O enfoque nos protestantes não significa que eles tenham sido os únicos a estudarem o conceito de cosmovisão, mas certamente foram os mais proeminentes em tal investigação. Curiosamente os dois nomes mais importantes do início dessa história são de origem reformada ( James Orr e Abraham Kuyper). Outros importantes nomes dessa história também são reformados (Herman Dooyeweerd, Francis Schaeffer, Ronald Nash, Albert Wolters, David Naugle, dentre outros). Isso mostra a proeminência da tradição reformada no estudo de cosmovisões. Foram os reformados que primeiro pensaram sobre o assunto e fizeram escola principalmente por intermédio de literatura.
Escolhi os quatro primeiros nomes da lista acima porque foram figuras pioneiras e influentes sobre outras gerações.
James Orr (1844-1913)
Esse teólogo e apologeta presbiteriano escocês estava inserido em um contexto histórico de uma Europa que estava se “descristianizando”, carente de uma ampla exposição do que seja a fé cristã. Ele entendia que, na teoria, a mente humana não se satisfazia com conhecimentos desconexos, mas buscava integridade no entendimento da realidade e, na prática, seres humanos buscavam respostas para as perguntas da vida. Era a cosmovisão que poderia orientar pessoas às questões últimas da vida.[i] Dentro do contexto europeu crescentemente secularizado, Orr publicou o livro The Christian View of God and the World (1893) no qual argumenta que a fé cristã não pode simplesmente ser defendida atomisticamente (doutrina por doutrina), mas carece de uma apologética holística (uma cosmovisão, uma definição cristã da realidade). James Orr entendia que a oposição ao cristianismo não se confinava a doutrinas especiais ou a pontos conflitantes com as ciências naturais, mas estendia-se à forma total de se conceber o mundo… Não é mais uma oposição de detalhes, mas de princípios. Esta circunstância precisa de uma extensão igual na linha de defesa. É a visão cristã das coisas em geral que é atacada, e é pela exposição e vindicação da visão cristã das coisas como um todo que esse ataque poderá ser detido.[ii]
O intento de Orr era provar que a visão cristã das coisas formava um pacote completo que não pode ser aceito ou rejeitado parcialmente (pois permanece em pé ou cai por terra integralmen- te) e que era superior a outras cosmovisões em sua descrição da realidade. Essa era a sua forma de combater o antisupernaturalismo (contrário a milagres) das teorias modernas dos seus dias. Em outras palavras, ao invés de debater a ocorrência de milagres baseado em evidências, Orr reconhecia que o debate girava em torno de diferentes cosmovisões.
Dentre os herdeiros de Orr, Gordon H. Clark e Carl F. H. Henry trabalharam com a perspectiva cristã como sendo mais compreensiva e coerente do que qualquer outro sistema filosófico.
Abraham Kuyper (1837-1920)
Esse holandês, tido por pai do neocalvinismo, foi um homem da renascença, isto é, atuante em tantas áreas que fica até difícil classificá-lo profissionalmente. Esse teólogo (doutorou-se em teologia em 1863 e escreveu vários livros), pastor (começou a pastorear em 1864), jornalista (foi editor de jornais “seculares” na década de 1870), estadista (participou na criação de um partido político e atuou como primeiro ministro da Holanda entre 1901- 1905), educador (fundou a Universidade Livre de Amsterdã em 1880) era um homem de “dez cabeças e umas cem mãos”.[iii] Kuyper tinha uma impressionante cultura geral. Seu envolvimento em diferentes áreas da cultura de seu país mostram a abrangência de seu intuito com a cosmovisão cristã. Antes do que apenas um pensador, Kuyper colocou várias de suas ideias em prática.[iv]
Na palestra inaugural da Universidade Livre de Amsterdã, Kuyper defendeu a soberania de Cristo sobre todas as esferas da vida e a liberdade que cada esfera deve ter de trabalhar sob o senhorio de Cristo. O contexto da palestra é de oposição à diversidade de filosofias numa mesma escola; o cristianismo sempre sai perdendo nessa mistura com líderes de outras perspectivas. O que Kuyper está propondo é uma universidade “Livre” não no sentido de “separada de seu princípio”, mas livre para estudar todas as áreas do saber a partir da fé na palavra infalível de Deus. Seu desejo era conduzir todos os domínios da vida em submissão a Deus.
