O trecho abaixo foi adaptado com permissão do livro Sansão amor invencível, de Emílio Garofalo Neto, Editora Fiel (em breve).
Incentivado por meu valoroso irmão, o famigerado Tércio Garofalo, assisti à trilogia John Wick.[i] Sim, aqueles filmes do Keanu Reeves em que ele é um matador profissional em busca de vingança. E, sim, eu vi os três em cerca de 12 horas.[ii] Feriado é uma beleza!
John Wick. É a história de um homem muito bom no que faz — e o que ele faz é matar. John Wick é conhecido no meio da criminalidade como Baba Yaga, como o folclore eslavo chama algo equivalente ao nosso amado bicho-papão. Baba Yaga é um ser mitológico,[iii] sobrenatural, que aparece como uma velhinha de aspecto ameaçador — na verdade, bem assustador mesmo! Mas há certa ambiguidade na figura: por vezes maligna, por vezes o terror de quem é maligno. Nada muito diferente do bicho-papão, que é tanto uma figura ameaçadora como algo usado para assustar quem está sendo malvado. Não vou contar muito sobre a trilogia. No universo do filme, John Wick é visto dessa forma. Algo pavoroso, mas, ao mesmo tempo, é o que se tem quando se deseja derrotar algo também pavoroso. Às vezes, John Wick é tratado como o próprio bicho-papão, mas, sem dúvida, é também aquele a quem você chama quando precisa matar o bicho-papão.
Há um ponto que desejo ressaltar. John Wick havia se aposentado e acabou voltando ao meio criminal por causa de algo relativamente simples: roubaram seu carro e mataram seu cachorro. Então, ele resolveu “não deixar barato”. E os bandidos resolveram também “não deixar barato” o fato de ele “não deixar barato”. E logo isso aumentou e acabou por envolver mais gente, mais violência, mais morte, mais países, mais facções criminosas… e, de vez em quando, alguém diz algo como: “Isso começou com um carro e um cachorro”. Há uma frase célebre que é evocada no filme: Sivis pace parabelum [Se queres paz, prepara a guerra].
Em Canaã, o povo de Deus está vivendo tempos aparentes de paz. Mas isso não é verdade. É opressão, domínio e sujeição forçada a um povo que odeia o Senhor. E Deus vai libertá-los, levando-os para a verdadeira paz. Mas, para isso, será necessário fazer uma guerra. E eu espero que você perceba que essa é uma boa notícia, pois, quando o bem se levanta contra o mal, isso é realmente algo bom. Deus age para libertar seu povo e vencer o mal, apesar da fraqueza desse povo. A tensão entre os filisteus e Israel está crescendo — e tudo isso por causa de Sansão. Como, então, a história avança?
Deus coloca inimizade entre seu povo e os que odeiam Cristo
Passado algum tempo, nos dias da ceifa do trigo, Sansão, levando um cabrito, foi visitar a sua mulher, pois dizia: Entrarei na câmara de minha mulher. Porém o pai dela não o deixou entrar e lhe disse: Por certo, pensava eu que de todo a aborrecias, de sorte que a dei ao teu companheiro; porém não é mais formosa do que ela a irmã que é mais nova? Toma-a, pois, em seu lugar. Então, Sansão lhe respondeu: Desta feita sou inocente para com os filisteus, quando lhes fizer algum mal. E saiu e tomou trezentas raposas; e, tomando fachos, as virou cauda com cauda e lhes atou um facho no meio delas. Tendo ele chegado fogo aos tições, largou-as na seara dos filisteus e, assim, incendiou tanto os molhos como o cereal por ceifar, e as vinhas, e os olivais. Perguntaram os filisteus: Quem fez isto? Responderam: Sansão, o genro do timnita, porque lhe tomou a mulher e a deu a seu companheiro. Então, subiram os filisteus e queimaram a ela e o seu pai. Disse-lhes Sansão: Se assim procedeis, não desistirei enquanto não me vingar. E feriu-os com grande carnificina; e desceu e habitou na fenda da rocha de Etã. ( Jz 15.1-8)
Uau! E você achava que John Wick era violento? O que se passou aqui? Ora, estamos no livro de Juízes, que narra uma das piores fases da história de Israel. O povo está constantemente em apuros, na idolatria, fugindo de Deus. E Deus, misericordiosamente, tem levantado gente para proteger e livrar Israel. Já vimos isso com Débora, Baraque, Otniel, Gideão, Jefté… e agora com o homem mais complicado de todos: o tal Sansão. Afinal, é a sua história que estamos analisando, a história de Sansão, o juiz da vez. Note que, em todo o livro, para haver paz, foi necessário, antes, haver guerra.
