sexta-feira, 15 de novembro
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A peregrina cidade de Jerusalém

Líderes de grande projeção, frequentemente com personalidades fortes e pitorescas, os primitivos “Pais da Igreja” ainda continuam a influenciar muita gente na atualidade. A “Era de Ouro” daPatrística deu-se no quarto e quinto séculos. O pregador João Crisóstomo (344-407), o scholar Jerônimo (c. 342-420) e o teólogo Agostinho (354-430) são exemplos proeminentes, cujas vidas e obras, começando no quarto século e findando no quinto, revelam muito acerca do tempo em que viveram.1 No Ocidente, a influência destes dois últimos foi enorme.

Após uma longa peregrinação, e havendo acumulado uma inigualável erudição e conhecimento dos idiomas bíblicos, Jerônimo (Eusebius Hieronymous Sophronius)2 visitou Roma em 382, cidade na qual residiu, ministrou e que conhecia muito bem. O bispo Damásio (“papa” de 366 a 384) o fez seu secretário, e pediu-lhe que preparasse uma nova tradução latina da Bíblia. Em toda a Cristandade, Jerônimo era o homem melhor preparado para esta empreitada. A nova tradução da Bíblia para o latim consumiu boa parte de sua vida e foi o seu principal monumento. Já existiam outras traduções das Escrituras naquela época, mas todas tinham sido feitas a partir da Septuaginta, isto é, a tradução do Antigo Testamento do hebraico para o grego. Jerônimo se pôs ao trabalho, apesar de ser constantemente interrompido por sua enorme correspondência, suas constantes controvérsias e as calamidades que assolavam o mundo. Ele finalizou o seu trabalho em 405, levando, portanto, vinte e três anos para concluí-lo. A sua tradução foi inteiramente nova e arejada, utilizando como base o Novo Testamento Grego e o original hebraico do Antigo Testamento. A longo prazo, a versão de Jerônimo — conhecida como a Vulgata — se impôs em toda a igreja de fala latina, conquanto no princípio não tenha sido bem recebida.3

Quando decidiu ir embora de Roma para a Terra Santa, Jerônimo dizia que estava indo de “Babilônia para Jerusalém”. A partir de 386 ele viveu o restante de seus dias num mosteiro em Belém, constantemente escrevendo e ensinando a outros monges. Em 410, Roma foi tomada e saqueada pelos Godos. Todo mundo estremeceu diante desta notícia. Quando Jerônimo a recebeu, escreveu perplexo em seu retiro em Belém: “Quem pode acreditar que Roma, construída pela conquista do mundo, tenha caído? Que a mãe de muitas nações se transformou num túmulo?”4 Por esta época, Jerônimo sabia que não apenas ele se aproximava de seu fim, mas toda uma era. Ele morreu em Belém, doente e quase cego, em 30 de setembro de 420, havendo sobrevivido, ainda, cerca de dez anos à queda de Roma. Durante a Idade Média, a fama e influência de Jerônimo entre os cristãos ocidentais só foram superadas pelas de Agostinho de Hipona.

Precipitada por uma série de eventos, a queda do Império Romano do Ocidente produziu um impacto de grandes proporções. Ainda que tenha formalmente continuado por outros sessenta anos ou mais, após 410 o Império efetivamente deixara de ser um poder militar e político. Quando Agostinho falecia, em 28 de agosto de 430, a sua cidade no norte da África já estava sob o poder do reino Vândalo.

Logo após o saque de Roma, Agostinho tomara ciência de que muitos pagãos atribuíam as calamidades do Império aos cristãos. Os pagãos apontavam que o desastre romano foi no “período dos cristãos” e que Roma havia caído porque se tinha entregue ao cristianismo e abandonado “os antigos deuses que a tinham feito grande”. Para os pagãos, os cristãos tinham destruído a maior realização humana já concebida.

