Os falsos mestres configuram amplamente a carta de Paulo a Tito. Ele lida com eles em 1.10-16; depois, retorna aos falsos mestres e à resposta de Tito a eles logo antes de suas instruções finais e saudações na conclusão da carta (3.9-11). Significativamente, o primeiro tópico importante que Paulo discute após sua saudação inicial são as qualificações dos presbíteros. Essa seção de abertura termina com a declaração de que parte da tarefa do presbítero é instruir “segundo a doutrina, de modo que tenha poder tanto para exortar pelo reto ensino como para convencer os que o contradizem” (1.9). Assim, a maior parte da tarefa dada a Tito de colocar o que resta em ordem e nomear presbíteros consiste em manter a pureza do ensino em todas as igrejas de Creta.
Na “Introdução às Epístolas Pastorais”, já tratei da natureza do falso ensinamento que Paulo confronta nessas cartas e, portanto, não repetirei essa informação aqui. Na verdade, Paulo passa mais tempo em Tito detalhando a conduta e as motivações dos falsos mestres do que a natureza de seus ensinos. Em essência, Paulo denuncia seu caráter. Podemos destacar várias coisas que ele diz sobre sua conduta e caráter.
Em primeiro lugar, eles são hipócritas desobedientes. Em Tito 1.10, a palavra traduzida como “insubordinados” é a mesma palavra que Paulo usa em 1 Timóteo 1.9 para os “rebeldes”, aqueles que não se submetem à lei de Deus. A ironia é que esses falsos mestres, como os de Éfeso, parecem apresentar-se como mestres da lei (cf. Tt 3.9 com uma orientação judaica em 1.10, 14). Como alguns sugerem, as palavras “puro” e “impuro” em 1.15 podem indicar que muito de seu ensino gira em torno das leis judaicas de pureza. Entretanto, diz Paulo, em vez de guardarem essa lei, eles são iníquos e, portanto, hipócritas.
Em segundo lugar, Paulo aponta suas motivações malignas. Eles são “enganadores” que ensinam por “torpe ganância” (1.10-11). Em outras palavras, eles não se perderam equivocadamente no erro. A intenção deles é enganar para que, desviando outros do caminho, enriqueçam. Além disso, Paulo diz, “suas consciências estão corrompidas” (1.15). Ele faz um comentário semelhante sobre os falsos mestres em 1 Timóteo 4.2, dizendo que são mentirosos insinceros “e têm cauterizada a própria consciência”. Para Paulo, a consciência é o detector moral interno que nos indica que quebramos a lei de Deus. Mas, quando permitimos que nossa consciência seja contaminada ou cauterizada, pecamos descaradamente e sem culpa. Esses falsos mestres nada mais são do que charlatães que procuram enriquecer ao dar a impressão de que são mestres piedosos das Escrituras.
Terceiro, Paulo diz: “professam conhecê-lo [a Deus]; entretanto, o negam por suas obras” (Tt 1.16). Isso chega ao cerne da mensagem de Paulo em Tito. Aqueles que realmente conhecem a Deus e foram transformados por seu relacionamento com ele demonstram isso em sua vida. Assim, Jesus diz sobre os falsos profetas: “Pelos seus frutos os reconhecereis” (Mt 7.15-16). Paulo também escreve sobre o “fruto do Espírito” (Gl 5.22). Aqueles que se apegam ao verdadeiro Evangelho cristão e têm o Espírito de Deus mostram isso em uma vida de boas obras, as quais são uma demonstração da fé cristã. Isso se torna o cerne do ensinamento de Paulo em Tito 2–3.
Quarto, os falsos mestres são divisivos (Tt 3.9-11). Paulo instrui Tito a advertir uma pessoa divisiva duas vezes, seguindo o ensino de Jesus em Mateus 18. Contudo, se ele permanecer divisivo e impenitente, Paulo diz: “evita o homem faccioso” (Tt 3.10). Essa ênfase na natureza divisiva do falso ensino está de acordo com toda a Escritura. Em Gálatas 5.19-21, por exemplo, a maior parte da lista de Paulo das “obras da carne” trata de pecados que trazem divisão ao corpo de Cristo. A questão não é que Paulo veja a divisão como o principal problema em Gálatas. No falso evangelho, a própria salvação está em jogo. Entretanto, o falso ensino sempre tem o efeito negativo de trazer divisão. Atualmente, ouvimos com frequência que aqueles que se opõem ao ensino de outros e são intransigentes em sua posição pela verdade são os próprios causadores de discórdia; a postura deles seria descaritativa. No entanto, o exato oposto é que é verdadeiro. O ensino aberrante causa divisão, e permanecer firme na verdade é a melhor maneira de promover o amor.