No último capítulo, vimos a confusão que surgiu, entre mistérios e charadas, com Sansão matando um leão, comendo mel, matando os filisteus e indo embora, irado, de sua própria festança de casamento. No final, vimos que quem levou a filisteia para casa foi outro homem, e não Sansão. Bravo, o noivo foi embora. E a noiva ficou lá, separada para ele, para quando quisesse vir buscá-la? Afinal, a lua de mel já estava paga, o hotel, reservado… alguém quer? E um dos convidados se casou com ela. Algum tempo depois, nos dias da ceifa de trigo, Sansão resolve dar continuidade àquilo que fora interrompido. Finalmente, ele resolve ir até lá e encontrar sua esposa. Na cabeça dele, está tudo certo — pois ele não se casara com ela? Ele não tem conhecimento do que se passou na sua ausência, e não sabe que aquela que seria sua esposa foi entregue a outro. Ele segue seu caminho, levando consigo um cabrito:[iv] “Sansão está prestes a acordar de sua confiança ingênua de que ele pode simples- mente apagar o passado e recomeçar”.[v]
Então, vemos Sansão chegando lá e o pai dela dizendo que, por acreditar que ele não mais gostava da moça, entregou-a a outro homem. Imagino a temperatura no ambiente baixando uns 15oC. Sansão havia aprontado uma “baita” confusão por essa mulher. Desagradou aos seus pais, violou seus votos, matou trinta pessoas e, então, ela foi entregue a outro homem. Mas o pai da moça ainda tenta uma saída, oferecendo a filha mais nova — segundo ele, uma jovem ainda mais interessante.[vi]
A resposta de Sansão é bem simples: uma ameaça. E Sansão não é chegado a fazer ameaças vazias. Na verdade, trata-se de uma declaração. “Desta feita sou inocente para com os filisteus, quando lhes fizer algum mal.” O que ele quer dizer com isso? Talvez esteja reconhecendo que, na outra ocasião, ao matar trinta homens para pegar suas vestes, ele havia cruzado uma linha que não deveria ter sido cruzada. Dessa feita, contudo, ao seu ver, ele estaria justificado no que pretendia fazer. E qual é sua vingança?
Então, ele faz algo vil e cruel: captura trezentas raposas (mais uma vez, a criação sofrendo por conta do pecado humano)[vii] e as amarra a algo em que pode atear fogo. Na sequência, ele solta os animais, que, enlouquecidos por causa do fogo, se espalham pelas plantações dos filis- teus. Lembre-se de que era época da colheita de trigo. E, claro, todos aqueles animais correndo, desesperados, vão alastrando o fogo por toda parte, causando, assim, grande devastação. Há muita gente criativa para fazer o mal quando, com frequência, elas deveriam estar sendo criativas para fazer o bem.
O resultado: queimou tudo. O que era novo, o que estava a ponto de colher. Os cereais, as vinhas, os olivais. Tudo queimado, ou seja, um desastre financeiro incalculável. Vale notar que Dagom, deus dos filisteus, era um deus da agricultura, ou seja, todo esse incidente representa uma ofensa não apenas de ordem socioeconômica, mas também teológica. Deve ter havido um esforço gigantesco para tentar apagar todos esses focos de incêndio, mas eles não conseguiram. A vingança de Sansão envolveu destruir a lavoura filisteia.
É claro que, diante desses fatos, os filisteus querem saber quem é o responsável. Sansão o é. E os filisteus respondem de forma parecida, combatendo fogo com fogo, e queimam o sogro e aquela que fora a esposa[viii] de Sansão. No capítulo anterior, eles já haviam ameaçado queimar a mulher… Em algum momento, você achou que essa era uma ameaça vazia? Eles são filisteus. Existe bicho-papão? Sim, e do pior tipo possível. Mas, vez ou outra, quem surge para matar o bicho-papão não é necessariamente alguém exemplar. As coisas funcionam assim.
