domingo, 28 de abril

As obras de Deus: doutrina concernente à vontade e às obras de Deus

Aproximemo-nos um pouco mais do objeto de nosso supremo amor. Um ser como Deus seria digno dos mais caros afetos de nossos corações, mesmo que estivéssemos debaixo do domínio de algum outro senhor e devêssemos nossa existência a algum outro poder criador. À semelhança da rainha de Sabá, quando ouviu falar na sabedoria e no esplendor da corte de Salomão, também poderíamos, com grande propriedade, desejar visitar o remoto palácio de Jeová, a fim de tomarmos conhecimento de seu caráter e da organização de seu império. Se Deus, após ter criado o mundo, o tivesse deixado sob a gerência de outras mãos e tivesse se afastado, a fim de ocupar-se de outras realizações, ainda assim, a nossa inquirição poderia ter por alvo a sua pessoa, e seria louvável desejarmos conhecer o nosso Criador. No entanto, Deus não está longe de nenhum de nós. Depois que ele criou este mundo, não o abandonou aos cuidados de outrem. O mundo é objeto de seus cuidados constantes, e a sua mão envolve todos os seus movimentos. Quer olhemos para a direita, quer para a esquerda, podemos perceber claramente onde ele está operando; e, nas manifestações de sua sabedoria, poder e bondade, que a todo instante aparecem à nossa vista, encontramos estímulos constantes para o adorarmos e amarmos.

Os cuidados de Deus pela sua criação recebem o título de providência, estando inclusas nesse título as ideias de preservação e de governo.

Preservação

Todas as coisas criadas são mantidas em existência pela vontade e pelo poder de Deus[i]

Compreendemos tão pouco dos atos da providência como pouco entendemos do ato da criação. Sabemos que ambos são atos de Deus e que implicam a sua vontade e poder.

Não se pode duvidar que um contínuo ato de preservação faz-se necessário para conservar em existência todas as criaturas de Deus. A expressão “sustentando todas as coisas” (Hb 1.3) aponta claramente para esse ato preservador. Um arquiteto pode dirigir a construção de um edifício, o qual, uma vez acabado, fica de pé independentemente do labor e da capacidade do tal arquiteto, servindo de monumento a ambas essas qualidades, quando ele tiver sido ceifado pela morte. Por igual modo, inclinamo-nos a pensar que a obra de Deus permaneceria existindo, mesmo que fosse abandonada à sua própria sorte, sem contar com os cuidados e o apoio constantes de Deus. Mas esses casos diferem grandemente. O arquiteto humano encontra seus materiais de construção dentro daquilo que já existe; todo o trabalho consiste em adaptar as formas desses materiais, combinando-os de acordo com novas ordens de arrumação.

Os materiais usados não são criados pelo próprio arquiteto, e a essência particular deles, antes de serem usados, é retida depois que as mãos dos construtores já acabaram a sua obra. Mas os materiais propriamente ditos, bem como suas qualidades intrínsecas, vieram diretamente das mãos de Deus; se Deus chegasse a retirar a sua mão, todas estas coisas ficariam sem o devido apoio e deixariam de existir. Do contrário, a expressão “sustentando todas as coisas” não teria qualquer significação.

Muitos têm afirmado que o ato preservador não somente procedeu do mesmo Autor da criação, mas também coincidiu com o ato criativo. Eles consideram como verdade filosófica a ideia de que a preservação é uma criação perpétua. Eles concebem que todas as existências criadas, por causa de sua tendência natural ao aniquilamento, acabam-se a cada instante e são reproduzidas por um novo ato de criação. Porém, sem importar com os engenhosos argumentos que têm sido propostos em apoio a essa opinião, a filosofia continua estabelecendo a distinção entre esses dois atos, o da criação e o da preservação, considerando que a criação reveste-se do caráter miraculoso, ao passo que a preservação está ajustada às leis da natureza. Inclinamo-nos a conceber que trazer à existência o que é não existente difere de preservar na existência o que já existe. Para todas as finalidades práticas, a filosofia considera que é suficiente atribuir a preservação de tudo ao poder e à vontade daquele Ser que originalmente criou todas as coisas. Em conformidade com a sua vontade, o mundo veio à existência e, de acordo com a sua vontade, continua a existir.