Os líderes do povo de Deus devem ser sólidos tanto na doutrina quanto na vida
Tito começa, como todas as outras cartas de Paulo, com uma saudação, mas, então, como apenas 1 Timóteo e Gálatas, omite a seção padrão de ação de graças e imediatamente aborda a necessidade de Tito de “pôr em ordem as coisas restantes” (Tt 1.5), nomeando presbíteros em todas as igrejas. A saudação (1.1-4) é mais longa do que a maioria das saudações iniciais de Paulo, sendo apenas Romanos e Gálatas mais longos. Na saudação, Paulo expõe seu trabalho como servo e apóstolo, que é “promover a fé que é dos eleitos de Deus e o pleno conhecimento da verdade segundo a piedade” (1.1). No versículo de abertura, vemos o tema da carta. O objetivo dos servos de Deus é levar o povo de Deus ao conhecimento da verdade. Porém, essa verdade está sempre de acordo com a piedade e conduz a ela. Se fôssemos formular um título para Tito, seria “A verdade de acordo com a piedade”. Isso, claro, está em contraste com os falsos mestres, que careciam tanto da verdade quanto da piedade.
A saudação também introduz algumas outras ideias-chave na carta. A verdade do Evangelho traz a “esperança da vida eterna” (1.2), um tema ao qual Paulo retorna em duas porções posteriores de “resumos do evangelho” na carta (cf. 2.13; 3.7). “Esperança”, nas Escrituras, não é uma incerteza auspiciosa, mas uma confiança enraizada na obra de Deus e em suas promessas. Além disso, Paulo usa duas vezes a palavra “Salvador” — uma vez para “Deus, nosso Salvador” (1.3), e outra para “Cristo Jesus, nosso Salvador” (1.4). “Salvador” aparece mais quatro vezes na carta, sempre nas seções de resumo do Evangelho (2.10, 13; 3.4, 6) e sempre se referindo alternadamente a Deus e a Cristo como nosso Salvador. Em harmonia com essa ênfase em Deus como Salvador, Paulo escreve sobre a “salvação” de Deus (2.11) e sobre o fato de que ele “nos salvou” (3.5).
Finalmente, Paulo introduz as ideias de que a promessa de salvação em Cristo vem de Deus, “que não pode mentir” (1.2), e de que ela é revelada “pela pregação” (1.3) de sua Palavra. Em outras palavras, Paulo enfatiza, desde o início, a confiabilidade da Palavra de Deus e a importância do ministério de ensino e pregação da igreja. Deus trabalha por meio da pregação e ensino de sua Palavra, levando os pecadores ao arrependimento e edificando os santos. O ministério da Palavra é poderoso e eficaz. Entretanto, pregadores e mestres devem ser fiéis e proclamar somente a verdade. Isso é contraposto aos falsos mestres, que são “palradores frívolos”, “insubordinados” e “enganadores” (1.10-12). Todo ensino pode ter um efeito poderoso, mas somente o ensino da verdade leva à salvação e à piedade. O falso ensino leva à destruição.
A discussão de Paulo aqui conduz diretamente às instruções sobre as qualificações para presbíteros. A lista de qualificações é semelhante ao que Paulo apresenta em 1 Timóteo 3, na medida em que enfatiza o caráter piedoso. Porém, de modo significativo, Paulo conclui: “apegado à palavra fiel, que é segundo a doutrina, de modo que tenha poder tanto para exortar pelo reto ensino como para convencer os que o contradizem” (Tito 1.9). Os presbíteros devem ser sãos na doutrina e na vida. Paulo, no entanto, enfatiza aqui que eles também devem ser capazes de dar instrução na sã doutrina (cf. “apto para ensinar”, 1Tm 3.2), bem como ser capazes de cobrar aqueles que ensinam falsamente. Presbíteros fortes e piedosos são vitais para a saúde espiritual do povo de Deus. Eles ensinam ao povo de Deus a verdade vivificante e transformadora do Evangelho, mas, como pastores, também protegem o rebanho dos lobos que procuram destruir as ovelhas por meio de falsos ensinos (veja At 20.28-31).
Um requisito para presbíteros encontrado na lista de Paulo em Tito, embora não em 1 Timóteo 3, é que seus filhos devem ser πιστός (Tt 1.6). Essa palavra grega pode significar “crentes” ou “fiéis”, no sentido de serem dignos de confiança. De seus 67 usos no Novo Testamento, a grande maioria tem o significado de “fiel” ou “confiável”. Esse é o seu significado predominante nas Epístolas Pastorais, incluindo as duas outras ocorrências em Tito — uma delas se dá nesse contexto imediato (1.9, “a palavra fiel”; cf. 3.8).