A grande preocupação de Agostinho, entretanto, era acerca do modo como os cristãos reagiram àquele evento catastrófico. Em muitos cristãos, a queda de Roma produzira um desespero atônito e um temor de que o fim do mundo havia chegado. Quando Roma foi tomada pelos Visigodos, de seu mosteiro em Belém Jerônimo escrevia no prólogo de seu Comentário em Ezequiel: “Quando a mais esplendorosa luz do mundo foi apagada, quando a  própria cabeça do Império Romano foi decepada, o mundo inteiro pereceu em uma única cidade”.5 sou a sua perplexidade diante da adversidade que os cidadãos de Roma atravessavam. Ele chegou mesmo a comparar o saque de Roma com a tomada de Jerusalém pelos exércitos de Babilônia. O Salmo 79.1-3 proveu-lhe uma descrição gráfica do horror de ambos:

Ó Deus, as nações invadiram a tua herança, profanaram o teu santo templo, reduziram Jerusalém a um montão de ruínas. Deram os cadáveres dos teus servos por cibo às aves dos céus e a carne dos teus santos, às feras da terra. Derramaram como água o sangue deles ao redor de Jerusalém, e não houve quem lhes desse sepultura.6

O que é admirável nesta passagem é que se fosse indagado a autores cristãos tais como Tertuliano (160-225) ou Cipriano (200-258) — os quais viveram antes da tolerância da Cristandade no quarto século — a qual cidade bíblica Roma seria melhor comparada, sua resposta inevitavelmente seria: “Babilônia!”. Tal como a antiga Babilônia, Roma era culpada de sangue e luxúria em sua dominação e poder, e era culpada da perseguição aos santos. E mesmo Jerônimo, tempos antes, comparara Roma à Babilônia no tocante ao aspecto moral. Porém, se o próprio Jerônimo pôde comparar Roma com Jerusalém indica que ocorrera uma inteira transformação na cosmovisão, em comparação com os tempos de Tertuliano ou Cipriano. Pela época de Agostinho e Jerônimo, a cidade de Roma, além de capital do Império, tornara-se o centro da Igreja no Ocidente. Roma era agora “a santa cidade, onde os santos estão sepultados, especialmente Pedro e Paulo”, e tal como Jerusalém, ela é amada de Deus. Assim, para Jerônimo a questão que necessariamente se levantava é a seguinte: “Como Deus podia permitir que um desastre deste houvesse ocorrido?” Desde que o Império era agora conduzido por professos cristãos, essa se tornava uma questão bastante inquietante.

Se por um lado, cristãos como Jerônimo estavam chocados, aturdidos ou até desesperados, havia também aqueles cristãos que reagiam com uma alegria sadística ao novo saque de Roma. O ressentimento contra Roma também havia se assentado fortemente no coração de muitos na Cristandade.

Contra a acusação dos pagãos, e diante do desespero de muitos cristãos, e no contexto da celebração ou indiferença de outros, a resposta de Agostinho veio na sua monumental, penosa e volumosa Cidade de Deus (413?26). Talvez a maior de todas as suas obras, esse tratado sobre a providência de Deus é, na verdade, a primeira filosofia cristã da história. Para Agostinho, história é o estágio no qual o drama da redenção está sendo encenado. No princípio da história está a Queda e em sua conclusão o Julgamento Final. Entre estes dois eventos ocorre o mais crucial de todos os eventos — a entrada do Deus eterno no tempo como um homem, a encarnação do Senhor Jesus Cristo, e seu consequente ministério, morte e ressurreição. Deus, então, está vitalmente trabalhando na história. Agostinho, portanto, tem uma visão unificada daquilo a que chamamos de história; ela não é um pacote de querelas e eventos desconectados. Não obstante, Agostinho também está convencido de que é impossível traçar em detalhes a obra de Deus na história fora das Escrituras. Enquanto seria blasfemo negar que Deus está trabalhando no domínio da história, tal trabalho é amplamente oculto aos homens.

Na Cidade de Deus encontra-se a afirmação de que nenhuma cidade terrestre pode se comparar com a Jerusalém Celestial, a cidade de Deus. A cidade terrestre tem sua ascensão e queda, mas a cidade de Deus permanece para sempre. Para Agostinho, a cidade terrestre pode assumir muitas formas ao longo do tempo. A Cidade do Homem está fundada sobre o amor a si mesmo, glorifica a si própria, e é contra Deus. Ela tem sua origem na rebelião de Satanás e dos outros anjos caídos. A cidade de Deus é invencível e continuará triunfando e realizando a vontade de Deus. Ela é guiada e amada por Deus, especialmente marcada por humildade, e encontra sua glória mais elevada em Deus. Seu início está no céu, antes mesmo da existência do universo material. Na essência, homens e nações se levantam e caem, mas a cidade de Deus conquistará tudo.

