Sim, é um apóstolo quem o diz — no caso, Pedro (cf. 2Pe 3.5-13).
Os profetas cristãos
Todavia, ainda que os apóstolos fossem os sucessores dos profetas do Antigo Israel, o Novo Testamento deixa claro que, na Igreja Primitiva, havia profetas entre o povo de Deus que eram distintos dos apóstolos e estavam debaixo da autoridade deles. Os profetas do Novo Testamento não mais tinham autoridade universal sobre toda a comunidade pactual, mas atuavam sob a supervisão daqueles que haviam herdado a autoridade profética de seus predecessores da Antiga Aliança. Quem, então, eram os profetas do Novo Testamento? O que eles faziam exatamente? Em grande medida, este livro é uma tentativa de responder a essas perguntas, estabelecendo cuidadosamente a distinção entre os profetas do Novo Testamento e os do Antigo, assim como a diferença entre aqueles e os apóstolos.
Nenhuma das revelações que encontramos no Novo Testamento foi escrita ou proferida por um dos profetas que atuavam nesse período. Por si só, esse é um dado sugestivo, pois um texto profético escrito tem a finalidade de influenciar autoritativamente toda uma comunidade, e não apenas uma parcela dela. A total ausência de obras produzidas pelos profetas cristãos do primeiro século parece indicar que eles não queriam que as suas palavras, uma vez colocadas no papel, circulassem livremente por entre as igrejas e fossem recebidas por elas como a plena manifestação da vontade de Deus para toda a comunidade cristã. Os crentes desse período pareciam também estar conscientes de que a natureza das palavras dos muitos profetas de seu tempo era bem diferente das palavras dos apóstolos, já que eles nunca se importaram em registrar, copiar e colecionar os discursos dos profetas, mas se mostraram muito cuidadosos e diligentes na preservação e transmissão dos escritos apostólicos.
Além disso, há outras diferenças marcantes entre os profetas que viveram antes e depois de Cristo. O ministério dos profetas cristãos, em primeiro lugar, possuía uma abrangência muito mais diminuta do que o dos profetas veterotestamentários; pois, enquanto estes se dirigiam a toda a comunidade de Israel ou Judá, aqueles dedicavam-se predominantemente a igrejas locais, com a finalidade principal de edificá-las, exortá-las e consolá-las. Em segundo lugar, é preciso que se note que os discursos dos profetas da era apostólica não deviam ser imediatamente recebidos como detentores da autoridade divina, ao contrário das palavras dos profetas do Antigo Testamento ou de um apóstolo do Novo Testamento. Os profetas cristãos deviam ser colocados à prova. A sua fala devia ser cuidadosamente avaliada pela igreja local, a qual tinha a responsabilidade de definir se, de fato, ela provinha de Deus e estava em conformidade com o ensino apostólico (1Co 14.29).
O carisma profético consta em todas as listas de dons do Novo Testamento (Rm 12.6-8; 1Co 12.4-11; 1Co 12.28), excetuada a que encontramos em 1 Pedro 4.10-11. Embora os profetas cristãos costumassem transmitir para a igreja local a que pertenciam uma mensagem que o próprio Deus colocara em sua boca, também havia profetas itinerantes, os quais circulavam por entre as igrejas do primeiro século e lhes entregavam as palavras que recebiam. O livro de Atos menciona alguns profetas itinerantes — Ágabo (At 11.27-28; 21.10-11), Silas e Judas (At 15.32) —, mas, de maneira geral, os profetas estavam mais costumeiramente ligados a congregações locais, cada uma das quais podia abrigar um número razoavelmente considerável de profetas.