Governo Geral

Todas as coisas criadas estão sujeitas ao controle do Senhor, a fim de que as modificações ocorram em harmonia com o propósito divino.[ii]

As coisas criadas interagem continuamente umas com as outras, em suas relações de causa e efeito. As propriedades e poderes, através dos quais as coisas atuam, foram conferidas a cada uma por ocasião de sua criação e têm continuidade dentro do ato de preservação. Segue-se daí que todas as coisas criadas interagem entre si, produzindo alterações umas nas outras, mediante a vontade e o poder de Deus. Se elas dependem de Deus quanto à sua existência, sem dúvida devem ser dependentes dele quanto às suas propriedades e poderes e, consequentemente, quanto às operações.

O controle de Deus sobre todas as coisas que acontecem é um tema largamente ensinado nas Escrituras, as quais aludem a questões como o vento (Jr 4.8), a chuva (Mt 5.45), a pestilência (Lv 26.25), a fartura (Gn 27.28), a relva (Mt 6.30), as aves do céu (Mt 6.26), os cabelos de nossas cabeças (Mt 10.30) etc., como objetos da providência divina.

As Escrituras não somente atribuem os acontecimentos à mão controladora de Deus, mas também se referem a ele como quem determina os acontecimentos para a realização de algum propósito em vista. Assim é que as plantas crescem a fim de prover alimentos (Sl 104.14). A pestilência é permitida para que os homens sejam castigados por causa dos seus pecados (2Sm 24.15). José foi enviado ao Egito com o intuito de preservar a vida de muita gente (Gn 45.7). Não são poucos os acontecimentos controlados por Deus; pelo contrário, a Bíblia afirma que Deus “faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade” (Ef 1.11). A declaração “todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm 8.28) não poderia exprimir uma verdade, se o controle exercido por Deus não abrangesse todos os acontecimentos, levando-os a cooperar no cumprimento do propósito divino.

Algumas pessoas não se dispõem a atribuir a Deus o cuidado e a gerência de eventos minuciosos e destituídos de importância. Elas consideram como abaixo da dignidade divina preocupar-se com questões tão triviais. Essas pessoas acreditam em uma providência geral, que atuaria sobre todos os acontecimentos que ocorrem no mundo, exercida por meio de leis gerais; contudo, atos de providência particular, exercidos no caso de cada incidente na vida de cada ser humano, não são um conceito que ocupe lugar no entendimento e no credo dessas pessoas. As Escrituras mostram-se bem claras quanto a essa questão. A morte de um pardal é uma ocorrência bastante trivial; no entanto, nosso Mestre celestial afirma que isso não pode suceder sem o consentimento do Pai celestial (Mt 10.29).

Se os acontecimentos importantes sucedem em harmonia com leis gerais, isso é igualmente verdadeiro no caso de pequenos incidentes; a operação dessas leis, no caso daquelas coisas pequenas, precisa ser tão bem compreendida e tão perfeitamente controlada como no caso de acontecimentos maiores. Com frequência, sucede que estes dependem de outros também triviais em si mesmos e destituídos de maior importância. Certo rei de Israel foi morto, e a profecia dada por Deus atinente à sua morte foi cumprida por meio de uma flecha atirada inteiramente ao acaso (1Rs 22.34). Quantas pequenas e minuciosas circunstâncias devem ter contribuído para que aquele ato tivesse acontecido! Aquela flecha teve de ser atirada, naquele momento, numa determinada direção, com a força precisamente necessária — e nenhum obstáculo impediu seu curso. Sim, todas essas circunstâncias devem ter ocorrido sob o controle daquele em cujas mãos se encontrava a vida do rei. Da mesma forma que a grandiosidade de Deus permitiu que ele criasse até mesmo a mais ínfima de suas obras, assim também lhe permite cuidar de todas elas. O cuidado de todas essas minúcias é tão fácil e tão isento de distrações para Deus como se toda a sua energia estivesse orientada exclusivamente para cuidar e beneficiar um único homem ou um único anjo.

Os beneficiários da providência de Deus são todos os seres criados, animados e inanimados, racionais ou irracionais. Alguns desses seres, como os anjos e os homens, são agentes morais. Todos os demais, vistos como causadores de qualquer modificação, precisam ser coletivamente classificados como agentes naturais. Com vistas a essa divisão das agências, o governo do Senhor Deus pode ser dividido em governo natural e governo moral.

