sábado, 5 de outubro
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Gálatas

A carta de Paulo aos Gálatas

Os oponentes de Paulo

Não há dúvida de que Paulo em Gálatas responde a um conjunto bem definido de oponentes que conseguiram entrar nas igrejas da Galácia. O que eles acreditavam e ensinavam? De que maneiras criticavam o apóstolo Paulo? Parte da dificuldade em responder a essas perguntas se deve ao fato de que não temos as crenças, práticas e críticas desses oponentes de Paulo em suas próprias palavras; devemos inferi-las das declarações do apóstolo na carta. Esse processo de inferência, muitas vezes chamado de “leitura espelhada”, é uma parte necessária, embora desafiadora, do estudo dessa carta.  

Os oponentes de Paulo foram chamados de “judaizantes”, um rótulo extraído do verbo grego que Paulo usa em Gálatas 2.14 (Ἰουδαΐζειν, “viver como judeus”).  Com base nas declarações de Paulo em Gálatas, o que podemos afirmar com segurança a respeito desse grupo de oponentes? Pelo menos quatro traços que definem esses judaizantes emergem. Primeiro, os judaizantes parecem ser cristãos judeus professos (cf. 2.4) que reivindicam algum tipo de adesão à igreja em Jerusalém (2.12).  O conflito refletido em Gálatas, então, ocorre dentro dos limites da igreja cristã. Em segundo lugar, esses judaizantes ensinam que os gentios não podem ser justificados a menos que recebam a circuncisão de acordo com a lei mosaica (2.3-5; 5.1-6; 6.11-16). É provável que esses oponentes tenham salientado a circuncisão como porta de entrada para todo um estilo de vida caracterizado pela observância da lei mosaica, tendo em vista a justificação (4.10, 21; 5.3-4).  

Em terceiro lugar, esses judaizantes, em um esforço para substanciar seus ensinos, recorreram ao Antigo Testamento. O extenso tratamento de Paulo da narrativa abraâmica em Gálatas 3–4 sugere que essa porção de Gênesis é a favorita dos judaizantes. É provável que eles tenham argumentado que, visto que a circuncisão era uma ordenança indispensável para a aliança abraâmica, a pessoa não poderia receber a bênção concedida nessa aliança sem receber a circuncisão. Como, então, alguém poderia aceitar o evangelho de Paulo se a mensagem do apóstolo repudiava o ensino estabelecido do Antigo Testamento? 

Quarto, esses judaizantes rejeitaram o apostolado de Paulo. Eles apresentam a autoridade de Paulo como derivada dos apóstolos de Jerusalém e o ensino dele como uma adulteração da mensagem desses apóstolos (1.1, 12, 17-21).  Assim, os judaizantes atacaram Paulo tanto de forma material quanto formal. Eles retrataram o Evangelho de Paulo como infiel ao Antigo Testamento e aos apóstolos de Jerusalém. Apresentaram Paulo como um delegado indigno de confiança das autoridades de Jerusalém. Os judaizantes, no entanto, argumentam que eles não têm apenas argumentos bíblicos irrepreensíveis, mas também excelentes credenciais como mestres na igreja cristã. 

Observamos que as diferenças de Paulo quanto aos judaizantes se concentram no que ele chama de “obras da lei” (Gl 2.16; 3.10). Paulo nega que alguém seja “justificado pelas obras da lei”, mas afirma que somos justificados “pela fé em Cristo Jesus” (2.16). Historicamente, os intérpretes protestantes consideram que essas palavras significam que uma pessoa é declarada justa somente com base na justiça imputada de Cristo, recebida somente pela fé. Uma pessoa não é considerada justa com base em qualquer coisa que tenha feito, faça ou venha a fazer.

Nos últimos 40 anos, uma ala acadêmica influente, a “Nova Perspectiva sobre Paulo” (NPP), desafiou essa interpretação.  Ao fazer isso, os proponentes da NPP afetaram o estudo recente de Gálatas pelo menos de duas maneiras. Primeiro, os proponentes da NPP desafiaram os entendimentos convencionais do judaísmo do primeiro século.  O judaísmo, eles argumentam, não é uma religião de mérito, mas de graça. Consequentemente, Paulo não se opõe ao judaísmo porque o percebe como uma religião baseada em performance. Tampouco devemos entender que os judaizantes corromperam uma justificação totalmente graciosa pela introdução do mérito humano.