Na lista de Paulo em 1 Timóteo 3, o requisito para os filhos dos presbíteros é que eles sejam obedientes e submissos, não que sejam cristãos. E esse parece ser o sentido geral de Tito 1.6, onde Paulo continua dizendo que os filhos dos presbíteros não devem ser “acusados de dissolução, nem […] insubordinados”. Uma vez que Paulo já se referiu ao povo de Deus como “eleito” (1.1), indicando que a salvação é toda de Deus e se dá pela eleição dele, é inconcebível que o apóstolo considerasse os pais responsáveis pelo estado de salvação de seus filhos. Um pai claramente tem a responsabilidade de ensinar a seus filhos a Palavra de Deus, dar-lhes um exemplo piedoso e responsabilizá-los por serem obedientes e submissos à sua liderança enquanto viverem sob seu teto. Os pais, todavia, não podem ser responsabilizados pelo estado espiritual do coração. Assim, “fiel” ou “confiável” (talvez até no sentido de “obediente”, como em 1 Timóteo) parece ser a melhor tradução aqui.
Como a sã doutrina funciona diariamente numa vida cristã saudável
O restante da carta instrui Tito sobre como ele deve treinar todo o povo de Deus na vida cristã piedosa. Todos, exceto um dos 14 imperativos em Tito, ocorrem nos capítulos 2–3. Porém, essa seção também contém duas seções de resumo do Evangelho, as quais são especialmente adequadas às instruções éticas de Paulo. O indicativo da obra de Deus de “regeneração e renovação” (3:5) é primário, mas leva sempre à vida transformada e ao imperativo de caminhar de acordo com o Evangelho e com o Deus que nos chamou.
Em Tito 2, Paulo instrui Tito sobre como instruir diferentes grupos na igreja — homens mais velhos (2.2), mulheres mais velhas (2.3-5), homens mais jovens (2.6) e escravos (2.9-10). As instruções para cada um são adequadas às suas situações particulares na vida. As instruções para os anciãos soam como uma versão resumida das qualificações de Paulo para os presbíteros, executada a habilidade necessária para ensinar e repreender os falsos mestres. No primeiro século em particular, os presbíteros da igreja eram principalmente homens mais velhos (como a palavrão “ancião” sugere), e os requisitos para presbíteros não são, em muitos aspectos, diferentes dos requisitos para todos os homens, exceto que os presbíteros devem atender claramente a esses padrões e servirem como exemplos de piedade para a igreja.
Enquanto, em 1 Timóteo 2, Paulo deixa claro que as mulheres não devem ensinar ou ter autoridade sobre os homens, aqui ele indica que as mulheres mais velhas têm um importante ministério de ensino. Especificamente, as mulheres mais velhas devem “ensinar” e “treinar” (Tt 2.3-4) as mulheres mais jovens em uma vida piedosa, especialmente no que diz respeito à submissão a seus maridos (2.4-5). As instruções para homens mais jovens e escravos também se encaixam em suas posições na vida. Os homens mais jovens devem ser “criteriosos” (2.6), enquanto os escravos devem ser submissos a seus senhores e fiéis em seu trabalho.
As instruções de Paulo sobre como esses diferentes grupos devem agir são pontuadas por exortações diretas a Tito quanto à sua própria vida e ministério. Esse capítulo começa e termina com orientações sobre o ministério de ensino de Tito: “fala o que convém à sã doutrina” (2.1); “dize estas coisas; exorta e repreende também com toda a autoridade” (2.15). Em outras palavras, como vimos nas cartas de Paulo a Timóteo, Paulo exorta Tito a ser fiel em sua tarefa principal como mestre e pregador da Palavra de Deus. Esse foco no ministério de ensino de Tito serve como uma inclusio (dois elementos semelhantes no início e final do capítulo) que mantém o capítulo unido. Mas, bem no meio do capítulo, Paulo também exorta Tito a ser um “padrão de boas obras”, bem como a mostrar “integridade” em seus ensinamentos (2.7-8). Mais uma vez, então, vemos a ênfase de Paulo nessa curta carta tanto no ensino adequado quanto na vida cristã adequada.