Governo Natural

Entre as primeiras lições que recebemos neste mundo, precisamos compreender que existe uma certa relação de causa e efeito e que os acontecimentos têm lugar precisamente devido a essa relação, em consonância com uma preestabelecida ordem de sequência. Se essa ordem de sequência não tivesse sido estabelecida ou se a ignorássemos, seríamos incapazes de cuidar das questões mais corriqueiras da vida. Se algumas vezes os alimentos fossem nutritivos e, em outras, venenosos, ou se fôssemos incapazes de descobrir se há qualidades nutritivas no pão ou no arsênico, seríamos incapazes de regular o processo da alimentação, tão necessário para a preservação da vida. Porém, nosso Criador fez-nos capazes de observar as sequências existentes na natureza, detectando a ordem em que essas sequências ocorrem, bem como as relações de causa e efeito entre as partes da sequência. O estudo dessas sequências é justamente a área da filosofia; mas a filosofia não se confina às universidades ou aos salões de conferências. Pode-se perceber a presença de noções filosóficas em cada aspecto da vida, bem como em cada experiência diária por que passamos. A criança começa a aprender noções filosóficas ainda no berço; sem algum conhecimento a respeito os homens, não saberiam como combater as inundações, os incêndios ou evitar os precipícios. Em todos os ramos do conhecimento, costumamos classificar as coisas que conhecemos, e as sequências da natureza, uma vez classificadas, tornam-se aquilo que denominamos “leis da natureza”. Essas leis consistem naquelas normas ordeiras segundo as quais ocorrem as sequências existentes na natureza. Dentro da expressão “lei da natureza”, a palavra “lei” é empregada em um sentido modificado. Quando esse termo é empregado no campo da moral, refere-se a uma ordem dada por uma autoridade, envolvendo também a obediência de alguém. A natureza, porém, não é um ser possuidor de autoridade; as coisas naturais são incapazes de obedecer, no sentido mais óbvio da palavra. No campo da moral, as leis podem ser desobedecidas, mas os processos da natureza sempre se conformam àquilo que chamamos de leis da natureza. Estas podem ser consideradas como as maneiras mediante as quais opera a providência de Deus. A vontade do Senhor determinou a relação que prevalece entre a causa e efeito, e, por esse motivo, as leis da natureza são as ordens de sequência segundo as quais sucedem as modificações das coisas naturais, em consonância com o propósito divino.

Quando contemplamos a ordem que prevalece no mundo natural, contemplamos a exibição da sabedoria inerente à divina providência. O governo natural de Deus, bem como o seu governo moral, caracteriza-se pela mais perfeita sabedoria. Não podemos presumir-nos capazes de entender todas as razões divinas que levaram o Senhor a planejar as coisas exatamente como elas são; mas as vantagens resultantes dessa ordem podem ser por nós percebidas em cada experiência da vida. Se as sequências da natureza acontecessem desordenadamente, o fato de termos sido criados com a capacidade de observar tais leis naturais não teria propósito. Se a sucessão de eventos fosse caracterizada pelo caos, a filosofia seria uma ciência impossível, e seriam igualmente impossíveis todas as artes e ciências mais comuns. A razão, por sua vez, seria uma faculdade inteiramente inútil.

Governo Moral

Chamamos de agente moral aquele que é voluntário e dotado do senso de certo e de errado. Tal agente é um súdito da lei moral propriamente dito. Ele é suscetível de ordens e pode obedecer ou desobedecer. Ele tem a faculdade de sentir a força das obrigações morais e de ser afetado pela autoaprovação ou pelo remorso.

A lei moral não consiste em alguma ordem fixa de sequência, conforme se verifica no caso das leis da natureza. Quanto a esse particular, certos estudiosos têm procurado achar um ponto de acordo entre as leis da natureza e a lei moral. Eles referem-se ao fato de que uma ação moral sofre consequências inseparavelmente ligadas a ela, as quais resultam da sua qualidade moral. Porém, a conexão dessas consequências com a ação moral pertence antes à classe das sequências naturais. À semelhança de outras sequências naturais, a ordem é inviolável. No entanto, a lei moral pode ser violada. A ordem de sequência que a lei moral procura regulamentar é aquela que subsiste entre a ordem e a ação, e não entre a ação e as suas consequências. Na primeira dessas sequências, e não na última, é que figura a obediência ou desobediência à lei moral. Se a lei moral fosse uma ordem fixa de sequência, à maneira das leis naturais, ninguém além de Deus seria capaz de violá-la, porquanto ninguém além dele pode operar milagres. Contudo, enquanto Deus não pode incorrer em pecado, o qual é uma transgressão à lei moral, o pecado pode ser cometido pelos anjos e pelos homens, o que tem sido comprovado pela triste experiência.

