domingo, 15 de dezembro
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Fé ou arrependimento: o que vem primeiro?

Quando o evangelho é proclamado, à primeira vista parece que duas diferentes respostas, até mesmo alternativas, são necessárias. Às vezes o chamado é “Arrependa-se!”. Assim, “apareceu João Batista pregando no deserto da Judéia e dizia: ‘Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus’” (Mt 3.1-2). Novamente, Pedro insta com os ouvintes cujas consciências foram abertas no dia do Pentecoste: “Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo” (At 2.38). Mais tarde, Paulo insta com os atenienses para se arrependerem em resposta à mensagem do Cristo ressurreto (At 17.30).

Ainda assim, em outras ocasiões, a resposta apropriada ao evangelho é: “Creia!”. Quando o carcereiro filipense perguntou a Paulo o que ele deveria fazer para ser salvo, o apóstolo disse a ele: “Crê no Senhor Jesus e serás salvo” (At 16.31).

Mas não há mistério ou contradição aqui. Mais adiante em Atos 17, descobrimos que precisamente onde a resposta do arrependimento era necessária, aqueles que foram convertidos são descritos como crentes (At 17.30, 34).

Qualquer confusão é certamente resolvida pelo fato de que quando Jesus pregou “o evangelho de Deus” na Galiléia, ele instou aos seus ouvintes: “O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo; arrependei-vos e crede no evangelho” (Mc 1.15). Aqui o arrependimento e a fé estão unidos. Eles denotam dois aspectos na conversão que são igualmente essenciais. Assim, cada termo sugere a presença do outro, pois cada realidade (arrependimento ou fé) é sine qua non da outra.

Em termos gramaticais, portanto, as palavras arrepender e crer funcionam como uma sinédoque — uma figura de linguagem na qual uma parte é usada para referir-se ao todo. Portanto, arrependimento sugere fé e fé sugere arrependimento. Um não pode existir sem o outro.

Mas, logicamente, o que vem primeiro? O arrependimento? A fé? Ou nenhum possui uma prioridade absoluta? Houve prolongados debates no pensamento reformado sobre isso. Cada uma das três possíveis respostas têm seus defensores:

Primeiro, W.G.T. Shedd insistiu que a fé deve preceder o arrependimento seguindo a ordem de natureza: “Embora a fé e o arrependimento sejam inseparáveis e simultâneos, ainda assim, em ordem de natureza, a fé precede o arrependimento” (Dogmatic Theology, 2.536). Shedd argumentou isso alegando que o poder motivador para o arrependimento reside na compreensão da fé da misericórdia de Deus. Se o arrependimento precedesse a fé, tanto o arrependimento quanto a fé seriam legais em caráter, e se tornariam pré-requisitos para a graça.

Segundo, Louis Berkhof parece ter tomado a posição contrária: “Não há dúvida de que, logicamente, o arrependimento e o conhecimento do pecado precedem a fé que se entrega a Cristo em amor confiante” (Systematic Theology, p. 492).

Terceiro, John Murray insistiu que essa questão levanta:

… uma pergunta desnecessária e a insistência fútil de que uma precede à outra. Não há prioridade. A fé que é para a salvação é uma fé penitente, e o arrependimento que é para a vida é um arrependimento crente […] fé salvífica é permeada de arrependimento, e arrependimento é permeado de fé salvífica. (Redemption — Accomplished and Applied, p. 113).

Essa é, certamente, a perspectiva mais bíblica. Não podemos separar o desviar-se do pecado em arrependimento e o converter-se a Cristo em fé. Ambos descrevem a mesma pessoa na mesma ação, mas a partir de perspectivas diferentes. Sob um ângulo (arrependimento), a pessoa é vista em relação ao pecado; de outro (fé), a pessoa é vista em relação ao Senhor Jesus. Mas o indivíduo que simultaneamente confia em Cristo se desvia do pecado. Ao crer, ele se arrepende, e ao arrepender-se, ele crê. Talvez R. L. Dabney expresse isso melhor quando ele diz que arrependimento e fé são graças “gêmeas” (talvez possamos dizer “gêmeas siamesas”).

Mas tendo dito isso, de maneira nenhuma dissemos tudo o que há para se dizer. Entrelaçada com qualquer teologia da conversão repousa uma psicologia da conversão. Em qualquer indivíduo, ao nível da consciência, pode predominar um senso de arrependimento ou de confiança. O que é unificado teologicamente pode ser psicologicamente diverso. Assim, um indivíduo profundamente convencido da culpa e da escravidão do pecado pode experimentar o desviar-se dele (arrependimento) como uma marca predominante em sua conversão. Outros (cuja experiência de convencimento se aprofunda após a conversão) podem ter um senso predominante da maravilha do amor de Cristo, com menos agonia na alma no nível psicológico. Aqui o indivíduo está mais consciente da confiança em Cristo do que do arrependimento do pecado. Mas na verdadeira conversão, um não pode existir sem o outro.

Os pontos psicológicos que acompanham a conversão assim variam, dependendo às vezes da ênfase predominante do evangelho que é exposta ao pecador (a perversidade do pecado ou a grandeza da graça). Isso é bastante coerente com o perspicaz comentário dos Teólogos de Westminster sobre o fato de que a fé (isto é, a resposta confiante do indivíduo à palavra do evangelho) “age em conformidade com aquilo que cada passagem [da Escritura] contém em particular” (CFW 14.2)1.

De maneira nenhuma, entretanto, a real conversão pode acontecer à parte da presença tanto do arrependimento quanto da fé, e, portanto, da alegria e da tristeza. Uma “conversão” em que não há tristeza pelo pecado, que recebe a palavra apenas com alegria, será temporária.

A parábola de Jesus sobre o semeador é instrutiva aqui. Em um tipo de solo, a semente brota rapidamente, mas morre repentinamente. Isso representa os “convertidos” que recebem a palavra com alegria — mas com nenhum senso de estar sendo arado pela convicção do pecado ou qualquer dor no desviar-se do mesmo (Mc 4.5-6, 16-17). Por outro lado, uma conversão que é apenas tristeza pelo pecado, sem nenhuma alegria pelo perdão, provará ser apenas “tristeza do mundo” que “produz morte” (2Co 7.10). No fim, não dará em nada.

Isso, contudo, levanta a última questão: a necessidade do arrependimento na conversão  constitui um tipo de obra que vai contra a fé sem obras? Ela compromete a graça?

Em uma palavra, não. Pecadores devem sempre achegar-se de mãos vazias. Mas esse é justamente o ponto. Por natureza, minhas mãos estão cheias (de pecado, do ego e das minhas próprias “boas obras”). Contudo, mãos que estão cheias não conseguem agarrar-se a Cristo em fé. Ao invés disso, quando elas agarram nele, elas são esvaziadas. Aquilo que nos impedia de confiar nele, inevitavelmente cai no chão. O velho estilo de vida não pode ser retido nas mãos que estão agarrando o Salvador.

Sim, arrependimento e fé são dois elementos essenciais na conversão. São graças gêmeas que não podem ser separadas. Como João Calvino bem nos lembra, isso é verdadeiro não apenas no início, mas durante toda a nossa vida cristã. Nós somos crentes penitentes e penitentes crentes durante todo o caminho em direção à glória.

Notas:

1 – Extraído de http://www.monergismo.com/textos/credos/cfw.htm

 

Tradução: Alan Cristie


Autor: Sinclair Ferguson

Dr. Sinclair B. Ferguson é professor de teologia sistemática no Seminário Redeemer em Dallas, TX, EUA. É reitor do curso de Doutorado em Ministério na Academia Ligonier, e professor no Ministério Ligonier.

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