Deus criou por seu poder todas as coisas do nada, e, originalmente, toda a criação era boa. Essa noção da criação do nada é importantíssima para a fé cristã. A expressão latina é ex-nihilo. Deus não precisou de nada preexistente para criar. O Deus Eterno cria tudo do nada, sem precisar de nenhuma ajuda. Portanto, não havia nenhuma matéria prévia ao lado de Deus na criação. Deus cria a matéria. Aliás, Deus cria o próprio tempo. Deus cria a história. Tudo foi criado por ele. Gênesis e vários dos Salmos, no Antigo Testamento, ensinam que Deus simplesmente deu um comando e tudo veio à existência, todas as coisas vieram do nada. A criação não é e nem pode ser divinizada. Nós não somos parte da divindade. Não há em nós “partículas” de Deus. Esse tipo de noção é gnosticismo, não é uma noção calcada na Escritura. Seres finitos não podem comportar um ser infinito (finitum non capax infiniti). Somente em Jesus Cristo o finito é unido, sem confusão, sem mudança, sem mistura, sem divisão, ao infinito. Deus criou toda a criação muito boa. Gênesis 1.1-31 afirma esta verdade seis vezes. Deus cria e diz: “É bom” (Gn 1.10,12,18,21,25,31). Deus cria, e é bom. E no final do relato bíblico, Deus cria e diz: “É muito bom”. E Deus cria todas as coisas para que estas anunciem sua glória, amor e bondade. Como Tomás de Aquino escreveu: “Aberta a mão pela chave do amor, as criaturas surgiram”.[i] A partir dessa ênfase do Credo, nós não podemos rejeitar a criação. Somos chamados a amar a criação de Deus. Porque a criação, ainda que maculada pelo pecado, é parte da criação boa que Deus fez, nas suas origens. Então, o cristão não deve ser estranho ao prazer, e este pode ser santo. O prazer do amor conjugal entre um homem e uma mulher, o prazer de uma boa brincadeira, o prazer de olhar uma pintura bonita e dizer: “Oh!”. A criação não é estranha ou repulsiva a cristãos que confessam o Credo.
Podemos lembrar do hino de Francisco de Assis, “Vós, criaturas de Deus Pai” (HCC 224), que lembra como Deus ordenou toda a criação para a sua glória:
Vós, criaturas de Deus Pai, todos erguei a voz, cantai: Aleluia! Aleluia!
Tu, sol dourado a refulgir. Tu, lua em prata a reluzir, Oh, louvai-o! Oh, louvai-o!
Aleluia! Aleluia! Aleluia!
Tu, água pura a borbulhar, em melodias vem cantar: Aleluia! Aleluia!
Tu, fogo vivo, aquecedor, infunde em todos novo ardor; Oh, louvai-o! Oh, louvai-o!
Aleluia! Aleluia! Aleluia!
Terra que a todos dás vigor, bem forte entoa o teu louvor: Aleluia! Aleluia!
Frutos e flores, juntos dai a glória a Deus, Senhor e Pai. Oh, louvai-o! Oh, louvai-o!
Aleluia! Aleluia! Aleluia!
Filhos e filhas do Senhor, vinde adorá-lo com fervor:
Aleluia! Aleluia!
Dai glória ao Filho, glória ao Pai, e ao Santo Espírito louvai!
Aleluia! Aleluia! Aleluia!
Eram as nações ao redor de Israel que desprezavam a criação. Eram os gnósticos do II e III séculos que ignoravam a criação. O texto de 1João 4.1-3 afirma que quem não crê que Jesus veio na carne, é do anticristo, é de um outro espírito,“o espírito do anticristo”. Este tem de ser rejeitado pelos cristãos. Portanto, o cristão não é estranho à criação. O cristão luta para redimir a criação porque ele sabe que ela foi criada originalmente boa, e como aprendemos em Romanos 8.22-23,“toda a criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até agora. E não somente ela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo”. Portanto, não esqueçamos: a criação foi criada do nada pela palavra de Deus, e a criação era muito boa.
É por isso que cristãos têm de se envolver em trabalhos seculares. Um anseio legítimo é que os melhores rapazes ingressem num ministério cristão, servindo como missionários, professores de teologia, escritores, mas Deus é quem concede essas vocações segundo sua liberdade. Então, se Deus concedeu a alguns de nós uma vocação secular, que estes trabalhem nela como para Deus. Porque, de certa forma, se aqueles que têm um chamado secular trabalham com paixão, com garra, com amor — não importa o tipo de trabalho, desde que seja um trabalho digno — este trabalha para antecipar a volta de Cristo, quando a criação será erradicada de pecado, quando virmos descer o novo céu e a nova terra, a Nova Jerusalém.
O Credo afirma que a criação veio do nada. A criação não deriva de Deus, a criação não é divinizada. Aqui precisamos rejeitar noções conectadas com os mestres da prosperidade, em que eles incitavam aquelas pessoas que os assistiam a colocar a mão sobre a cabeça, a mão sobre o coração, e a dizer que elas eram “deuses”. Tal posição é loucura. Esse foi justamente o problema da serpente, em Gênesis 3.4-5: “Então, a serpente disse à mulher: É certo que não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal”. Há uma distinção qualitativa infinita, abissal, entre o Deus altíssimo e nós, criaturas finitas. Ele é o Criador, nós somos criaturas.