Em 1898, Kuyper deu as famosas palestras na Universidade de Princeton que se tornaram o livro Calvinismo, publicado em 2002 pela Editora Cultura Cristã. Kuyper apresenta o “sistema de vida” cristão em oposição ao que ele chama de “modernismo”. Kuyper conheceu os efeitos da teologia moderna, liberal, em sua própria juventude (experimentou uma “conversão” teológica e de cosmovisão na comunidade que pastoreou em Beesd) e na vida de sua denominação e, por isso, liderou a segunda maior secessão da igreja estatal em 1886.[v] Esse é o contexto de vida que o levou a se opor à cosmovisão “modernista”. O sistema de vida defendido por Kuyper é o do “calvinismo”, que melhor desenvolveu a doutrina da Reforma, abrangendo cada departamento da vida antes que preso somente à esfera teológica e eclesiástica. O conceito de redenção cósmica, graça restaurando a natureza ao seu propósito original, é muito presente no pensamento de Kuyper.
O enfoque de Kuyper, diferente de Orr, tem um caráter mais cultural.[vi] Ele ensina a importância da cosmovisão atingindo os três mandatos ou relacionamentos do ser humano: com Deus, com o homem, e com o mundo. Porém, talvez sua maior contribuição tenha sido como a cosmovisão afeta o envolvimento do cristão com o mundo ou cultura. Por isso ele inovou ao fazer aplicações para diferentes esferas: religião, política, ciência e arte. Sobre a área científica, por exemplo, Kuyper falou que o debate sobre as origens tecnicamente não é um debate entre religião e ciência, mas entre duas cosmovisões por detrás da ciência praticada por seus respectivos grupos, cada um com suas motivações e pressuposições. Kuyper chega a falar de dois tipos de ciência, a do regenerado e a do não-regenerado. Isso pressupõe que não há racionalidade neutra que conduz a conclusões objetivas.
Essa preocupação quanto ao embate científico era resultado de sua noção de “antítese”. A antítese – essa oposição implacável entre fé e incredulidade, reconhecida na história da igreja desde seus primórdios – “não pode ser resolvida numa síntese superior nem tampouco pode ser eliminada antes do final dos tempos”.[vii] Essa nítida divisão entre a cosmovisão cristã e a cosmovisão pagã era contrabalanceada com a noção de “graça comum”, permitindo-lhe trabalhar com descrentes rumo a ideias que honram a Deus. A antítese não conduziu a um separatismo institucional, porque Kuyper acreditava que adeptos de outras cosmovisões também produziam o que é benéfico à sociedade.
No entanto, a noção de cosmovisão influenciando nossas ações era conscientemente articulada pelo pensador holandês. Kuyper julgava ser ingênua a abordagem racionalista e evidencialista de defender aspectos individuais da fé assumindo que a mente é apta para decidir objetivamente as questões de verdade.[viii] O método apologético de Kuyper (assim como de seu contemporâneo e conterrâneo Herman Bavinck) reconhece a influência de
pressuposições na percepção da razão. Essa apologética foi seguida por Cornelius Van Til, nos Estados Unidos da América.
Herman Dooyeweerd (1894-1977)
Dooyeweerd foi professor de jurisprudência na Universidade Livre de Amsterdã de 1926 a 1965. Também foi o fundador, juntamente com Dirk Vollenhoven, da “filosofia da ideia cosmonômica”. A expressão cunhada por Dooyeweerd traz como pressuposto que todo sistema filosófico é baseado ou regido por leis (por isso, cosmonômica = cosmos [mundo] + nomos [lei]). Seu interesse era sempre trazer à tona qual a “ideia de lei” regia o pensamento de outros filósofos, inclusive explicitando a sua idea legis.[ix]
Sua magnum opus, A New Critique of Theoretical Thought (1953-1958; em holandês foi publicada em 1935), mostra a farsa do projeto iluminista de gerar pensamento teórico objetivo e não afetado por pressuposições. Contra Kant, ele mostra que religião é transcendental, não está sob os limites da razão, mas a razão está sob os limites da religião, assim como o restante da vida.[x] No prefácio da obra, Dooyeweerd afirma que a grande virada no seu pensamento foi a descoberta da raiz religiosa de todo pensamento. Ele passou a compreender o significado central do “coração”, tão proclamado nas Escrituras como a raiz religiosa da existência humana.