Sansão não gosta nada, nada, do que aconteceu, claro. A violência está aumentando. E uma ação leva a uma reação ainda pior, de modo que Sansão resolve também “não deixar barato” e parte para a briga com eles. Sansão fere com grande carnificina, como aparece na tradução que estou utilizando. O versículo aqui traz a ideia de grande violência, embora a Bíblia não detalhe como isso se passou, mas deve envolver verbos como desmembrar, eviscerar e dilacerar. Após, o local deve ter ficado horrendo: pernas, braços, cabeças e troncos para todo lado. Sansão venceu. Sansão devastou os filisteus.
Essa não é apenas uma história sangrenta, como tantas que consumimos no cinema. Deus está agindo — até mesmo na loucura do que se passa, Deus está agindo. Quanto a nós, quando depararmos com situações extremas como essa, é importante lembrarmos que há uma história maior por trás de todas as pequenas histórias que o mundo conhece.
Deus está pondo inimizade, e esse ponto é importante. Naquele momento, os israelitas se encontravam subjugados pelos filisteus e viviam tranquilos dessa forma. Mas Deus já dissera, em Gênesis 3.15, que a história da humanidade seria envolta em inimizade, especificamente uma inimizade que perpassa toda a história: a inimizade entre a semente da serpente e o descendente da mulher. Essa inimizade se apresenta nas inúmeras tentativas do diabo de destruir a linhagem daqueles que creem nas promessas de redenção.[ix]
Essa inimizade vai durar enquanto o mundo existir e, por vezes, revela-se de maneira mais evidente.
No caso em questão, Israel age em nome de Deus contra um povo que se rebela contra Deus. Observe que é um perigo quando os filhos de Deus se sentem muito confortáveis em meio aos inimigos de Deus. E isso fica mais abundantemente claro na sequência da história. Claro, não estamos defendendo, com isso, que arrumemos confusão com o mundo ao nosso redor. Na verdade, somos chamados a ser bons parentes, bons vizinhos e bons cidadãos. O ponto não é esse. O ponto é que, com frequência, é fácil cruzar a linha entre ser um bom cidadão e ter sido assimilado pelo mundo pagão hostil à cruz e ao Redentor. Israel estava submisso e se sentia feliz com isso. Mas ainda havia um homem que, levado pelas circunstâncias, se veria lutando contra os inimigos do Senhor. Sem dúvida, a presente história é cheia de elementos perversos: a morte da mulher e de seu pai (o sogro de Sansão), a morte das raposas, a destruição da lavoura, mas em tudo há um Deus. A história do casamento de Sansão e o respectivo desdobramento são apenas a forma que Deus usa para agir contra os filisteus. O Senhor é capaz disso: ele toma as más intenções dos homens e extrai coisas boas que fazem avançar seu plano de redenção.
Além deste livro, o Ministério Fiel também possui um curso sobre este assunto chamado Amor invencível: O evangelho na história de Sansão, com Emílio Garofalo.
[i] Trilogia no momento da escrita do livro, mas já existem mais filmes em produção.
[ii] Acho que é bom lembrar que não é por ter mencionado um filme aqui que estou necessariamente recomendando-o a todos os leitores. Talvez seja mais do que sua consciência permita; a coisa é bem violenta.
[iii] Tomara!
[iv] Flores? Chocolates? Um cabrito. Provavelmente uma oferta para a família.
[v] Webb, The Book of Judges, p. 376.
[vi] Como acontece em muitos restaurantes em que, ao pedir Coca-Cola, o garçom te oferece Pepsi.
[vii] Vale ler as considerações do apóstolo Paulo em Romanos 8. Escrevi um artigo a esse respeito chamado “Sobre leões e Lamborghinis: medindo a maldade do mundo maldito”. É fácil encontrá-lo on-line.
[viii] Pobre mulher! Que vida sofrida! Nem mesmo sabemos o nome dela. Pivô de toda essa carnificina, indo da condição de ameaçada à de abandonada e depois à de queimada viva. Um dos muitos exemplos de como este mundo é vil.
[ix] É possível ver isso, inclusive, na história de Ester. Veja meu livro Ester na casa da Pérsia e a vida cristã no exílio secular (Fiel, 2021).