A distinção que se tem feito entre a lei da natureza e a lei moral precisa ser atenciosamente observada, para que compreendamos a diferença que há entre o governo natural e o governo moral. O governo moral é um departamento da universal administração divina e é especialmente adaptado para agentes morais. Ele dá margem tanto para o exercício das atividades morais desses agentes como para o exercício da justiça de Deus. O governo moral não é inconsistente com os demais aspectos da administração divina, embora seja distinto dos outros aspectos, pois se trata do Santo dos Santos, onde o Senhor supremo manifesta sua mais exaltada glória. É verdade que, dentro desse aspecto, a vontade de Deus não é invariavelmente cumprida, ao passo que, em seu governo natural, ele faz todas as coisas contribuírem para seus objetivos, segundo a sua vontade.

Entretanto, é imprescindível lembrar que o termo “vontade” é usado com diferentes conotações. A vontade que é violada dentro do governo moral é a vontade de preceito, e a vontade que é invariavelmente executada dentro do governo natural é a vontade de propósito. A totalidade do governo moral de Deus concorda perfeitamente com o propósito divino. Foi do seu propósito instituir esse governo e criar agentes morais, submetendo-os a uma lei moral que continha preceitos que eles, na qualidade de agentes morais livres, podem violar ou não. Permitir a violação dessa lei moral, entretanto, responsabiliza os violadores. Tudo isso faz parte do propósito de Deus; tudo foi planejado e realizado por ele. Visto que o termo “vontade” é usado em dois sentidos, manifestamente distintos um do outro, torna-se necessário, quando queremos empregá-lo, manter em vista essa distinção, a fim de que o nosso raciocínio não seja confuso.

A proposição geral que se acha debaixo do título “Governo geral” deste livro diz: “Todas as coisas criadas estão sujeitas ao controle do Senhor, a fim de que as modificações ocorram em harmonia com o propósito divino.” A verdade contida nessa proposição concernente ao governo natural de Deus é prontamente admitida. Uma importante parcela das variações que ocorrem no mundo consiste em ações efetuadas pelos agentes morais. Na aplicação dessa proposição aos agentes morais, é necessário distinguir entre o propósito eficiente e o propósito permissivo de Deus. Nem mesmo a mais pecaminosa das ações acontece sem a permissão de Deus. Segundo esse ponto de vista, aquela proposição abrange tanto o governo natural quanto o governo moral de Deus.


 

[i] Jó 1.21; 5.18; Sl 33.10-15; 103.5, 10; 104.27-30; 127.1, 2; Pv 16.9; Mt 5.45; Lc 12.6; At 17.28.

[ii] 2 2Cr 20.6; Sl 104.4, 7, 10, 13, 14, 19, 32; Pv 16.9; Sl 76.10; Dn 4.35; Rm 8.28; Ef 1.11.

 


O trecho acima foi extraído com permissão do livro Manual de Teologia, de John L. Dagg, Editora Fiel

 


Autor: John L. Dagg

JOHN DAGG (1794-1884) foi um pastor batista no sul dos EUA, até ter um grave problema em sua voz, em 1834. Ele se viu forçado, então, a migrar para o universo acadêmico, servindo como presidente e professor de teologia na Mercer University. Após a sua aposentadoria, em 1854, Dagg, apesar de praticamente cego, mudo e aleijado, passou a dedicar-se à escrita. Ele foi o mentor de uma geração de pastores, estabelecendo importantes balizas nos campos da doutrina, ética, eclesiologia e apologética.

Ministério: Editora Fiel

Editora Fiel
A Editora Fiel tem como missão publicar livros comprometidos com a sã doutrina bíblica, visando a edificação da igreja de fala portuguesa ao redor do mundo. Atualmente, o catálogo da Fiel possui títulos de autores clássicos da literatura reformada, como João Calvino, Charles Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, bem como escritores contemporâneos, como John MacArthur, R.C. Sproul e John Piper.

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