É interessante que a estrutura do Credo nos ensina a humildade neste artigo. Onde o ser humano é mencionado no Credo? Não na doutrina de Deus criador. O ser humano é mencionado com a citação de Maria e seu papel na encarnação, bem como com o procurador romano Pôncio Pilatos e seu envolvimento na morte de Cristo. Qual é o ponto aqui? O Credo destaca que é Deus quem está no centro. O Deus-Trindade é quem está no centro, não a criação, nem mesmo as criaturas. Então, quando o texto do Credo fala sobre a boa criação de Deus, ele fala da criação em referência ao Criador.
O que Deus criou é teatro para a glória dele. A criação foi manchada pelo pecado. A criação, em alguma medida, é um imenso campo de batalha, mas é na criação que temos a oportunidade de glorificar a ele. Hoje se tornou moda desprezar o cristianismo. Estamos sendo confrontados por uma cultura hostil. Como escreve Stephen McAlpine: “Se os últimos cinco ou seis anos servem como indicador, a cultura (leia-se: a estrutura de elite que guia a cultura) está cada vez mais interessada em trazer a igreja de volta à praça pública. Sim, você ouviu direito. Mas não para dar-lhe ouvidos, e sim, para esfolá-la, expor seus reais e supostos abusos e deixá-la nua e trêmula ante uma multidão ensandecida e escarnecedora”.[ii] Mas experimente pensar na Europa sem as catedrais medievais. Experimente pensar na Europa sem, pelo menos, trinta universidades que foram fundadas na Idade Média e na Reforma. O que seria a Europa ou mesmo o Ocidente sem o cristianismo? Pense em explicar a Europa sem Rembrandt Harmenszoon, Felix Mendelssohn, Johann Sebastian Bach, Wolfgang Mozart. Tente pensar na Europa sem o conceito de república, sem liberdade de imprensa e religião, e tente pensar no resto do mundo sem todos esses benefícios da fé cristã.
Pense, por exemplo, na Catedral de Notre Dame, em Paris, na França, em como atrai centenas de milhares de turistas todos os anos. Esta catedral gótica começou a ser construída em meados do século XII. Uma catedral construída, detale após detalhe, para a maior glória de Deus. Cada detalhe em sua arquitetura comunica algum tema importante para a fé cristã. Não temos espaço para tratar de arquitetura litúrgica, não é o caso agora.[iii] O ponto é que o mundo é teatro da glória de Deus. Nós glorificamos a Deus não fugindo do mundo, buscando refúgio em mosteiros ou igrejas, não em isolamento, mas na criação. E agora recebemos uma santa liberdade para oferecer glória a Deus como marceneiros, pedreiros, arquitetos, donas de casa, mecânicos, engenheiros, professores, por meio das ciências humanas, das ciências biológicas, das ciências exatas. Nós temos a santa liberdade de fazer a glória de Deus conhecida lá fora, na criação. Se, de um lado, em nossos cultos aos domingos, nós antevemos o novo céu e a nova terra, nós somos, a partir desses cultos, empurrados para fazer do mundo o teatro onde a glória de Deus irá refulgir. Porque nós confessamos Deus,“Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra”.
Então, nesse sentido, pensando na estrutura completa do Credo, somos ensinados que Deus está no centro. Deus tem a primazia absoluta. É ele que reina sobre toda a criação, sobre a realidade. Tudo o que fazemos é gravitar em torno desse Deus. Tudo o que fazemos é um espetáculo para ele. Não é ele quem está no centro do palco, e nós assistindo-o; é justamente o contrário. Nós é que estamos desempenhando tarefas, nós é que estamos oferecendo um espetáculo para Deus — para lembrar o título de uma obra sobre um importante escritor puritano do século XVII, Christopher Love — nós é que celebramos um espetáculo para que ele receba toda a glória. É ele que assiste o que nós estamos oferecendo, não o contrário, tal como assistimos em algumas liturgias pobres, medíocres, infelizmente tão populares. Deus está no centro. O Credo é centrado no Pai, no Filho, no Espírito, no Deus que nós confessamos e cremos; não no ser humano. O ser humano só é mencionado neste documento uma única vez, da pior forma possível. Nem no contexto da criação o ser humano é mencionado, ele é mencionado por meio da citação a Pôncio Pilatos, simplesmente para marcar o tempo histórico, para marcar a data quando o nosso Salvador foi morto, sepultado e ressuscitado. Deus está no centro!
O artigo acima é um trecho extraído com permissão do livro Credo dos Apóstolos, de Franklin Ferreira, Editora Fiel.
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[i] Tomás de Aquino, In II Sent., prol. citado em Catecismo da Igreja Católica, p. 87.
[ii] Stephen McAlpine, “Cristão, Você Está Pronto para a Segunda Fase do Exílio?”, em IBRMEC (disponível em: <http://www.ibrmec.com.br/artigos/cristao-voce-esta-pronto-para-a-segunda-fase-do-exilio/> Acesso em: 31/07/2024).
[iii] Para mais informações e bibliografia sobre a arquitetura cristã, cf. Franklin Ferreira, A Igreja Cristã na História (São Paulo: Vida Nova, 2013), p. 147-50.