Dooyeweerd entende que a condição espiritual do coração determina toda empreitada humana, e não a cosmovisão. Fé é mais profunda no coração do que cosmovisão. Portanto, no fundo, não existe um pluralismo de cosmovisões, mas duas motivações religiosas antitéticas. A direção de um pensamento filosófico brota do coração, onde jaz a antítese ao princípio cristão. Do coração, não da mente, procedem as questões da vida; o coração é a peça invisível por detrás do pensamento filosófico. O coração é pré-filosófico.[xi] “Dooyeweerd sustentou que todas as funções temporais do homem – sua racionalidade, historicidade, emoções, fé, moralidade etc. – estão concentradas no seu coração, refletindo a orientação do coração para uma origem, que pode ser Deus, ou um ídolo.”[xii] Não existem interpretações genuinamente seculares ou neutras da realidade, apenas interpretações religiosas. Nesse ponto, Dooye- weerd estava se distanciando um pouco de Kuyper gerando uma “nova” crítica do pensamento teórico.[xiii]
Todavia, Kuyper e Dooyeweerd estão em acordo no entendimento da força que as pressuposições têm no pensamento filosófico. O filósofo cristão precisa discernir as pressuposições cristãs das não cristãs, ou como diria Dooyeweerd os “motivos básicos” (ground motives) por detrás de todo pensamento filosófico.
Uma das contribuições mais singulares desse jurista holandês foi ordenar as esferas em uma escala modal. Deus criou significados (ontologia) na criação que permitem o desenvolvimento da cultura em várias áreas. Essas esferas são as estruturas criacionais organizadas do simples ao mais complexo, do básico ao mais fundamental, num modelo ontológico-cosmológico. “Dooyeweerd construiu a sua escala modal, identificando um total de 15 esferas, nessa ordem: numérica, espacial, cinemática, física, biótica, psíquica, lógica, histórica, linguística, social, econômica, estética, jurídica, ética e pística (do grego “pistis”, fé).”44[xiv]
Francis Schaeffer (1912-1984)
Schaeffer é especialmente relevante ao público brasileiro, pois foi o primeiro autor pelo qual o Brasil foi introduzido ao estudo de cosmovisão a partir de um referencial reformado. Isso se deu na década de 1970 com a tradução feita pela ABU da trilogia: O Deus que Intervém, A Morte da Razão, O Deus que se Revela. Embora esse americano não tenha ocupado posições sociais destacadas como Kuyper e Dooyeweerd, ele conseguiu um impacto impressionante através da instituição “L’Abri” (O Abrigo) que fundou na Suíça. Lá, ele recebia diversas pessoas que foram impactadas pela maneira de interpretar a história do ocidente distanciando-se da revelação bíblica.
Schaeffer era mestre em explicar a história religiosa ocidental através da filosofia, arte, música e cultura popular. De acordo com Schaeffer, o homem moderno afastou-se da revelação divina e autonomamente buscou criar um sistema de conhecimento, sentido e valores que dariam uma interpretação coerente da vida. Seu fracasso o levou ao desespero e, consequentemente, passou a negar absolutos e a gerar um relativismo pragmático.
A cosmovisão cristã é a resposta para os dilemas da vida moderna secular. No final da década de 1960, Schaeffer constatou que o mundo de então produzia poucos homens com boa educa- ção. Por boa educação, Schaeffer queria dizer “pensamento pela associação de várias disciplinas, e não apenas ser altamente qualificado em um determinado campo, como um técnico deve ser”.[xv] Ele almejava ver cristãos que soubessem articular conexão entre as diversas áreas do saber. Seu desejo de explicar tendências da modernidade se dava porque Schaeffer cria que conhecer o nosso tempo (dimensão pública da cosmovisão) era fundamental para a comunicação do evangelho:
Cada geração cristã defronta com este problema de aprender como falar ao seu tempo de maneira comunicativa. É problema que se não pode resolver sem uma compreensão da situação existencial, em constante mudança, com que se defronta. Para que consigamos comunicar a fé cristã de modo eficiente, portanto, temos que conhecer e entender as formas de pensamento da nossa geração. Diferirão elas ligeiramente de lugar para lugar, e em maior grau de nação para nação. Contudo, características há de uma época tal em que vivemos que são as mesmas onde quer que nos achemos.[xvi]
Para Schaeffer, havia uma relação muito próxima entre cosmovisão e evangelização.[xvii] Na verdade, o confronto de cos- movisões funcionava como o movimento de pré-evangelização, como o “tirar o telhado”, como Schaeffer gostava de falar. Tirar o telhado é revelar as inconsistências da cosmovisão alheia expondo o outro à verdade de Deus exposta em todo lugar. Antes até de ser
confrontado com o evangelho (encontrado apenas na revelação es- pecial), um ímpio pode ser impactado pela verdade divina tanto ao seu redor como dentro dele mesmo (revelação geral).
