Às vezes, ministérios em campus universitários pedem-me que fale aos seus estudantes. Em diversas ocasiões, tenho começado assim minhas considerações: “Se você confessa ser um cristão e não é membro da igreja que freqüenta com regularidade, preocupa-me o fato de que você pode estar indo para o inferno”.
Certamente, esse é o tipo de afirmação que atrai a atenção deles.
Ora, estou procurando causar uma reação chocante? Acho que não. Estou tentando amedrontá-los para que se tornem membros da igreja? Não, de modo algum. Estou dizendo que unir-se a uma igreja faz de alguém um cristão? Certamente não. Jogue fora e despreze qualquer livro ou pregador que diz isso.
Então, por que começo com esse tipo de advertência? Porque desejo que eles percebam a importância e a necessidade de uma igreja local saudável na vida cristã e comecem a compartilhar a paixão pela igreja que caracteriza tanto a Cristo como os seus seguidores.
No ocidente (e outros lugares?), muitos cristãos tendem hoje a ver seu cristianismo como um relacionamento pessoal com Deus e não mais do que isso. Eles sabem que esse relacionamento pessoal tem implicações na maneira como devem viver. Contudo, inquieta-me o fato de que muitos cristãos não compreendem como esse relacionamento primordial com Deus necessita de inúmeros relacionamentos pessoais secundários — os relacionamentos que Cristo estabeleceu entre nós e seu corpo, a Igreja. Deus não deseja que esses relacionamentos sejam escolhidos de conformidade com nossos caprichos entre os muitos cristãos que estão “lá fora”. Ele quer estabelecer-nos em um relacionamento com um corpo de pessoas de carne e osso, que pisarão nos seus calos.
Por que me preocupo com fato de que, se você confessa ser um cristão, mas não é um membro firme da igreja local que freqüenta, pode estar indo para o inferno? Por um momento, pense comigo no que significa ser um cristão.
O que é um cristão?
Um cristão é alguém que, antes e acima de tudo, foi perdoado de seu pecado e reconciliado com Deus, o Pai, por meio de Jesus Cristo. Isso acontece quando a pessoa se arrepende de seus pecados e coloca sua fé na vida perfeita, na morte substitutiva e na ressurreição de Jesus Cristo, o Filho de Deus.
Em outras palavras, um cristão é alguém que se esgotou a si próprio e todos os seus recursos morais. Reconheceu que, em desafio à lei de Deus, havia dedicado sua vida à adoração e ao amor às coisas e não a Deus — coisas como a profissão, a família, aquilo que o dinheiro pode comprar, a opinião das pessoas, a honra de sua família e da comunidade, o favor dos falsos deuses de outras religiões, os espíritos deste mundo ou mesmo as coisas boas que uma pessoa pode fazer. Também reconheceu que esses ídolos são senhores duplamente condenatórios. Seus apetites nunca são satisfeitos nesta vida. E provocam a ira justa de Deus na vida por vir, uma morte e um julgamento, dos quais o cristão experimenta um pouco nas infelicidades deste mundo.
Portanto, um cristão sabe que, se tivesse de morrer hoje à noite e comparecer diante de Deus, e Ele lhe dissesse: “Por que devo permitir que você entre na minha presença?” O cristão diria: “Senhor, não deves deixar-me entrar. Tenho pecado contra Ti e tenho para contigo uma dívida que sou incapaz de pagar”. No entanto, ele não pararia aí. Continuaria: “Mas, por causa de tuas grandes promessas e misericórdia, confio no sangue de Jesus Cristo que foi derramado como substituto por mim e pagou o meu débito moral, satisfazendo as tuas exigências santas e justas e removendo a tua ira contra o meu pecado!”
Com base na garantia de ser declarado justo em Cristo, o cristão é alguém que descobriu o começo da liberdade da escravidão ao pecado. Os ídolos e outros deuses nunca podiam ser satisfeitos, e seus apetites, plenamente atendidos; mas a satisfação de Deus quanto à obra de Cristo implica que a pessoa comprada da condenação por meio da obra de Cristo agora é livre! Pela primeira vez, o cristão é livre para virar suas costas ao pecado, não para substituí-lo servilmente com outro pecado, e sim com o desejo pelo próprio Cristo e pela norma de Cristo para a sua vida; este desejo é outorgado pelo Espírito. Adão tentou remover Deus do trono e tornar-se divino. O cristão, porém, se regozija no fato de que Cristo está no trono. Medita na vida de perfeita submissão de Jesus à vontade e às palavras do Pai, procurando ser semelhante ao seu Salvador.
