Hermenêutica bíblica pode ser definida como a abordagem que adotamos para interpretar o texto bíblico. Uma hermenêutica correta garante uma interpretação válida. Uma hermenêutica defeituosa incorre no risco de comunicação inadequada.
Uma vez que a Bíblia é o livro mais importante de todos os tempos, os intérpretes precisam recorrer à melhor hermenêutica possível ao interpretá-la.
Apresentamos dez orientações hermenêuticas que podem ajudar os estudantes da Bíblia a descobrir seus tesouros:
1. Leia a Bíblia como você lê qualquer outro livro (mas veja também o ponto seguinte). A Bíblia não foi escrita em um código secreto. Sua mensagem é salvadora e sublime, mas suas passagens são interpretadas corretamente quando se presta atenção a questões triviais, como significado de palavras, gramática, estrutura literária e contexto. Devemos ler a Bíblia em grandes blocos de texto, em vez de pequenos fragmentos aqui e ali. Se quisermos entendê-la bem, devemos lê-la diariamente e com toda a nossa atenção. Todas essas coisas são verdadeiras em relação a qualquer livro que procuramos entender bem.
É crucial ler a Bíblia no contexto. Tirar palavras bíblicas de seu contexto pode distorcer seu significado. Se estamos à procura de consolo na Escritura e nos fixamos em Miqueias 4.10: “Sofre dores e esforça-te”, podemos sentir-nos desnecessariamente piores. No contexto, essas são palavras de repreensão ao antigo Judá e se aplicam a nós somente se estamos nos rebelando contra Deus, como Judá estava. A Bíblia usa frequentemente metáfora, hipérbole e outros artifícios literários para comunicar sua mensagem. Outra vez, o contexto nos ajuda a ver quando esses artifícios são usados. Uma hermenêutica saudável se mostra atenta às convenções literárias operantes na Bíblia, como em todas as expressões literárias.
2. Busque um relacionamento pessoal com Deus, que nos deu a Bíblia e confirma sua verdade. A Bíblia é semelhante a outros livros, mas não completamente. Como notamos antes, trata-se da Palavra de Deus. É santa, significando que é distinta e separada de outras literaturas. A Bíblia não somente informa, como também torna sábios “para a salvação pela fé em Cristo Jesus” (2Tm 3.15) os leitores que são espontaneamente submissos à sua mensagem.
Um dos primeiros convertidos à fé cristã na África ficou perplexo com uma passagem de Isaías 53 (At 8.30-35). O evangelista Filipe foi enviado para ajudá-lo em seu entendimento. Filipe começou com os versículos problemáticos, depois “anunciou-lhe a Jesus” (v. 35). O etíope entendeu. Foi batizado, tornou-se um seguidor de Jesus e prosseguiu em “seu caminho, cheio de júbilo” (v. 39). A Escritura lhe apresentara um problema que exigia um entendimento que o levaria a um encontro pessoal com o Deus que deu a Escritura.
Grande parte da Bíblia é clara para o leitor bem-intencionado que emprega meios racionais em sua compreensão. Isso é o que queremos dizer quando falamos sobre a perspicuidade da Bíblia. No entanto, seu alvo mais profundo é conduzir os leitores ao conhecimento salvífico de Deus; e seu evangelho é claro para todo aquele que se achega ao texto com honestidade e toda a humildade. Nesse relacionamento pessoal, estabelecido pelo Espírito de Deus por meio do evangelho, temos garantia de entendimento satisfatório e crescente da Escritura.
3. Deixe o conhecido interpretar o desconhecido. A interpretação correta de quase todos os versículos da Bíblia é debatida por alguém em algum lugar. Surge a impressão de que a Escritura pode significar qualquer coisa que desejamos signifique. Podemos perder a esperança de chegar ao significado correto de qualquer parte da Bíblia.
Uma hermenêutica correta não permite que coisas incertas e obscuras anulem coisas que a Bíblia afirma com clareza. O livro de Jó levanta o problema do sofrimento humano — onde está Deus quando as pessoas sofrem? Mas a aparente ausência de Deus não anula a verdade bíblica de que ele está sempre com seu povo, mesmo nos piores momentos deles. Maria, mãe de Jesus, não pôde entender sua gravidez (Lc 1.34), mas confiou na palavra de Deus que lhe foi dirigida por meio do anjo (Lc 1.37). Alguns dos seguidores de Jesus duvidaram até mesmo quando ele ressuscitou dos mortos (Mt 28.17), mas isso não mudou a autoridade de Jesus nem a comissão de seus seguidores (28.18-20).