Schaeffer teve muitos discípulos que ainda hoje são influentes na difusão da cosmovisão reformada (Os Guinness, Charles Col- son, Nancy Pearcey, etc.).
Este artigo é um trecho adaptado com permissão do livro Amando a Deus no mundo, de Heber Campos Jr, Editora Fiel.
[i] Naugle, Worldview, p. 9-10
[ii] Apud Naugle, Worldview, p. 8.
[iii] Nilson Moutinho dos Santos, Abraham Kuyper: Um modelo de transformação integral. In: Cosmovisão Cristã e Transformação, p. 88-89.
[iv] D. A. Carson, Cristo & Cultura: Uma releitura (São Paulo: Vida Nova, 2012), p. 186.
[v] David T. Koyzis, Visões & Ilusões Políticas: uma análise crítica cristã das ideologias contem- porâneas (São Paulo: Vida Nova, 2014), p. 274.
[vi] Kuyper menciona o livro de Orr em uma das notas de rodapé. Ainda que possa ter sido influen- ciado por James Orr em alguma medida, fica nítido que Kuyper toma o conceito de cosmovisão e extrapola o conceito teológico do autor escocês para atingir várias áreas da vida.
[vii] Koyzis, Visões & Ilusões Políticas, p. 276. A aplicação desse conceito de antítese foi no âmbito da discussão escolar e acabou proliferando escolas de educação primária confessionais, que não estavam sob o monopólio estatal, mas obtinha o reconhecimento do público holandês. Um fenômeno curioso que resultou dessa bandeira levantada foi a estratificação da sociedade holandesa em várias subculturas confessionais paralelas (verzuiling = pilarização). Cada grupo manifestava mais diferenças verticais (ideológicas) do que horizontais (socioeconômicas).
[viii] Naugle, Worldview, p. 23.
[ix] L. Kalsbeek, Contornos da Filosofia Cristã (São Paulo: Cultura Cristã, 2015), p. 62
[x] Naugle, Worldview, p. 27.
[xi] Kalsbeek, Contornos da Filosofia Cristã, p. 39-45. Dooyeweerd falava de “filosofia imanente” como sendo aquela que se julga autossuficiente, não percebendo o que está fora dela e a determina: o coração. A filosofia consciente dessa dependência é uma “filosofia transcendente” (p. 46-49).
[xii] Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho, “Sociedade, Justiça e Política na Filosofia de Cosmovisão Cristã: Uma Introdução ao Pensamento Social de Herman Dooyeweerd”. In: Cosmovisão Cristã e Transformação, p. 193.
[xiii] Rodolfo Amorim Carlos de Souza escreve: “Para Dooyerweerd [sic], diferentemente de Kuyper, o cristianismo fornecia a direção do pensamento a partir do motivo-base central, o coração crédulo, e não uma visão de mundo e da vida plenamente elaboradas”. Carlos de Souza, “Cosmovisão: Evolução do Conceito e Aplicação Cristã”, p. 285.
[xiv] Carvalho, “Sociedade, Justiça e Política na Filosofia de Cosmovisão Cristã”, p. 196. Veja, na mesma página, a tabela com o núcleo de sentido e as ciências relacionadas a cada esfera modal.
[xv] Schaeffer, Francis A. O Deus que Intervém (São Paulo: Cultura Cristã, 2002), p. 30.
[xvi] Schaeffer, Francis. A Morte da Razão (São Paulo/São José dos Campos: ABU/Fiel, 1993, 6a ed.), p. 5.
[xvii] Sou grato ao Prof. Filipe Fontes por destacar esse aspecto importante da contribuição de Schaeffer.