As diferentes naturezas das duas cidades podem ser vistas nas diferentes características dos seus dois primeiros habitantes: Caim e Abel. Caim era um habitante da Cidade do Homem,

cujo “desejo é contra ele” e que o “domina” (Gn 4.7). Ele então assassina o seu irmão, e deseja dominar sozinho, edificando sua própria cidade. Abel, por outro lado, “era um peregrino e estrangeiro no mundo”, pertencendo à Cidade de Deus. Ele foi predestinado pela graça, e escolhido pela graça, pela graça um peregrino daqui, e pela graça um cidadão de lá. Através do curso dessas duas cidades, quando elas se colocam lado a lado na história, Deus está trabalhando para livrar homens e mulheres da primeira cidade e torná-los parte da segunda. Embora a cidadania última seja na Cidade de Deus, não podemos, no momento, identificar as pessoas de acordo com ela. Deus antevê. Nós não. O pecador poderá ser o santo de amanhã, e vice-versa. Membros professos da Igreja na terra terminarão no inferno. Os de fora terminarão no paraíso. A Cidade de Deus, pela graça e poder de Deus, acabará substituindo os reinos terrestres na cidade celeste na ocasião da segunda vinda de Cristo. E até então, a Cidade de Deus será um reino espiritual oculto que existe sempre e onde quer que a vontade de Deus o queira. A separação definitiva ocorrerá quando, no juízo final, a Cidade de Deus entrará num gozo eterno, e a Cidade do Homem será precipitada no inferno. Nenhuma sociedade terrena ou instituição humana pode, entretanto, ser plenamente identificada com qualquer dessas duas cidades, porque elas perpassam a humanidade inteira, no passado, presente e futuro. Agostinho, então, rejeita qualquer sorte de fusão do Reino de Deus com alguma sociedade humana em particular.

Esta interpretação cristã da história, conforme defendida por Agostinho, foi um grande consolo para muitos cristãos que viram o Império Romano no Ocidente esfacelar-se por causa das invasões dos vândalos. Como vimos, até mesmo cristãos estavam identificando o Império Romano cristianizado com o Reino de Deus. Isto era uma enorme tentação naqueles dias. Roma parecia, para os homens desse tempo, o princípio organizador de toda a história humana. Ao desaparecer, que sentido teria o mundo? Vários cristãos estavam contemplando o Império Romano como desempenhando um papel central na história da redenção. O próprio historiador Eusébio de Cesaréia (263-339) esposara tal opinião, quando se referiu à ascensão do imperador Constantino. Assim, desenvolvera-se uma teologia da história na qual aqueles “tempos cristãos” eram, por assim dizer, coextensivos com o Império, tanto quanto este era com a Cidade de Deus.

Para Agostinho, nada disso era contemplado pelas Escrituras, bem como esta opinião falhava em articular a natureza peregrina do povo de Deus. A idéia central de Agostinho é: a Cidade de Deus não é afetada pelo declínio do Império Romano, porque esta cidade, em rigor, não é deste mundo. No caso particular de Roma e do Império, Deus lhes permitiu crescer como cresceram, inclusive para que servissem de meio para a propagação do evangelho. Esta função agora estava cumprida, e Deus fez com que Roma seguisse o destino de todos os reinos humanos, recebendo o justo castigo por seus pecados e egoísmo. Roma nunca seria a cidade que satisfaria o coração humano. Somente a cidade de Deus poderia fazer isto. Virgílio (Públio Virgílio Marão, 70-19 a.C.) descreveu o plano dos deuses para tornar Roma uma imagem de justiça de ordem divina. Agostinho diz que Roma jamais se tornou isso, nem nunca poderia se tornar. Nenhuma instituição meramente humana pode. Somente a Cidade de Deus tem a ordem perfeita. O Cristianismo não oferece conforto ou sucesso nesta vida, mas paz interior e um destino eterno. Por isso, enquanto o descrente ama o que há no mundo, o cristão ama a Deus.

Agostinho não apenas escreveu, mas pregou sobre isto. Em um sermão pregado em Cartago, durante o verão de 411, quando a lembrança do saque de Roma ainda permanecia bastante fresca em muitas mentes, Agostinho relembra aos seus ouvintes que nenhum reino terrestre é para sempre.7 O Senhor e Mestre Jesus Cristo já advertira que os reinos desta terra pereceriam. Agostinho relembrou as palavras de Cristo: “Porquanto se levantará nação contra nação, e reino contra reino” (Mt 24.7). E prosseguiu: “reinos terrestres têm seu auge e seu declínio; mas está vindo aquele Homem de quem é dito: ´E o seu reino jamais terá fim´.”

