“Eu o parabenizo, Erasmus, porque você sozinho, ao contrário dos outros, atacou a coisa certa, isto é, o problema essencial. Você não me tem entediado com aquelas divagações sobre papado, purgatório, indulgências e coisas assim – tolices em vez de problemas… Você, e só você tem visto o ponto para onde tudo converge, e direcionado para um foco de vida”.
Martinho Lutero
Sempre que pensamos sobre nossas diferenças com Roma, nós nos voltamos para a veneração de imagens, a infalibilidade papal, o papel mediador assegurado aos santos, principalmente à Virgem Maria. E ainda, como Lutero combateu, o ponto chave na Reforma era sobre a questão: “Quem salva quem?”, “A Escravidão da Vontade” de Lutero foi a resposta a “Liberdade da Vontade” de Erasmus e estabeleceu o debate da reforma sobre o livre-arbítrio e a eleição, de uma forma mais veemente.
Desiderius Erasmus (1466-1536), um humanista holandês, foi uma das mais brilhantes luzes da Renascença. Como muitos humanistas da Renascença (humanismo no sentido clássico é um bom termo, não pode ser confundido com humanismo secular), ele foi cínico com relação à hipocrisia, extravagância, intolerância e irrelevância espiritual da igreja.
Muitos evangélicos hoje poderiam ler Erasmus com proveito, especialmente considerando que muitos problemas têm reaparecido. Contudo, Lutero estava insatisfeito, não meramente com a desordem da sala e a colocação da mobília, mas com a mobília propriamente dita.
Erasmus estava convencido de que discussão sobre coisas como livre-arbítrio e predestinação “deveriam ficar longe dos ouvidos comuns”. Afinal, todos sabemos “quão grande é a apatia da humanidade em buscar a bondade divina e tudo leva a crer que a eleição minará a responsabilidade humana”, insistiu Erasmus. Lutero por outro lado disse: “O Espírito Santo não é cético”, argumentando que a Bíblia é clara nas coisas essenciais e que cada crente é obrigado a entender o que Deus revelou. “Se nós não conhecemos estas coisas”, Lutero declarou “não podemos saber nada sobre as coisas cristãs e seremos piores que qualquer pagão”. A partir do ponto em que Deus claramente se direcionou para a questão da eleição e do livre-arbítrio, Lutero disse, “não é irreverente, inquisitivo ou supérfluo, mas essencialmente salutar e necessário para um cristão perceber se a vontade faz algo ou nada em questões pertinentes a salvação eterna”.
Este debate não é para aqueles de estômagos fracos. O Reformador alemão não tinha tempo para os “Epicureus amantes da paz” que amavam suas próprias polidez, razão, experiência, mais do que a verdade. Na base crítica de Lutero está a sua convicção de que a teologia de Erasmus é centrada no humano. Assim como disse J. B. Philips a uma geração recente, “seu Deus é muito pequeno”, então Lutero disse a Erasmus, “suas idéias sobre Deus são todas muito humanas”.
Erasmus quis encontrar o meio termo entre dizer, de um lado, que Deus nos salva sem a nossa cooperação, e do outro lado, que nós nos salvamos (a nós mesmos). Um lado importa-se com a graça; o outro, com a natureza. Assim, Erasmus propôs uma posição mediadora conhecida como “cooperação” (lit. “trabalhar junto”): Deus ofereceu a redenção; o homem deve cooperar com a graça exercitando seu livre-arbítrio. Conhecido (e condenado) antes de Erasmus como semi-pelagianismo, e mais tarde ainda como arminianismo, isto não foi visto como uma solução bíblica do ponto de vista de Lutero. As Escrituras ensinam claramente, ele insistiu, os seres humanos nascem espiritualmente mortos, incapazes de responderem a Deus favoravelmente por sua própria “vontade”, pois esta vontade é escrava do pecado. Não é como se a vontade do incrédulo fosse inativa, todavia, é febrilmente ativa em rejeitar a palavra de Deus que a alma perdida considera bobagem.
Portanto, o que o incrédulo requer não é mera excitação da vontade nem o chamar pela fé e obediência, mas o sobrenatural ato da graça no qual Deus transpõe todos os obstáculos e muda o rebelde pecador em direção a Ele, oferecendo-lhe a dádiva da fé salvadora.
A “Escravidão da Vontade” (Nascido Escravo – Editora Fiel) foi minha introdução à Reforma. Como um jovem estive lutando para entender as grandes verdades da Epístola de Paulo aos Romanos; um amigo da família passou adiante a sugestão e eu peguei uma cópia. E nunca esquecerei o senso de relevância que experimentei quando este debate alcançou as mesmas questões que eu vinha perguntando – e ouvido perguntar – sobre o assunto.
Porque “A Escravidão da Vontade” foi escrito no calor da batalha, e contém toda aquela tendência polêmica que alguém espera de Lutero naquela época.
Mas o que o leitor irá encontrar de mais intrigante é a contemporaneidade deste debate, pois os argumentos de ambos os lados nunca mudaram.
Uma vez que admitamos a cooperação do homem na conversão e justificação no lado mais estreito, não haverá paz de consciência. A questão sempre será: Quanto eu tenho que fazer? É por isso que Lutero responde: “Se, contudo, nós somos ensinados, e se cremos, que não precisamos saber estas coisas, a fé cristã é completamente destruída e as promessas de Deus e toda a sua palavra caem por terra; o maior e único consolo e certeza para os cristãos na adversidade é que… Deus faz todas as coisas imutavelmente e que sua vontade não poderá ser resistida, mudada ou impedida”.