O cristão é, primeiramente, alguém que em Cristo foi reconciliado com Deus. Cristo satisfez a ira de Deus, e o cristão é agora declarado justo diante dEle, chamado a uma vida de retidão, e vive na esperança de uma dia estar diante da majestade de Deus, no céu.
E isso não é tudo! Em segundo lugar, o cristão é alguém que, pela virtude de sua reconciliação com Deus, foi reconciliado com o povo de Deus. Você lembra a primeira história narrada na Bíblia depois da queda de Adão e Eva e sua expulsão do jardim? É a história do primeiro ser humano sendo assassinado por outro — Caim matando Abel. Se o ato de tentar remover Deus do trono é, em si mesmo, uma tentativa de colocarmos a nós mesmos ali, então, certamente não deixaremos que outro ser humano ocupe esse lugar. Não lhe daremos nem uma chance. A atitude de Adão em quebrar a comunhão com Deus resultou num rompimento imediato da comunhão entre os seres humanos. Todo homem vive para si mesmo.
Não deve nos surpreender o fato de que Jesus disse: “Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas”: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento e o teu próximo como a ti mesmo (cf. Mt 22.34-40). Os dois mandamentos andam juntos. O primeiro produz o segundo, e este comprova o primeiro.
Ser reconciliado com Deus por meio de Cristo significa ser reconciliado com todos aqueles que estão reconciliados com Deus. Após descrever, na primeira metade de Efésios, a grande salvação que Deus nos deu em Cristo Jesus, Paulo passou a descrever, na segunda metade da epístola, o que essa grande salvação significa nos relacionamentos entre judeus e gentios e, por extensão, entre todos os que estão em Cristo. Ele escreveu:
Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos fez um; e, tendo derribado a parede da separação que estava no meio, a inimizade… para que dos dois criasse, em si mesmo, um novo homem, fazendo a paz, e reconciliasse ambos em um só corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo por ela a inimizade (Ef 2.14-16).
Todos os que pertencem a Deus são “concidadãos” e membros da “família de Deus” (v.19). Estamos unidos com Cristo no “santuário dedicado ao Senhor” (v. 21). Essas são apenas algumas das analogias dentre as que podemos escolher.
Talvez o meditar na analogia de uma família nos ajude a perceber que estar reconciliado com Deus também significa estar reconciliado com o seu povo. Se você é um órfão, não adota os pais; antes, são eles que o adotam. Se os seus pais adotivos se chamam Oliveira, agora, o seu jantar é sempre junto dos pais e irmãos da família Oliveira. À noite, você compartilha de uma cama com seus irmãos na família Oliveira. Quando, na escola, o professor faz a chamada, e diz: “Oliveira”, você levanta a mão, como o fazia o seu irmão mais velho e como o fará sua irmã mais nova. E faz isso não porque decidiu cumprir o papel de um Oliveira, e sim porque um dia alguém foi ao orfanato e disse: “Você será um Oliveira”. Naquele dia você se tornou filho de alguém e irmão de outros.
Bem, o seu nome não é Oliveira, e sim Cristão, designado de acordo com o nome dAquele por meio de quem você foi adotado — Cristo (Ef 1.5). Agora você faz parte de toda a família de Deus. “Tanto o que santifica como os que são santificados, todos vêm de um só” (Hb 2.11).
Esta não é uma família disfuncional, cujos membros não conhecem um ao outro. É uma comunhão. Quando Deus o chamou à “comunhão de seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor” (1Co 1.9), Ele também o chamou à “comunhão” com toda a família (1Co 5.2).
E não é uma comunhão formal e requintada. É um corpo que se mantém unido por meio de nossas decisões individuais, mas também por algo que está muito além da decisão humana — a obra e a pessoa de Cristo. Se você dissesse: “Não faço parte da família”, isso seria tão insensato como se arrancasse a sua própria mão ou nariz. Conforme Paulo disse aos cristãos de Corinto: “Não podem os olhos dizer à mão: Não precisamos de ti; nem ainda a cabeça, aos pés: Não preciso de vós” (1Co 12.21).