Para Agostinho, cada membro da Cidade de Deus tem, certamente, sua responsabilidade histórica. Ele é capaz de ser grato a Deus por Roma, e de orar pelos seus cidadãos que permaneciam em seu paganismo. “Que experimentem um nascimento espiritual, e que passem adiante conosco para a eternidade”. O fim virá. Apenas Deus e seu reino são eternos. Portanto, como os cristãos deveriam viver? Eles deveriam fixar a sua esperança firmemente em Deus. Tal esperança, contudo, não deveria fazer com que os cristãos se mantivessem insensíveis aos sofrimentos daqueles que os rodeiam. Os cristãos naquele contexto de crise não deveriam esquecer as necessidades dos outros. Agostinho conhecia o poder apologético das boas obras. Ele instou com os cristãos naquele momento, lembrando-lhes que, ao fazerem o que Cristo mandou, eles estariam respondendo muito convenientemente às blasfêmias dos pagãos. Ele mesmo, com seus quase setenta anos, foi capaz de viajar centenas de quilômetros visando à preservação da ordem política e ao bem-estar da Igreja.

Os cristãos daquele tempo viviam num cenário de incerteza e de falência. Para aqueles que viam o Império Romano como central nos propósitos de Deus, não é de admirar que o saque de Roma tenha sido encarado como um evento devastador para o Cristianismo. Falando aos cristãos do Império, entretanto, Agostinho pôde declarar que nada tem sido perdido. Uma porção da “peregrina cidade de Jerusalém” permanecia lá em Roma, e, embora houvessem sofrido perdas temporais, os cristãos não deveriam perder de vista os ganhos eternos. Agostinho era capaz de contemplar que o colapso da infra-estrutura política e social do Império não era simplesmente um evento histórico e nada mais. Ele ofereceu uma âncora com sua visão bíblica de que a história é oficina de Deus. Para o povo de Deus, aquele sofrimento tinha propósitos redentivos. Agostinho defendeu e expôs, portanto, a soberania do reinado de Cristo na história. O reino de Deus é eterno; seu triunfo é certo; e nada pode pará-lo! Compartilhar de tal triunfo é o grande privilégio que um ser humano pode desfrutar. E mesmo em sua morte, no contexto de uma ordem social destruída, Agostinho mantinha a firme esperança do reino celeste e da resplendente “Cidade de Deus”. Em meio aos seus últimos combates, ingentes e afirmativos, ele esperava “a cidade que tem fundamentos, da qual Deus é o arquiteto e edificador”.

Referências:

1. NEEDHAM, N. R. 2000 Years of Christ´s Power; Part One: The Age of the Early Church Fathes. London: Grace Publications Trust, 2002, pp. 230-262.
2. Para um acervo das obras de Jerônimo em Língua Inglesa, online aqui.
3. O apelido Vulgata vem da palavra latina para “comum” — a Bíblia comum, isto é, aquela comumente utilizada.
4. GONZALES, Justo L. A Era dos Gigantes. Uma História Ilustrada do Cristianismo, Vol. 2. São Paulo: Vida Nova, 1980, pp. 161-162.
5. KELLY, J. N. D. (trad.). Jerome: his Life, Writings, and Controversies. New York: Harper & row, 1975, p. 304, apud HAYKIN, Michael.Defence of The Truth; Contending for the Truth Yesterday an Today.  Darlington, England: Evangelical Press, 2004, p. 101. Cf. online aqui.
6. Carta 127.12, in: FREEMANTLE, W. H. The Principal Works of St. Jerome. Nicene and Post-Nicene Fathers, Second Séries, vol. 6. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1979, p.257, apudHAYKIN, op. cit. Para outros textos que mostram a reação de Jerônimo ao saque de Roma, veja Carta 123.16-17; 126.2; 128.4.  Para as cartas de Jerônimo, online aqui.
7. Sermão 105.9-11, in: HILL, Edmund. Sermons; The Works of Saint Augustine. Brooklyn, New York: New City Press, 1992, III/4, p. 94, apud. HAYKIN, op. cit.. Cf online aqui. Para sermões de Agostinho,online aqui.

 

Fonte: Revista Fé Para Hoje N.40 (Artigo 6).


Autor: Gilson Santos

Gilson Santos é Ministro Batista e pastor titular da Igreja Batista da Graça, em São José dos Campos, SP, há mais de 20 anos. Graduado em História, Teologia e Psicologia, é pós-graduado em psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É escritor no institutopoimenica.com e professor de disciplinas de Teologia Prática no Seminário Martin Bucer.

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Ministério Fiel: Apoiando a Igreja de Deus.

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