Em Tito 3.1-3, Paulo dá instruções gerais sobre como tratar os outros. O povo de Deus deve ser submisso a governantes e autoridades, bem como tratar todas as pessoas com gentileza e cortesia, não falando mal de ninguém. Paulo dá uma razão para tratar bem os outros: “Pois nós também, outrora, éramos néscios, desobedientes, desgarrados, escravos de toda sorte de paixões e prazeres, vivendo em malícia e inveja, odiosos e odiando-nos uns aos outros” (3.3). Assim como o povo de Deus tem mostrado a bondade e a graça de Deus quando eram miseráveis e incrédulos (3.4 e ss.), eles devem mostrar bondade e graça aos outros.
Uma ênfase importante nas instruções éticas de Paulo nos capítulos 2–3 é que os cristãos devem ter uma mentalidade evangelística. Seu ensino sobre como os membros do povo de Deus devem viver inclui uma ênfase em que sejam boas testemunhas para os incrédulos. Assim, Paulo diz a Tito: “No ensino, mostra integridade, reverência, linguagem sadia e irrepreensível, para que o adversário seja envergonhado, não tendo indignidade nenhuma que dizer a nosso respeito” (2.7-8). Da mesma forma, os escravos devem agir de maneira a “ornarem, em todas as coisas, a doutrina de Deus, nosso Salvador” (2.10). Certamente, as instruções de Paulo em 3.1-2 sobre tratar os incrédulos de maneira adequada e com cortesia são, em grande parte, incentivadas pela motivação evangelística. É claro que isso reflete o chamado apaixonado de Paulo para que façamos todas as coisas — até mesmo tornar-se tudo para todos (1Co 9.22) — tendo em vista a salvação dos incrédulos. Da mesma forma, os cristãos são chamados a agir corretamente diante de um mundo vigilante, vivendo de uma forma que adorne o Evangelho.
Em última análise, a forte ênfase que, em Tito, se dá às boas obras e à vida correta se deve simplesmente ao fato de que isso resulta da obra transformadora do Evangelho na vida do povo de Deus. Somos chamados a “tornar-nos quem somos” em Cristo. Esse é realmente o peso das seções de resumo do Evangelho em 2.11-14 e 3.4-7. A “graça de Deus” que “se manifestou salvadora a todos os homens” também nos educa “para que, renegadas a impiedade e as paixões mundanas, vivamos, no presente século, sensata, justa e piedosamente” (2.11-12). Cristo se entregou na cruz, diz Paulo, “a fim de remir-nos de toda iniquidade e purificar, para si mesmo, um povo exclusivamente seu, zeloso de boas obras” (2.14). A “benignidade de Deus”, que “nos salvou”, se deu por meio do “lavar regenerador e renovador do Espírito Santo” (3.4-5). Os crentes são uma nova criação em Cristo. Assim, Paulo continua dizendo a Tito: “Quero que, no tocante a estas coisas, faças afirmação, confiadamente, para que os que têm crido em Deus sejam solícitos na prática de boas obras” (3.8).
Claro, isso não é diferente do ensino de Tiago de que a fé sem obras é morta. Porém, é impressionante como as seções de resumo do Evangelho dão muita importância à vida cristã adequada e estão repletas de exortações às boas obras. Os intérpretes de Paulo, com frequência, apontam corretamente que seus imperativos estão enraizados no que somos em Cristo e resultam disso (por exemplo, você é santo/separado; então, seja santo).
O problema surge, porém, quando equiparamos apenas os indicativos com o Evangelho. As Boas Novas do amor de Deus pelos pecadores, do perdão dos pecados, de ser revestido da justiça de Cristo e da aceitação dos pecadores por Deus não podem ser separadas das Boas Novas da obra transformadora de Deus e do chamado para viver uma vida santa para a glória de Deus. É uma verdade gloriosa que nós, que “antes éramos insensatos, desobedientes, desviados, escravos de várias paixões e prazeres, passando os nossos dias na malícia e na inveja, odiados pelos outros e odiando-nos uns aos outros” (3.3), fomos mudados e transformados pelo Evangelho e pelo poder de Deus, a fim de que vivamos uma vida alegre de obediência aos mandamentos de Deus. Esses mandamentos, em si, são uma alegria e deleite para o povo de Deus (cf. Sl 119), especialmente porque agora somos capazes de guardá-los e viver a vida que Deus planejou para os seres humanos viverem, uma vida que satisfaz a alma. Para os cristãos, até mesmo os mandamentos de Deus para seu povo são graciosos. Os imperativos, então, não menos que os indicativos, são para o povo de Deus — atrevo-me a dizer — boas novas!
O artigo acima é um trecho retirado e adaptado com permissão do livro Introdução bíblico-teológica ao Novo Testamento, Robert J. Cara, editado por Michael J. Kruger, Editora Fiel (em breve).
Veja mais artigos deste livro clicando aqui!