Em segundo lugar, a razão pela qual se diz que Paulo se opôs ao judaísmo diz respeito principalmente à eclesiologia ou à identidade.  Essa oposição não tem a ver, em primeira instância, com a salvação do pecador. A discordância de Paulo com os judaizantes aborda a maneira como se delimitam as fronteiras do povo de Deus. Para Paulo, somente a “fé” serve como distintivo de identificação de um membro do povo de Deus. Para os judaizantes, “as obras da lei”, ou seja, as práticas exigidas pela Torá, são marcadores necessários de pertencimento à igreja. A circuncisão e outras ordenanças distintamente judaicas exigidas pela Torá são o ponto crítico da controvérsia da Galácia. Os judaizantes insistem que a pessoa seja circuncidada e observe a Torá para ser “justificada”, isto é, declarada como um verdadeiro membro da igreja. Paulo argumenta, ao contrário, que a fé é um distintivo de identidade suficiente no povo de Deus da Nova Aliança. Não ser “justificado por obras da lei, e sim mediante a fé em Cristo Jesus” (Gl 2.16), significa, pois, que a membresia no povo de Deus é reconhecida pela fé, que serve como um marcador de identidade, e não pelos marcadores de identidade da observância da lei. Tal compreensão da controvérsia na Galácia tem profundas implicações na forma como se lê a carta. Os proponentes da NPP não argumentam que Paulo não tem nada a dizer sobre a salvação pessoal, mas apenas que a salvação pessoal não é a principal preocupação de Gálatas. 

A NPP está correta ao nos lembrar que a questão judeu/gentio está no primeiro plano dos problemas de Paulo na Galácia. Afinal, a circuncisão (2.3; 5.2, 11; 6.12-13, 15) e as leis dietéticas judaicas (2.11-14) figuram com destaque na carta. Também é correto apontar que questões de identidade cristã certamente estão em jogo na controvérsia da Galácia.

O problema, entretanto, vem da negação do caráter fundamentalmente soteriológico da controvérsia da Galácia. As “obras da lei” em Gálatas são ações feitas ou realizadas por alguém a fim de ser justificado (3.10b, 12).  Paulo argumenta que ninguém é capaz de atender a esse padrão.  Deixar de cumprir tudo o que a lei exige é sujeitar-se à “maldição” da lei” (3.10a). Mas quando Cristo morreu na cruz, ele “nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar” (3.13). Ele não apenas nos livrou da maldição da lei, mas também conquistou para nós a “bênção” abraâmica que Deus prometeu aos gentios (3.14). Essa “bênção” inclui nossa justificação. 

Ser “justificado” (2.16) é ser declarado justo (3.11) exclusivamente por causa da “justiça” (2.21; 3.21) que Cristo conquistou para seu povo em sua morte e ressurreição.  Essa justiça é imputada ao pecador (3.6) e recebida somente por meio da fé (2.16).  A justiça pela qual somos justificados não é alcançada, merecida ou assegurada por obediência à lei de Deus — “o homem não é justificado por obras da lei” (2.16).

A “circuncisão”, embora seja uma questão indiferente em si mesma (5.6; 6.15), carrega na Galácia o peso dos ensinos que, em negação do Evangelho, os judaizantes propagavam (5.2-4). Qualquer que seja o papel que a circuncisão e outras ordenanças da lei mosaica desempenhem na definição da identidade dos crentes na Galácia, questões mais profundas relacionadas à salvação estão em jogo. Os oponentes de Paulo pressionam os gálatas a manter a lei — não apenas como um meio de identificação da aliança, mas como a base sobre a qual os gálatas devem ser declarados justos diante de Deus. Paulo insiste que há apenas uma maneira de o pecador ser justificado por Deus — pela fé no Filho de Deus, crucificado e ressuscitado dentre os mortos. Somente a obediência e a morte de Cristo são nossa justiça para justificação. O Evangelho que Paulo prega e os ensinamentos de seus oponentes são mutuamente excludentes (2.16). Não há terceira via nem espaço para concessão ou reaproximação (1.6-9). É à defesa e exposição desse Evangelho que Paulo dedica suas energias na epístola aos Gálatas.

O artigo acima é um trecho retirado e adaptado com permissão do livro Introdução Bíblico-teológica do Novo Testamento, Robert J. Cara, Editado por Michael J. Kruger, Editora Fiel (em breve).


Autor: Robert Cara

Dr. Robert J. Cara é diretor acadêmico e professor de Novo Testamento no Reformed Theological Seminary. Robert também é pastor na Associate Reformed Presbyterian Church.

Ministério: Editora Fiel

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