Em resumo, é impossível respondermos à pergunta “o que é um cristão?”, sem entrarmos numa conversa sobre a igreja. É impossível, pelo menos, de acordo com a Bíblia. E não somente isso; se não acabarmos falando sobre a igreja, é difícil nos mantermos fiéis a qualquer das metáforas referentes a ela, porque o Novo Testamento usa tantas: uma família, uma comunhão, um corpo, uma noiva, um povo, um templo, uma senhora e seus filhos. E o Novo Testamento nunca retrata o cristão como alguém que existe fora da comunhão da igreja por muito tempo. A igreja não é realmente um lugar. É um povo — o povo de Deus em Cristo.
Quando alguém se torna um cristão, ele não se une a uma igreja local tão-somente porque isso é um hábito que contribui à maturidade espiritual. Ele se une a uma igreja local porque isso é a expressão daquilo em que Cristo o tornou — um membro de seu corpo. Estar unido a Cristo implica estar unido a todos os cristãos. Contudo, essa união universal precisa ter uma existência viva e atuante em uma igreja local.
Às vezes, os teólogos se referem à distinção entre a igreja universal (todos os cristãos, de todos os lugares, em toda a história) e a igreja local (as pessoas que se reúnem em um lugar específico para ouvir a Palavra sendo pregada, praticar o batismo e celebrar a Ceia do Senhor). À exceção de algumas referências à igreja universal (tal como Mateus 16.18 e grande parte de Efésios), em sua maioria o Novo Testamento apresenta referências à igreja local, como nestas palavras de Paulo: “À igreja de Deus que está em Corinto”; “Às igrejas da Galácia”.
O que afirmamos em seguida é menos intenso, mas importante. O relacionamento entre nossa membresia na igreja universal e nossa membresia na igreja local é um pouco semelhante ao relacionamento entre a justiça que Deus nos outorga mediante a fé e a prática da justiça em nossa vida diária. Quando, pela fé, nos tornamos cristãos, Deus nos declara justos. Mas também somos chamados a praticar a justiça. Uma pessoa que continua a viver alegremente na injustiça faz-nos duvidar se ela realmente possui a justiça de Cristo (cf. Rm 6.1-18; 8.5-14; Tg 2.14-15). Esse princípio também se aplica àqueles que se recusam a comprometer-se com uma igreja local. Comprometer-se com uma igreja local é o resultado natural — confirma aquilo que Cristo fez. Se você não tem qualquer interesse em se comprometer verdadeiramente com um grupo de cristãos que ensinam a Bíblia e crêem no evangelho, deve perguntar a si mesmo se, de fato, pertence ao corpo de Cristo! Ouça com atenção o escritor da Epístola aos Hebreus:
“Guardemos firme a confissão da esperança, sem vacilar, pois quem fez a promessa é fiel. Consideremo-nos também uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras. Não deixemos de congregar-nos, como é costume de alguns; antes, façamos admoestações e tanto mais quanto vedes que o Dia se aproxima. Porque, se vivermos deliberadamente em pecado, depois de termos recebido o pleno conhecimento da verdade, já não resta sacrifício pelos pecados; pelo contrário, certa expectação horrível de juízo e fogo vingador prestes a consumir os adversários” (Hb 10.23-27).
Se a nossa condição diante de Deus é de fato autêntica, isto se transportará às nossas decisões diárias, ainda que o processo seja lento e cheio de passos errados. Deus realmente muda o seu povo. Isso não é maravilhoso? Portanto, amigo, não seja complacente com uma idéia vaga de que você possui a justiça de Cristo, se não está seguindo uma vida de retidão. De modo semelhante, por favor, não se deixe enganar por um conceito vago sobre a igreja universal, se você não está buscando esse tipo de vida em uma igreja local.
Exceto em raras circunstâncias, um verdadeiro cristão edifica sua vida na vida de outros por meio da comunhão de uma igreja local. Ele sabe que ainda não “chegou lá”. Ainda é um ser caído e necessita da responsabilidade e da instrução daquele corpo de pessoas chamado igreja. E essas pessoas necessitam dele.
Quando nos reunimos para adorar a Deus, exercitar o amor e praticar boas obras uns para com os outros, demonstramos na vida real, podemos assim dizer, o fato de que Deus nos reconciliou consigo mesmo e uns com os outros. Demonstramos ao mundo que fomos mudados, não primariamente porque memorizamos versículos bíblicos, oramos antes das refeições, damos o dízimo de nosso salário e ouvimos estações de rádio evangélicas, e sim porque mostramos de maneira crescente uma disposição de suportar, perdoar e amar um grupo de pecadores semelhantes a nós.