Passagens ou ensinos difíceis da Bíblia são frequentemente esclarecidos por passagens relacionadas que são menos problemáticas. No decurso do tempo, chegamos ao entendimento que soluciona a dificuldade.
4. Afirme a regra de fé (analogia fidei). Visto que Deus é verdadeiro, e a Escritura é sua Palavra, as doutrinas essenciais dessa Palavra formam uma estrutura para sua interpretação correta. Um versículo que afirma a humanidade de Jesus não contradiz, mas, em vez disso, complementa versículos que afirmam sua divindade. A suprema regra de fé afirma ambas as verdades sobre o Filho de Deus: ele é plenamente homem e plenamente Deus.
Em outras palavras, há uma estrutura doutrinária unificada dentro da qual as afirmações e os ensinos da Bíblia se unem. Cada passagem ou parte da Bíblia obtém significado dessa estrutura, ao mesmo tempo que alimenta com informações essa estrutura, a fim de torná-la mais completa e mais detalhada. Não existe uma única regra de fé mundial aprovada por todas as igrejas. No entanto, declarações como o Credo dos Apóstolos e o Credo Niceno são amplamente aceitas como descrições abrangentes e acuradas dos ensinos da Bíblia. Muitas igrejas têm confissões e catecismos que expressam em resumo sua regra de fé. Exemplos na igreja reformada incluem o Catecismo de Heidelberg (1563) e a Confissão de Fé, bem como os Catecismos de Westminster (1646). Essas afirmações não ditam o que as passagens individuais dizem, mas oferecem uma estrutura na qual podemos buscar o significado mais provável da Escritura, ainda que sejam um resumo do ensino da Palavra de Deus.
5. Deixe a Escritura interpretar a si mesma (analogia Scriptura). Muitos escritores da Bíblia e o próprio Senhor Jesus podem vistos como “provando” um ensino ao apelarem para a Bíblia. Jesus explicou a doutrina da ressurreição citando Moisés (Êx 3.6; Lc 20.37). Afirmou sua identidade como Senhor referindo-se a Salmos 110.1 (Lc 20.41-44). Em Romanos, Paulo comprova e explica sua mensagem evangélica (que chegou a ser escrita na forma de quatro evangelhos canônicos) ao se referir a dezenas de passagens do Antigo Testamento.
Hoje, muitas Bíblias têm referências correlatas que indicam semelhanças e convergências entre várias passagens bíblicas. Referências correlatas ilustram o princípio Scriptura sacra sui ipsius interpres (a Escritura Sagrada interpreta a si mesma). Quando você estiver labutando para definir o significado de uma passagem, procure ajuda em passagens relacionadas.
6. Coloque em prática o que a Escritura diz à medida que você for compreendendo-a. O livro de Tiago e muitas afirmações de Jesus enfatizam não somente o ato de conhecer a Escritura, mas também o de praticá-la (Jo 13.17; Tg 1.22-25). A Bíblia apresenta muitas questões difíceis e faz exigências supremas. Se insistirmos num entendimento total como a condição de compromisso com o Senhor, poderemos ficar paralisados indefinidamente. Jesus também disse: “Quem é fiel no pouco também é fiel no muito; e quem é injusto no pouco também é injusto no muito” (Lc 16.10). Até mesmo um entendimento limitado pode desenvolver-se rapidamente quando é colocado em prática de forma diligente. Do contrário, tanto o entendimento como o desejo de aprender podem esmaecer facilmente.
7. Seja consciente do “engano do pecado” (Hb 3.13). Satanás tentou Jesus com uma hermenêutica distorcida (Mt 4.6). Porque Jesus tinha uma interpretação melhor de sua situação e da Palavra de Deus, ele foi capaz de evitar o caminho que Satanás ofereceu. Paulo escreveu aos coríntios: “Receio que, assim como a serpente enganou a Eva com a sua astúcia, assim também seja corrompida a vossa mente e se aparte da simplicidade e da pureza devidas a Cristo” (2Co 11.3). Paulo já os havia advertido a não irem além do “que está escrito” (1Co 4.6), um aviso que muitos ignoraram.