Você e eu não podemos demonstrar amor, alegria, paz, paciência ou bondade vivendo isoladamente. Ora, demonstramos essas virtudes quando as pessoas com as quais nos comprometemos dão boas razões para que não as amemos e, apesar disso, nós as amamos.
Você entende? É exatamente ali — no meio de um grupo de pecadores que se comprometeram a amar uns aos outros — que o evangelho é demonstrado. A igreja dá uma apresentação visual do evangelho quando perdoamos uns aos outros como Cristo nos perdoou; quando nos comprometemos uns com os outros como Cristo se comprometeu conosco e quando entregamos nossas vidas uns pelos outros como Cristo entregou sua vida por nós.
Juntos podemos demonstrar o evangelho de um modo que não podemos fazê-lo sozinhos.
Muitas vezes ouço cristãos falando a respeito de seus diferentes dons espirituais. Mas pergunto-me com que frequência eles consideram o fato de que Deus lhes deu tantos dons exatamente para serem usados em reações ao pecado de outros cristãos na igreja. O meu pecado dá-lhe oportunidade de exercer seus dons.
Portanto, una um grupo de homens e de mulheres, jovens e idosos, negros e brancos, asiáticos e africanos, ricos e pobres, iletrados e instruídos, com todos os seus diversos talentos, dons e capacidades. Assegure-se de que todos eles reconhecem que são pecadores, fracos e salvos tão-somente pela graça. O que são essas coisas? Os ingredientes essenciais para formar uma igreja!
Se o seu alvo é amar todos os cristãos, permita-me sugerir que você trabalhe para atingi-lo primeiramente por comprometer-se com um grupo concreto de verdadeiros cristãos, com todas as suas tolices e fraquezas. Comprometa-se com eles por oitenta anos, apesar de todas as dificuldades. Depois, procure-me, e conversaremos sobre o seu progresso no amar todos os cristãos, em todos os lugares.
Então, quem é responsável por pensar sobre o que deveria ser aquele ajuntamento de pessoas chamado igreja? Os pastores e líderes da igreja? Com toda a certeza. Todos os outros cristãos? Sem dúvida alguma. Ser um verdadeiro cristão significa preocupar-se com a vida e saúde do corpo de Cristo, a igreja. Significa preocupar-se com o que a igreja é o que ela deveria ser, porque você, cristão, pertence à igreja.
De fato, nos interessamos pela igreja porque ela é o próprio corpo de nosso Salvador. Você já notou as palavras que Jesus usou para dirigir-se a Saulo (que em breve seria chamado Paulo), o perseguidor dos cristãos, quando o confrontou na estrada de Damasco? “Saulo, Saulo, por que me persegues?” (At 9.4). Jesus se identifica tão intimamente com sua igreja, que se refere a ela como a Si mesmo! Você se identifica com aqueles com os quais o Salvador se identifica? Seu coração compartilha das afeições do coração do Salvador?
Há pouco tempo recebi uma carta de um pastor que expressou seu desejo de que os membros de sua igreja soubessem o que deve ser uma igreja. Esse homem humilde deseja uma igreja que o ajude a sentir-se responsável por ela, enquanto a lidera em direção à graça e à piedade. Esse pastor entende o padrão do Novo Testamento. Compreende que um dia Deus o chamará a prestar contas da maneira como pastoreou sua igreja. E, como um pastor fiel, ele deseja que todos os membros de seu rebanho saibam que, um dia, também serão chamados a prestar contas da maneira como amaram uns aos outros, bem como a ele.
Deus perguntará a cada membro do corpo: “Você se alegrava com os outros membros do corpo, quando eles estavam alegres? Chorou com os que choravam? Tratou os fracos como membros indispensáveis e, com honra especial, aqueles que muitos achavam menos dignos de honra? Prestou honra dobrada àqueles que o lideravam e ensinavam?” (cf. 1Co 12.22-26; 1Tm 5.17.)
Cristão, você está preparado para o dia em que Deus o chamará a prestar contas da maneira como amou e serviu a família da igreja, incluindo os seus líderes? Sabe o que Deus afirma a respeito da natureza da igreja?
E pastor, você tem preparado o seu rebanho para a prestação de contas, ensinando-lhes o que a igreja deve ser? Você lhes tem ensinado que serão responsabilizados por afirmarem ou não o ensino do evangelho?
Traduzido por: Wellington Ferreira
Revisão: Franklin Ferreira e Tiago Santos
Retirado do livro: O que é uma Igreja Saudável – Cap. 1, 1ª Edição – São José dos Campos. Editora Fiel, 2009.