Pedro admoestou que “os ignorantes e instáveis deturpam” os escritos de Paulo, “como também deturpam as demais Escrituras, para a própria destruição deles” (2Pe 3.16). Ninguém gosta de ouvir que está errado, porém uma mensagem básica de toda a Escritura é “arrependei-vos”. A Bíblia apresenta o principal obstáculo para entendermos a Palavra de Deus como moral e não intelectual. Nossa tendência é suprimir a verdade por nossa injustiça (cf. Rm 1.18). Por isso, precisamos de uma forte conscientização de pecado (1Tm 1.15; Tg 3.2). Do contrário, a hermenêutica pode tornar-se uma agenda para provarmos nossa justiça própria com passagens da Bíblia.
8. Deixe a Escritura interpretar a cultura, e não o contrário. A experiência humana e a convicção social podem resultar numa distorção do ensino da Bíblia. Alguns intérpretes do sul dos Estados Unidos antes da guerra civil justificavam a escravidão com base na Bíblia. Hoje, muitos intérpretes, mesmo na liderança da igreja, negam que Cristo seja o único caminho para a salvação, que a Bíblia seja totalmente verdadeira, que Jesus tenha ressuscitado dos mortos e que a atividade sexual condenada pela Bíblia seja errada. Nesses casos, a consciência cultural humana trabalha para controlar a mensagem da Bíblia. Opor-se a essa tendência seguindo as regras hermenêuticas listadas aqui pode levar a uma interpretação que é mais fiel a Deus e à sua Palavra do que aos impulsos de mudanças culturais.
9. Preste atenção ao gênero. A Bíblia contém vários tipos de expressão escrita: lei, profecia, cântico, provérbio, história, epístola, evangelho, parábola, oração e mais. Alguns livros combinam mais de um gênero. Uma hermenêutica saudável reconhece a natureza universal e obrigatória de algumas afirmações bíblicas (como “Não furtarás” — Dt 5.19) e a qualidade proverbial de outras afirmações (como “O temor do Senhor prolonga os dias da vida, mas os anos dos perversos serão abreviados” — Pv 10.27). Provérbios são afirmações da validade geral, e não predições do que sempre acontecerá em todo caso imaginável. Os símbolos do livro de Apocalipse exigem uma hermenêutica diferente daquela que as descrições claras da viagem de navio em Atos 27 e 28 exigem. Os evangelhos apresentam Cristo em seu ministério histórico; as epístolas do Novo Testamento pressupõem que seus leitores receberam as boas-novas e creram em Cristo. Por isso, tendem a não repetir nem recontar os eventos relatados nos evangelhos. Isso não significa que as epístolas ignorem a importância da obra terrena e do ensino de Jesus, mas, sim, que pertencem a um gênero diferente e têm um alvo diferente.
10. Tenha em mente a história geral da Bíblia e seu desfecho glorioso. Embora a Bíblia contenha muitas complexidades, em um sentido ela mostra algo básico e claro: a história divina de criação e redenção do mundo. Deus será entronizado, seu povo exultará na comunhão eterna com ele e uns com os outros (Ap 22), e os inimigos de Deus sofrerão reveses. Uma hermenêutica saudável contribui para entendermos melhor essa história sagrada, com vistas à felicidade do homem, recontando-a fielmente em todo o mundo (missões), e à glória eterna de Deus.
Em conclusão, a hermenêutica, entendida e praticada apropriadamente, é a chave para compreendermos as Escrituras, de modo que sua verdade seja revelada e produza seu melhor e mais elevado efeito. Labutar em hermenêutica é reconhecer a dependência da Escritura para nossa salvação. Pois a Escritura é a Palavra de Deus escrita — interpretada apropriadamente — que, pelo Espírito de Deus, nos leva à comunhão com Deus por meio de sua Palavra que se tornou carne (Jo 1.14; 1Jo 1.1-3).
Por Robert W. Yarbrough
Este artigo faz parte da série Versículos-chave.
Este artigo é uma adaptação do material de estudo da Bíblia de Estudo da Fé Reformada com Concordância, Editora Fiel.